Monday, 23 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Carta Capital

GLAUCO
Rosane Pavam

O gênio na nuvem

‘Para mim, antes de tudo leitora, Glauco era um gênio esfumaçado, um poema do Ramones. Um poema a evocar aquela célebre letra do grupo de rock americano que pedia não a morte ou a trip eterna dos homens, mas o temporário torpor. Glauco era um gênio do Brasil porque, dentro de sua nuvem imaginativa, reescrevia este país doce e continuamente, sem mágoa, com diversão e respeito.

Sua turma era a de Angeli e Laerte, outros desenhistas e fabulistas brasileiros extraordinários, los tres amigos, como se auto-intitularam e desenharam de maneira paródica há um par de décadas. Convenhamos que Angeli também sabe construir tipos. Mas ri deles. Ele é muito diferente de Rê-Bordosa, o exato oposto de Bibelô, tripudia Meia-Oito, é superior aos três. Laerte especializou-se em materializar de forma inimaginável o pensamento. Quem raciocina como Laerte não precisa de mais nada, a rigor, nem mesmo desenhar.

São os dois, assim, perfeitamente diferentes de Glauco, o grande amigo. Ele não era superior aos personagens que criava, nem os interiorizava. Simplesmente significava um deles, à moda do que apontava Gustave Flaubert em sua Bovary. Glauco parecia ser exatamente o Geraldão das agulhas excessivas, do muito querer esquecer-se, do muito desejar viver. Tivera tempo de ensinar às crianças a poesia que há em enfileirar sorvetes como Geraldinho, e apontar em que essas habilidades poderiam dar.

Não estranhe a comparação. Glauco não era um romancista do século 19 francês. Era, como se disse antes, um gênio divertido, solto, simples do Brasil, que sabia reproduzi-lo no tom da verdade, habilidade que fez de Flaubert um Flaubert e de Glauco, um autor de poemas.

Veja Dona Marta, um dos maiores tipos ficcionais do desenho. A tal senhora sabe ou não sabe que envelheceu e que não há homem nesse mundo, especialmente o homem jovem, que tope o seu fervor? O que é qualquer auto-estima de um ser humano diante daquela que Martinha tem? Ela é a maior fashion lady possível, totalmente sem noção, figura terna de alheamento. E uma batalhadora, também. Marta e qualquer brasileiro têm de meter os peitos em sociedade, ou a sociedade não os verá, o artista percebeu.

Nos anos 80, trabalhei algo perto de Glauco, mas, redatora das coisas da cidade na Folha de S. Paulo, mal o via ou ele, a mim. Bem, ele não me veria de qualquer modo. Estava sempre por lá, profissional, sorridente, mas ocupado com coisas mais importantes, dentro ou fora da estranha nuvem.

A cada pequena caricatura sua de Lula, por exemplo, víamos um homem inteiro. Ele não precisava de muitos traços para definir o metalúrgico, o líder sindical, o presidente. Uma barbinha, uma perninha em movimento, multiplicada em muitas, desnudava o tipo, imediatamente reconhecível por qualquer leitor sem imaginação. Glauco saía incólume de todo o posicionamento político de seu jornal, já que não direcionava o pensamento a uma ideologia, antes à essência existencial dos homens públicos, sua grandeza ou a mediocridade sem fim.

Glauco, de 53 anos, morto a tiros sexta-feira 12, em sua casa de Osasco, junto ao filho Raoni, de 25, supostamente por alguém da comunidade com a qual ele contribuía, foi vítima de uma barbárie. Mais uma daquelas brasileiras a ultrapassar qualquer sentido. Sua vida foi curta, intensa e estranha, mas ele soube rir.’

 

OSCAR
Rosane Pavam

Corações e mentes

‘Desprovida da comicidade exercida em filmes populares e em seu próprio talk show, Mo’Nique sobe ao palco do californiano Kodak Theater, no domingo 7, vestida de intenso azul. A atriz americana, coadjuvante em Preciosa, agradece à Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood pela estatueta que lhe dá. Mas é um agradecimento inesperado. Mo’Nique cumprimenta o pessoal do Oscar por basear suas escolhas em performance, não em política.

Mais um personagem reluzente no auditório onde se dá a 82ª cerimônia de entrega do prêmio, a atriz merece as honras por haver tornado crível, na grande tela, a crueldade maternal. Sem contar que exulta por ter deixado o gueto onde estão confinados os cômicos negros sem glamour. Mas ela talvez tenha se precipitado ao identificar apenas critérios estéticos na concessão da mais alta honraria do cinema.

Do palco do Kodak, além de premiações à performance, saem recados à globalidade que prestigia a cerimônia (nos Estados Unidos, este ano foi o mais receptivo à entrega do Oscar desde 2005, com 41 milhões de espectadores contra os 42 milhões da cerimônia em que Menina de Ouro, de Clint Eastwood, saiu vencedor). Embora sejam também estéticos, afirmativos da necessidade de filmar à maneira conservadora, responsável por levar o público aos cinemas, esses não são os únicos critérios a considerar. As obras escolhidas devem obedecer a uma silenciosa ideologia de consenso.

Neste ano, os filmes e seus protagonistas esforçaram-se por demonstrar a fragilidade americana, cuja economia, para lembrar uma fala recente do apresentador David Letterman em seu programa noturno, se parece com um trenó que desce a montanha nas Olimpíadas de Inverno. Os filmes do ano exibiram personagens masculinos combalidos e mulheres fortes. Os homens foram aqueles que erraram, como se ecoassem a arrogância do ex-presidente George W. Bush no Oriente. As mulheres, ao contrário, mantidas algo longe da batalha, perseguiram, na intimidade dos subúrbios, a democracia e a tolerância racial.

A mensagem insinuada é que elas refarão o brilho americano nas mentes do mundo. Serão indomáveis como a Mo’Nique de Preciosa, determinadas como Sandra Bullock, vencedora por Um Sonho Possível, e ativas como Kathryn Bigelow, a primeira mulher a ganhar um Oscar pela direção, por Guerra ao Terror. Lutarão sem trégua por valores que jamais deveriam ter sido esquecidos e que tornaram hegemônicos uma nação e seu modo de pensar.

Esses valores dizem respeito às premissas da individualidade sobre o sistema, da família sobre a satisfação pessoal e da disposição incansável ao trabalho, que nos torna limpos contra a especulação e a corrupção, estas que ultrapassaram o limite do aceitável na América recente. Ninguém engole o erro estratégico de Bush, que submeteu os americanos a um interminável Vietnã no Iraque.

É hora de reconstruir as noções de liberdade, e uma peça de ficção, entre essas selecionadas, bastaria para exemplificá-las. É em verdade uma má ficção, Crazy Heart, o Coração Louco (algo evocativa de Corações Loucos, de Bertrand Blier) dirigido por Scott Cooper. Que filme, para ganhar o Oscar, necessita ser bom? Basta que seja modelar. Nesse Crazy Heart, um músico country decaído pela bebida busca a reabilitação ao encontrar uma mulher. Ela é a mãe sensível desiludida, e ele almeja seu carinho familiar.

Jeff Bridges recebeu seu Oscar pelo trabalho e agradeceu aos pais, que o fizeram atuar desde a infância. Aos 60 anos, ele há muito merecia a honraria, desde que seu adolescente fizera par com a bela Cybill Shepherd em A Última Sessão de Cinema, de Peter Bogdanovich (1971), e que seu otimista Tucker, no filme de Francis Ford Coppola Tucker – O Homem e Seu Sonho (1988), tudo arriscara pelo empreendimento automobilístico inovador. Ele é o americano exemplar.

Enquanto os personagens de Bridges têm um enorme coração, os de Sandra Bullock mostram as pernas. No início da carreira, ela era um equivalente feminino de Indiana Jones, em filmes como A Rede (1995), e assim prosseguiu, correndo, ao lado de gente inexpressiva como o Keanu Reeves da série Speed. Sandra tem ritmo para a comédia. Emocionada por sua premiação como a mãe adotiva de um negro esportista, tendo rido a valer antes disso, ao receber o Framboesa de Ouro como pior atriz por All About Steve, ela deu um show na cerimônia do Oscar.

Sandra começou por homenagear outras concorrentes ao prêmio, Gabourey Sidibe pela excelência, Meryl Streep por seu beijo (Sandra procurara os lábios da veterana no Globo de Ouro) e Carey Mulligan, de Educação, por ser tão linda que a deixava doente. A mãe de Sandra, como aconteceu a Bridges, insistiu que ela estudasse para ser artista, e lhe ensinou a ser tolerante. A atriz dedicou seu prêmio àquelas que amam seus filhos, não importa de onde eles venham. Lembrou as pessoas que foram boas para ela quando isso ‘não era moda’. O agradecimento excluiu George Clooney, que um dia a jogou na piscina.

É outro o fascínio exercido pela diretora que venceu por Guerra ao Terror, Kathryn Bigelow. Uma das fortes, ela joga o epíteto de mulherzinha no lixo. Reconstrói a óbvia inclinação americana à aventura com uma câmera muitas vezes subjetiva, que reproduz a respiração dos protagonistas, soldados responsáveis por desarmar bombas no Iraque. Guerra ao Terror cita os jogos de videogame e obras como Platoon, entre outras, nas quais os personagens típicos são corajosos, covardes ou iniciantes dentro da guerra. Quase não há música para edulcorar esse universo. Os iraquianos, não se sabe se bons ou maus, olham ameaçadores a distância.

Kathryn, que ganhou dois Oscar, como diretora e por seu filme, refaz o horror de maneira seca, editada sem desperdício (e o Oscar premiou a montagem de Bob Murawski e Chris Innis). A diretora não adula a figura dos oponentes, e sua sinceridade nesse ponto foi percebida por poucos e bons. Até o início desta semana, Guerra ao Terror, vencedor em seis categorias, havia rendido cerca de 22 milhões de dólares em bilheteria no mundo, contra os 2,5 bilhões de Avatar, o grande perdedor da noite ao levar apenas estatuetas técnicas (de fotografia, direção de arte e efeitos especiais). Que o Oscar honre um filme incapaz de gerar bilheteria prova suas intenções. O prêmio, antes de salvar a indústria cinematográfica, precisa garantir que o capitalismo seduza, ou toda a indústria advinda desse sistema deixará de existir.

O filme de James Cameron, contudo, se viu incapaz de assimilar tal lógica. Seus avatares foram seres excepcionais, de intenções supostamente ecológicas e atualizadas, mas, ao fim, usaram métodos que deveriam estar em desuso ou seriam indesejáveis à imagem do americano limpo, em harmonia com um tempo novo. O pacifismo não corre no sangue azul do diretor. No filme, um soldado americano é o único capaz de manter a vida dos selvagens, cujo poder xamânico ele desautoriza. Para preservar a Pandora que ele mesmo tornou vulnerável, dispensará a guerrilha em favor dos métodos bélicos dos poderosos. Não parece ser esta a mensagem que, no momento, o Oscar deseja reiterar.

A Academia fixou uma estética, como quis a vencedora Mo’Nique, mas também o pensamento que construiu a fama americana no cinema. O filme a fazer isso com mais competência foi, malgrado a estranheza, o argentino O Segredo dos Seus Olhos, vencedor do Oscar como melhor filme estrangeiro. Seu diretor, Juan José Campanella, já trabalha para Hollywood, tendo contribuído para episódios de séries como House e Law and Order. A sua é uma belíssima obra em formato tradicional. Nas narrativas paralelas que se espalham pelo tempo, os protagonistas, honestos e raros funcionários de um departamento de Justiça, com a idade modificada por maquiagem, tentam desvendar um crime comum e atroz.

O inesperado é que o assassinato em questão, o de uma bela jovem, dê-se em meio aos prenúncios da ditadura argentina, acobertado por juízes e policiais racistas e corruptos. Apesar disso, a saga do filme é íntima. Ela revela os efeitos de um sistema funesto sobre a individualidade de seus cidadãos. O diretor Campanella agradeceu o fato de a língua Na’vi, falada em Avatar, não ter afastado o filme de Cameron da categoria principal de melhor filme, o que derrubaria suas chances de levar o prêmio como estrangeiro. O argentino foi elegante. Avatar, que concorria em seis categorias, passou longe das intenções e dos olhos da Academia.’

 

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