‘Uma leitora, cujo nome não é revelado por razões que ficarão claras, escreveu ao ombudsman para pedir que encaminhasse ao jornal um pedido: a retirada do arquivo eletrônico de uma declaração que lhe foi atribuída em texto publicado quase nove anos atrás sobre um programa de TV.
A moça tinha 18 anos e foi entrevistada com outros participantes de um precursor dos ’reality shows’. Na carta ao ombudsman, alega que suas palavras ’foram completamente deturpadas’, o que é impossível determinar. Além disso, ela diz não ter autorizado que sua declaração fosse para a internet e, o mais importante, que o fato de estar lá atualmente lhe traz muitos problemas e constrangimentos. Quem pesquisa seu nome no Google, por exemplo, vê a tal reportagem em segundo lugar entre as páginas mostradas.
É cada vez mais comum em processos de seleção profissional os responsáveis pela escolha dos candidatos procurarem saber sobre eles nos mecanismos de busca da internet. Muitas pessoas em início de uma relação sentimental ou de amizade fazem o mesmo.
Encaminhei o pedido à Secretaria de Redação, que respondeu: ’A Folha não pode retirar de seu arquivo eletrônico reportagens que foram publicadas na edição impressa’.
Perguntei, então: ’por que o jornal não retira declarações de, ou referências a, cidadãos comuns, não pessoas públicas, que façam essa solicitação alegando que a manutenção desse material na internet as prejudica de diversas maneiras, quando tal retirada não acarretar nenhum prejuízo histórico ou informativo para a sociedade?’
A resposta do jornal foi: ’A Folha, de fato, não altera seu arquivo digital por considerar que isso seria reescrever sua história mesmo quando o assunto em questão envolve cidadãos comuns. Mas está ’linkando’ todos os erramos aos textos correspondentes desde 2008. E há um projeto em curso de indexar todo o acervo desde que a seção ’Erramos’ foi criada’.
É um progresso que as correções estejam sendo anexadas aos textos originais. Mas muitos erros não são reconhecidos e registrados. E há situações em que não há erro: simplesmente a pessoa não quer mais que aquela referência a ela continue circulando na rede.
Claro que é um perigo o jornal permitir que sejam alteradas as matérias como foram publicadas. Mas há situações em que extrair alguma coisa do arquivo eletrônico, às vezes até por razão humanitária, é inócuo do ponto de vista da história ou do interesse público e pode fazer diferença enorme para a vida do cidadão envolvido.
A internet tem criado vários problemas para a sociedade e para o jornalismo, que precisam ser enfrentados com decisão e presteza em nome do bem comum.
Um deles é o dessa memória coletiva inapagável. Um livro recente de Viktor Mayer-Schönberger, da Universidade Nacional de Cingapura, trata do assunto. Mostra como a humanidade passou em poucos anos de uma situação milenar em que o esquecimento era a regra e recordar era o desafio (e para superá-lo criaram-se instrumentos como cantos, poemas, livros, jornais) para a atual, em que lembrar de quase tudo se tornou o padrão e esquecer é quase impossível.
Ireneo Funes, o personagem do genial conto abaixo indicado, escrito em 1942, não se esquecia de nada. Por isso, diz o autor, era incapaz de pensar. ’Pensar é esquecer diferenças, é generalizar, abstrair. No mundo entulhado de Funes não havia senão detalhes, quase imediatos’, como também na memória implantada nos ’replicantes’, os androides do filme recomendado abaixo, e também na internet.
Mais grave, como registra a professora Sylvia Moretzsohn, da Universidade Federal Fluminense, em diálogo com o ombudsman, é que na memória de Funes, todas as lembranças eram de fatos reais, eram ’verdades’, enquanto na internet pululam mentiras, invencionices sobre qualquer pessoa, cuja veracidade não se pode comprovar e, às vezes, nem desmentir.
Cada cidadão, o jornal e a sociedade precisam todos pensar com mais seriedade a respeito dessa questão, que já tem sido capaz de provocar pequenas e grandes desgraças individuais e ainda tem o potencial de gerar enormes dificuldades coletivas.
PARA LER
’Funes, o Memorioso’, in ’Ficções’, de Jorge Luis Borges, tradução de Davi Arrigucci Jr., Companhia das Letras, 2007 (a partir de R$ 28,84)
PARA VER
’Blade Runner, o Caçador de Androides’, de Ridley Scott, 1982 (a partir de R$ 24,90)’
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‘Onde a Folha foi bem…’, copyright Folha de S. Paulo, 14/2/10.
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