Friday, 27 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Veja

TELEVISÃO
Marcelo Marthe

As Big Sisters

‘Com o fim do Big Brother Brasil 10, na semana que vem, muitos espectadores sentirão alívio por se ver livres daquela gente exibicionista e barraqueira. Mas não Lilian Novaes, dona de casa de classe alta do Rio de Janeiro. ‘Sempre sinto um vazio terrível. Para recuperar as forças, meu remédio será fazer um cruzeiro pela Escandinávia’, diz ela. Da mesma carência padece Susan Mello, gerente de banco da cidade fluminense de Niterói. ‘Meu marido me flagra pelos cantos choramingando: ai, que saudade dos meus brotherzinhos’, afirma. Lilian e Susan travam uma batalha acirrada pelo título de blogueira amadora mais influente do Big Brother Brasil. Mulher de um executivo das Organizações Globo, Lilian incorpora na internet, desde 2003, uma certa ‘Dona Lupa’. À frente do blog Tevescopio, com 40 000 acessos diários, ela torce desbragadamente para os participantes com quem simpatiza e monitora até os detalhes mais fátuos de suas rotinas (daí a menção à lente de aumento). O De Cara pra Lua, criado por Susan em 2004, a despeito de enveredar por tentativas de análise, oferece o mesmo tipo de coisa. Embora menos visitado (são 35 000 acessos por dia), faz barulho suficiente para tornar Susan outra figura prestigiada. Assim como se dá em relação à rival, seu site é acompanhado com atenção pela própria Globo. Na atual edição, Lilian é a ponta de lança da torcida do machão Marcelo Dourado. Susan, naturalmente, está no front oposto: toma as dores da ala colorida da casa. ‘São duas mulheres cegas em suas paixões’, diz o diretor Boninho.

A dupla é a expressão extrema de um fenômeno que se faz notar com força na atual edição: a proliferação de brigadas de fãs que se engalfinham na internet e promovem mobilizações maciças nas votações. ‘O Big Brother tornou-se um negócio para profissionais’, diz Susan. Profissionais não pagos, ressalve-se: ela e sua concorrente não ganham um tostão com o que fazem (Lilian, de fato, até põe dinheiro do bolso, pois mantém assistentes e uma parafernália tecnológica). As duas assistem a quase vinte horas diárias de transmissões em pay-per-view. Susan, de 48 anos, tira férias para se devotar à rotina dos participantes, e ainda gasta os fins de semana debatendo a ética deles no ‘jogo’. Lilian, de idade não revelada (‘Pode pôr aí que já passei há muito tempo dos 50 anos’), comanda vigílias nas madrugadas para fiscalizar as provas. ‘Como não trabalho, tenho o privilégio de acompanhar cada vírgula’, diz. Nos três meses de duração do BBB, o dia a dia da família muda, pois ‘Dona Lupa’ transforma a sala de estar de seu apartamento na Zona Sul carioca num bunker com computadores e televisores – todos plugados, de preferência, em Marcelo Dourado (que, na cegueira da paixão, ela considera ter ‘uma retórica fantástica e um corpão alucinante’). ‘Ai de meu marido e de minhas filhas se ousarem quebrar minha santa concentração’, diz.

O voyeurismo explica por que milhões de espectadores continuam a se render ao Big Brother – mas por si só não justifica tais fixações exacerbadas. ‘Podemos enxergar nisso um desejo de ser o centro das atenções. Ou um mecanismo de fuga: assiste-se à vida dos outros para não ter de viver a sua’, diz a psicóloga Lidia Weber. Essas hipóteses talvez sejam ainda insuficientes para dar conta desse universo – inclusive porque as fronteiras entre a vida das blogueiras e a de seus ídolos do BBB são borradas. Susan diz ter ficado amiga de ex-participantes como Sabrina Sato. ‘Ela não se esquece de mim nem nessa sua fase superstar’, diz. Lilian não fica atrás. Travou amizade com parentes de big brothers. E, ao fim de cada edição, convida os preferidos para jantar com ela. Ela os vê com cumplicidade. ‘Montei um estúdio para acompanhar o programa em minha casa na serra. Mas não consigo ir – aqui me sinto mais perto deles’, diz.

Susan e Lilian já foram recompensadas com visitas à casa do BBB. Hoje, não mais. ‘A briga entre elas virou uma coisa tão louca que vetei as duas’, diz Boninho. Não é mesmo aconselhável convidá-las para um mesmo programa. Lilian acusa Susan de vira-casaca – ela foi contra o gay Jean numa edição anterior do BBB e agora, denuncia, estaria posando de anti-homofóbica. ‘Eu sou uma mulher verdadeira. Não preciso me esconder atrás de nome falso’, diz Lilian (para, em seguida, sussurrar: ‘Você sabia que ela não se chama Susan coisa nenhuma? É Lu-zi-a’). Responde Susan: ‘Se cada uma cuidar do próprio quintal, o jogo fica mais bacana’. Essa máxima faz pensar que, talvez, ela tenha lido o Cândido, de Voltaire… Não, Voltaire é que leu as Susans de seu tempo.’

 

Marcelo Marthe

Pelas barbas do profeta

‘Na minissérie A História de Ester, no ar há três semanas, os bispos da Record extraem um elemento insuspeito das Escrituras: o humor involuntário. Ba-sea-da no livro bíblico que narra a paixão da judia Ester por um rei persa em 400 a.C., a produção de 5 milhões de reais tem batalhas que emulam as do filme americano 300. O embate que ressalta na tela, contudo, é outro: saber qual ator ostenta a barba postiça mais ridícula. Na opinião desta revista, os veteranos Paulo Figueiredo e Paulo Gorgulho levam de barbada. O primeiro (o nobre Memucã) tem o rosto e a cabeça cobertos por copiosos pelos brancos, além de um adereço carnavalesco na testa. Já Gorgulho (o vilão Hamã) surge com cabelo e barba em tons e texturas distintos entre si. Para completar, a série tem um núcleo de eunucos carecões. Talvez por fidelidade ao nome bíblico – Hegai –, o principal deles (André di Mauro) usa lápis nos olhos e se esmera nos ‘uis’. Ao minimizar o drama de um recém-castrado, pontificou: ‘No começo, é difícil. Mas, com o tempo, ele supera’. É uma frase insuperável.’

 

INTERNET
Silvia Rogar e João Figueiredo

Quando a rede vira um vício

‘‘Com 14 anos, ganhei meu primeiro computador e fui, pouco a pouco, me tornando dependente dele, sem me dar conta da gravidade disso. Há seis meses, desde que concluí a escola e fiquei ociosa, ainda sem saber qual faculdade seguir, passo em média oito horas por dia navegando — e sempre me parece insuficiente. Na internet me refugio da timidez. Tenho um blog e frequento as redes sociais, onde já conto com 300 amigos e arranjei até namorado. Só me sobrou uma amiga dos tempos pré-internet, e as refeições eu faço apenas em frente à tela. Vivo num mundo tão à parte que, confesso, saio à rua e acho tudo estranho. Sou uma pessoa improdutiva, e o mais assombroso é que tenho total consciência disso. Ainda não procurei tratamento, mas talvez seja o caso.’

Marilia Dalabeneta, 18 anos

Com o título ‘Preciso de ajuda’, Carolina G. fez um desabafo aos integrantes da comunidade Viciados em Internet Anônimos, a que pertence no Orkut: ‘Estou muito dependente da web. Não consigo mais viver normalmente. Isso é muito sério’. Logo obteve resposta de um colega de rede. ‘Estou na mesma situação. Hoje, praticamente vivo em frente ao computador. Preciso de ajuda.’ O diálogo dá a dimensão do tormento provocado pela dependência da internet, um mal que começa a ganhar relevo estatístico, à medida que o uso da própria rede se dissemina. Segundo pesquisas recém-conduzidas pelo Centro de Recuperação para Dependência de Internet, nos Estados Unidos, a parcela de viciados representa, nos vários países estudados, de 5% (como no Brasil) a 10% dos que usam a web — com concentração na faixa dos 15 aos 29 anos. Os estragos são enormes. Como ocorre com um viciado em álcool ou em drogas, o doente desenvolve uma tolerância que, nesse caso, o faz ficar on-line por uma eternidade sem se dar conta do exagero. Ele também sofre de constantes crises de abstinência quando está desconectado, e seu desempenho nas tarefas de natureza intelectual despenca. Diante da tela do computador, vive, aí sim, momentos de rara euforia. Conclui a psicóloga americana Kimberly Young, à frente das atuais pesquisas: ‘O viciado em internet vai, aos poucos, perdendo os elos com o mundo real até desembocar num universo paralelo — e completamente virtual’.

Não é fácil detectar o momento em que alguém deixa de fazer uso saudável e produtivo da rede para estabelecer com ela uma relação doentia, como a que se revela nas histórias relatadas ao longo desta reportagem. Em todos os casos, a internet era apenas ‘útil’ ou ‘divertida’ e foi ganhando um espaço central, a ponto de a vida longe da rede ser descrita agora como sem sentido. Mudança tão drástica se deu sem que os pais atentassem para a gravidade do que ocorria. ‘Como a internet faz parte do dia a dia dos adolescentes e o isolamento é um comportamento típico dessa fase da vida, a família raramente detecta o problema antes de ele ter fugido ao controle’, diz o psiquiatra Daniel Spritzer, do Grupo de Estudos sobre Adições Tecnológicas, sediado no Rio Grande do Sul. A ciência, por sua vez, já tem bem mapeados os primeiros sintomas da doença. De saída, o tempo na internet aumenta — até culminar, pasme-se, numa rotina de catorze horas diárias, de acordo com o estudo americano. As situações vividas na rede passam, então, a habitar mais e mais as conversas. É típico o aparecimento de olheiras profundas e ainda um ganho de peso relevante, resultado da frequente troca de refeições por sanduíches — que prescindem de talheres e liberam uma das mãos para o teclado. Gradativamente, a vida social vai se extinguindo. Alerta a psicóloga Ceres Araujo: ‘Se a pessoa começa a ter mais amigos na rede do que fora dela, é um sinal claro de que as coisas não vão bem’.

‘Só o sono me faz parar’

‘Há dois anos, minha relação com a internet deixou de ser saudável. Sinceramente, não sei em que momento eu perdi a medida. Entro no computador para trabalhar em meu projeto de conclusão de curso da faculdade e, quando me dou conta, estou às voltas com conversas infindáveis no Orkut. Isso me preenche. Sei que pode me custar até uma repetência, mas é irresistível. Já faltei a muita festa de amigo só para ficar on-line. Minha mãe acha que devo moderar, e talvez esteja certa. Cogito procurar ajuda médica. Hoje, nada no mundo faz com que eu me desconecte daquele computador — só o sono.’

Tiago Lourenço, 25 anos

Os jovens são, de longe, os mais propensos a extrapolar o uso da internet. Há uma razão estatística para isso — eles respondem por até 90% dos que navegam na rede, a maior fatia —, mas pesa também uma explicação de fundo mais psicológico, à qual uma recente pesquisa da Universidade Stanford, nos Estados Unidos, lança luz. Algo como 10% dos entrevistados (viciados ou não) chegam a atribuir à internet uma maneira de ‘aliviar os sentimentos negativos’, tão típicos de uma etapa em que afloram tantas angústias e conflitos. Na rede, os adolescentes sentem-se ainda mais à vontade para expor suas ideias. Diz o psiquiatra Rafael Karam: ‘Num momento em que a própria personalidade está por se definir, a internet proporciona um ambiente favorável para que eles se expressem livremente’. No perfil daquela minoria que, mais tarde, resvala no vício se vê, em geral, uma combinação de baixa autoestima com intolerância à frustração. Cerca de 50% deles, inclusive, sofrem de depressão, fobia social ou algum transtorno de ansiedade. É nesse cenário que os múltiplos usos da rede ganham um valor distorcido. Entre os que já têm o vício, a maior adoração é pelas redes de relacionamento e pelos jogos on-line, sobretudo por aqueles em que não existe noção de começo, meio ou fim. ‘Hoje eu me identifico mais com Furyoangel, meu apelido na web, do que com meu próprio nome’, reconhece Marcelo Mello, 29 anos, ex-estudante de direito e gerente de uma lan house no Rio de Janeiro.

Desde 1996, quando se consolidou o primeiro estudo de relevo sobre o tema, nos Estados Unidos, a dependência da internet é reconhecida — e tratada — como uma doença. Surgiram grupos especializados por toda parte, inclusive no Brasil, como o da Santa Casa de Misericórdia, no Rio de Janeiro, e o do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas, na Universidade de São Paulo. ‘Muita gente que procura ajuda aqui ainda resiste à ideia de que essa é uma doença’, conta o psicólogo Cristiano Nabuco de Abreu. O prognóstico é bom: em dezoito semanas de sessões individuais e em grupo, 80% voltam a níveis aceitáveis de uso da internet. Não seria factível, tampouco desejável, que se mantivessem totalmente distantes dela, como se espera, por exemplo, de um alcoólatra em relação à bebida. Com a rede, afinal, descortina-se uma nova dimensão de acesso às informações, à produção de conhecimento e ao próprio lazer, dos quais, em sociedades modernas, não faz sentido se privar. Toda a questão gira em torno da dose ideal, sobre a qual já existe um consenso acerca do razoável: até duas horas diárias, no caso de crianças e adolescentes. Quanto antes a ideia do limite for sedimentada, melhor. ‘Os pais não devem temer o computador, mas, sim, orientar os filhos sobre como usá-lo de forma útil e saudável’, avalia a psicóloga Ceres Araujo. Desse modo, reduz-se drasticamente a possibilidade de que, no futuro, eles enfrentem o drama vivido hoje pelos jovens viciados.

Três anos perdidos

‘Desperdicei três anos da minha vida jogando Tibia, um game no computador cuja graça, para aficionados como eu, é ser infinito. Passava pelo menos seis horas por dia em frente à tela e, longe dela, não conseguia pensar em outra coisa senão na hora em que voltaria ao jogo. Foi uma época negra. Não saía de casa e perdi os amigos. Estava tão isolada que, por iniciativa própria, decidi restringir, por ora, o computador na minha vida. Esse processo de desintoxicação, imagino, deve ser tão sofrido quanto o daqueles que tentam largar o álcool. Você precisa reatar as velhas amizades e até se acostumar de novo à vida ao ar livre. O saldo é bom.’

Caroline Parreiras, 18 anos

O computador é como um filho

‘Cheguei a cursar a faculdade de direito, mas me dei conta de que o que queria mesmo era alguma atividade ligada ao computador. Por isso, virei gerente de lan house, local onde me sinto em casa. O mundo que se abre na internet é infinitamente mais estimulante do que o real. Quando o jogo é bom, não paro nem para comer. Isso para não falar da alegria de explorar novos aplicativos e baixar um filme que ninguém mais tem. Se estou com dinheiro na mão, gasto tudo em melhorias para o computador. É como um filho. Talvez devesse ter uma vida mais sociável e pisar um pouco no freio com a internet, mas, para ser franco, não é o que eu quero. Hoje, gosto mais de ser chamado pelo meu apelido na web, Furyoangel, do que pelo meu próprio nome.’

Marcelo Mello, 29 anos’

 

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