Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

A imprensa mais atrapalha que informa

No clima de inegável liberdade de expressão hoje predominante no México, los medios – imprensa escrita, rádio, TV e internet –, desempenham um papel tão importante quanto ambíguo, aproveitando para, além de exorcizar os vícios do passado, quando eram simplesmente mera e dócil extensão do Estado autoritário, exercitar e experimentar todo tipo de ângulos nas matérias noticiosas, análises e reportagens, não poucas vezes com estridência, deslizes e contradições, mas sobretudo com assumidas cores partidárias e ideológicas.

Boa parte da imprensa mexicana, por exemplo, joga a favor do candidato presidencial, Felipe Calderón, do situacionista PAN – Partido de Acción Nacional, conservador. As pesquisas eleitorais, algumas delas feitas por empresas associadas aos próprios jornais, também contribuem para distorcer o quadro, o que acaba gerando não pouca confusão na cabeça dos leitores (e eleitores). E, ao dar amplo espaço a uma ‘guerra suja’ entre os candidatos, polarizam ainda mais a já conturbada atmosfera política às vésperas das eleições presidenciais marcadas para 2 de julho.

O professor Rafael Serrano, consultor de comunicação política da Universidade da Cidade do México, há 26 anos meticuloso analista das mudanças nos meios de comunicação locais, alerta que, nessa situação inquietante, é preciso entender que ‘a transição para a democracia no México tem sido lenta, tortuosa e não isenta de contradições, pois embora os meios de comunicação continuem sendo dependentes do Estado, existe, ironicamente, total liberdade de expressão’.

Nesta entrevista exclusiva ao Observatório da Imprensa, Serrano explica essa mexicaníssima ambivalência e aborda outros aspectos do problema.



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Se dependem tanto dos anúncios oficiais, como podem os meios de comunicação manter a independência editorial?

Rafael Serrano – De fato, ainda dependem – pelo menos a imprensa escrita – entre 60% e 70% da publicidade dos governos federal, estaduais e municipais. Ocorre, porém – e isso devemos lembrar sempre –, que depois de 8 de julho de 1976, quando o ex-presidente Luís Echeverría, furioso com a postura crítica do jornal Excelsior, o único a desrespeitar gloriosamente a férrea linha oficial, mandou empastelar redação e oficinas, delas expulsando o jornalista Julio Scherer e sua equipe, a situação mudou aos poucos mas radicalmente. Scherer, grande homem de imprensa, decidiu, naquele momento, que para continuar fazendo um bom jornalismo teria que seguir sua intuição e experiência: o importante, o fundamental é, a todo custo, fazer jornalismo para os leitores, não para os poderosos. Ele fundou a combativa revista semanal Proceso e dela saíram vários filhotes, criativos e rebeldes. A imprensa mexicana, num processo paralelo à própria democratização do país, não mais seria a mesma a partir daquela enorme arbitrariedade, e ninguém mais seguraria os bons jornalistas e muito menos o bom jornalismo.

Como se deu, por dentro, esse processo de liberou geral?

R. S. – Na prática, a imprensa escrita ainda continua concentrada no sistema político mexicano, girando ao seu redor, dessa forma pervertendo seu objetivo básico, que é servir os leitores. Mas houve, nos últimos dez anos, além da mudança de mentalidade nos profissionais, uma ampla reorganização no setor, que produziu o surgimento, ou a reformulação, de empresas mais bem estruturadas em termos comerciais, dispondo de alta tecnologia e pessoal de redação de excelente nível, caso particular do Reforma, El Universal e La Jornada. São jornais com circulação que oscila entre 80 mil e 120 mil exemplares diários, que oferecem um jornalismo autônomo e independente até certo ponto, pois se ‘partidarizaram’, fazendo, cada um a sua maneira, proselitismo de direita ou de esquerda – Reforma e El Universal liberais mais ao centro, La Jornada e Proceso bem à esquerda. Deveriam, e poderiam, ser mais objetivos, investigando mais a fundo e emitindo opiniões mais sóbrias, conferindo assim maior transparência e relevância às matérias. Mas não há dúvida, quando lembramos de como era a imprensa mexicana de anos passados, de que os avanços na democratização da informação têm sido notáveis, e hoje o leitor dispõe de um bom leque de veículos sérios e competentes.

Mas como se harmonizam aquela ainda existente dependência das verbas oficiais e a tal ‘partidarização’?

R. S. – Esse é o lado curioso do problema, uma jogada bem peculiar ao sistema mexicano: ao se tornarem mais autônomos, los medios de fato se partidarizaram e agora negociam de tú a tú com o Estado. Pois ao dispor de recursos respeitáveis em termos empresariais, podem manter a independência, ainda que absorvendo o dinheiro governamental, que não é de jogar fora. No fundo, trata-se de uma busca da credibilidade, fator que a todos interessa: ao governo, que dá uma de liberal, democrático; e à imprensa, que sabe que não mais pode enrolar os leitores, hoje muito mais atentos e exigentes, já que a concorrência entre os jornais permite que eles escolham à vontade. Além, é claro, dos estragos feitos pela internet, com seus sites, blogs etc. Só na Cidade do México existem hoje 32 jornais diários! É certo que a grande maioria, pequenos, só sobrevive graças aos anúncios oficiais, mas pelo menos dez têm condições de escrever e publicar o que bem entender, sem pressão alguma por parte do poder. Se não houver anúncios oficiais, tudo bem, eles se agüentam com a fartíssima publicidade do setor privado – caso principalmente do Reforma.

Nesse panorama, como funcionam o rádio e a TV?

R. S. – O rádio mexicano, também nas mãos de grupos privados e fortes, é hoje ainda mais crítico e agressivo no seu jornalismo do que a imprensa escrita. E a TV, depois de tantos anos abjetamente submetida ao poder, sobretudo por razões de sobrevivência – afinal, as concessões são federais –, agora também descobriu a existência de telespectadores inteligentes, que não querem mais saber de tanta empulhação. Hoje, as duas principais emissoras, a Televisa e a Azteca, já dão sinais alentadores de mais objetividade em suas coberturas e comentários. Na condição de oligopólios em que se constituíram, defendem-se melhor de eventuais ataques do poder e assim podem informar e opinar mais à vontade. [Números oficiais revelam que as duas emissoras, na atual campanha eleitoral, levam a maior parte do bolo publicitário, captando 82% do investimento das candidaturas, além de 71% de todo o gasto acumulado dos partidos.]

E como los medios se preparam para o day after da eleição?

R. S. – É inevitável: essa inclinação partidista, até certo ponto oportunista, deverá desaparecer no dia 3 de julho; los medios ficarão mais sossegados, deixando de lado o barulho e a agitação, fazendo um jornalismo mais equilibrado e objetivo, com contextos mais amplos e opiniões mais matizadas. Por outro lado, como se trata de recursos astronômicos em jogo, tanto de um lado como do outro, los medios terão, de alguma forma, que se compatibilizar com o novo governo em termos comerciais, com destaque para a TV. Só no ano passado, o presidente Vicente Fox gastou 300 milhões de dólares na TV para promover sua imagem e a do governo. Agora, as duas emissoras, capitalizando a futuro, apóiam discretamente o candidato governamental, Felipe Calderón. Mas, e se ganhar o candidato opositor do PRD – Partido de la Revolución Democrática, de esquerda, Andrés Manuel López Obrador?

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Jornalista e escritor brasileiro radicado na Cidade do México