‘Há duas semanas o tema da moção de censura ao Governo anunciada pelo Bloco de Esquerda dominava o noticiário político. Perdeu depois o fôlego, quando se tornou claro que os partidos à direita do PS não estavam dispostos a contribuir para a sua aprovação, e se constatou que o próprio BE dava sinais de preferir vê-la reprovada. As clivagens provocadas pela iniciativa no seio do próprio partido proponente e na sua área de influência terão acabado por receber maior atenção noticiosa do que a antecipação do seu debate no Parlamento, que ocorrerá dentro de alguns dias e terá como desfecho anunciado a derrota da moção e a sobrevivência do actual Governo.
No passado dia 11 ainda não era assim e a comunicação social tomou a sério a iniciativa do Bloco, o que se compreende, já que é próprio das moções de censura visarem o derrube dos governos que não dispõem de uma maioria absoluta no Parlamento. Fez bem o PÚBLICO, por isso, em incluir na sua edição desse dia um texto de enquadramento que visava esclarecer as condições (de aritmética parlamentar) necessárias ao triunfo de uma moção de censura, bem como as consequências políticas da sua aprovação, nos termos constitucionais.
Um texto desse tipo, publicado no momento certo e eventualmente acompanhado — como neste caso — por uma representação gráfica dos dados em que se fundamenta, é uma obrigação editorial. Não traz informação nova; recapitula, organiza e apresenta a informação de fundo existente, para proporcionar aos leitores a compreensão rigorosa de um tema que domina a actualidade informativa. É por isso particularmente lamentável que falhe o seu próprio objectivo, como aconteceu, ao errar duplamente — no enquadramento aritmético e no enquadramento constitucional da situação criada pelo anúncio da moção do BE.
Dois leitores atentos deram de imediato conta do seu desagrado, coincidindo na crítica ao gráfico intitulado ‘Cenários de aprovação de uma moção de censura’, em cuja legenda se afirmava que as combinações CDS+PSD+BE (118 deputados) ou CDS+PSD+BE+PCP/PEV (133) ‘são os únicos dois cenários em que é possível aprovar uma moção’ deste tipo com a ‘actual composição da Assembleia da República’. De facto, não é assim. Existe um terceiro cenário, o de uma moção votada favoravelmente por CDS, PSD e PCP/PEV (117 deputados, mais um do que a maioria absoluta necessária à aprovação da censura ao Governo numa assembleia de 230 representantes).
Dir-se-á, e foi essa a explicação que recebi, que o que estava em causa naquele momento era a moção apresentada pelo BE, pelo que não faria sentido considerar esse terceiro cenário. No entanto, como nota um dos leitores, ‘nada, nem no título dos gráficos, nem no texto da legenda, indica que não se esteja a tratar de um quadro geral de possibilidades de aprovação de moções de censura no actual quadro parlamentar’. A reforçar esta leitura, recorde-se que o PÚBLICO afirmara em título, três dias antes, que ‘PCP admite apresentar moção de censura e PSD não exclui hipótese de a apoiar’.
A confusão no plano da aritmética política estendia-se ao texto intitulado ‘O PSD dança o tango ou à terceira é de vez?’, onde se lia, logo a abrir, que para aprovar uma moção de censura ao Governo socialista na legislatura em curso ‘são precisos (…) três partidos e um deles, obrigatoriamente, o PSD’, pois ‘quanto aos outros, a geografia é variável’. Também não é exacto. Como nota o leitor Carlos Queirós, ‘o voto a favor do CDS é igualmente obrigatório’, pois ‘PSD, BE e PCP/PEV em conjunto só têm 112 deputados’. Este erro reaparece mais adiante, quando o texto permite a leitura de que uma conjugação de votos entre PSD e BE bastaria para fazer passar a moção, voltando a ignorar-se o CDS.
Mais grave, contudo, e inaceitável nas páginas de noticiário político do jornal, é a afirmação errada, que se repete no texto e ressurge na legenda do gráfico, segundo a qual a aprovação de uma moção de censura ao Governo conduziria necessariamente à dissolução do Parlamento. Chega a afirmar-se que, nesse caso, ‘a Assembleia da República auto-dissolve-se’, e que ao Presidente da República ‘cabe apenas (…) marcar eleições’. Ora, como bem recorda o leitor Rui Feijó, ‘a aprovação de uma moção de censura faz cair o Governo, mas mantém a AR em funcionamento, podendo esta vir a optar por uma solução política no quadro da sua composição actual, caso o PR não se decida — ele que tem poderes para tal — pela dissolução, que será sempre um gesto de vontade do PR e nunca um reflexo necessário da aprovação de uma moção de censura’. E era isto que, com clareza e rigor, deveria ter sido explicado.
A autora do trabalho, Leonete Botelho, considera que a falta dessa explicação ‘foi a maior falha deste texto’. E acrescenta: ‘Foi tendo em conta estas insuficiências que, no dia seguinte, escrevi um outro texto, explicando, à luz da Constituição e da Lei Eleitoral, qual o processo que, a partir de uma moção de censura, pode levar (e levou, da única vez que aconteceu em democracia) à dissolução do Parlamento e à marcação de eleições legislativas antecipadas ‘. Nesse texto (edição de 12/2) pode de facto ler-se que, uma vez derrubado o Governo por uma moção de censura, ‘compete ao Presidente da República procurar uma solução, começando por chamar os partidos para avaliar a possibilidade de ser constituído um novo Governo no mesmo contexto parlamentar’.
Saúde-se a correcção, sem deixar de notar que é irritante — e pouco respeitador da inteligência dos leitores e dos seus direitos — que não se mencione o erro corrigido. Um jornal sério não pode dizer num dia o contrário do que afirmou na véspera e passar olimpicamente ao lado desse facto. E menos ainda voltar a descuidar o rigor, agora no plano histórico, ao afirmar que ‘se já houve uma moção de censura aprovada em Portugal, a substituição do executivo sem eleições nunca ocorreu’. Porque na verdade ocorreu, logo no início da nossa história constitucional, após a rejeição de uma moção de confiança — que tem os mesmos efeitos que a aprovação de uma moção de censura — apresentada por um outro Governo que, curiosamente, também era socialista e não dispunha de maioria absoluta no Parlamento.
Creio que este caso revela alguma confusão quanto ao trabalho de enquadramento jornalístico, com a análise de cenários políticos (útil, mas discutível por natureza) a contaminar a explicação das regras do jogo constitucional. São géneros diferentes. No primeiro avaliam-se probabilidades, no segundo dão-se as respostas certas às dúvidas que uma situação pode gerar na opinião pública. Se os dois propósitos coexistem numa peça jornalística, é essencial cuidar de distingui-los. Neste trabalho, que o PÚBLICO valorizou como um dos destaques da edição do dia 11, é caso para dizer que faltou muito cuidado na hora de verificar o rigor da informação.
William, again
Em Novembro passado, dediquei uma parte deste espaço à questão, levantada por um leitor, de saber qual a forma mais adequada para grafar o nome do neto mais velho da rainha de Inglaterra: William, em inglês, ou Guilherme, na forma aportuguesada. Expus e ponderei os argumentos que apontavam num sentido ou noutro e inclinei-me para a segunda solução, por valorizar, como então escrevi, a ideia de que, ‘quando falamos de reis e príncipes, ou dos papas, falamos de gente que integra listas históricas, em que os nomes se repetem e são numerados’. Não sendo por isso lógico, que num rol de monarcas ingleses que, tal como já está consolidado quando escrito em português, integra quatro Guilhermes, viesse a surgir num futuro mais ou menos próximo um William V.
Ressalvei contudo, na altura, que ‘o mais importante é que o jornal siga um critério bem definido’. Ou seja, que decida como designar o dito príncipe nas suas páginas, seja optando pelo alegado ‘uso corrente’ invocado a favor da grafia original do nome, seja pela ‘coerência’com a norma tradicional de traduzir os antropónimos da realeza britânica e de outras.
A avaliar pelos comentários que então recebi, tornou-se óbvio que a escolha a fazer nunca seria consensual. Entre os leitores surgiram, com curiosa veemência, defensores empenhados de cada uma das alternativas. E a mesma diferença de opiniões se manifestou na própria redacção do PÚBLICO. O que não impedia, naturalmente, que se impusesse uma escolha.
Decorridos três meses, é fácil constatar que essa escolha não foi feita. Ou, se foi, não teve qualquer tradução prática. À medida que se aproxima um novo foco de atenção mediática em torno do neto de Isabel II, que tem casamento marcado para o final de Abril, os leitores interessados nos episódios da vida da casa de Windsor terão verificado, com provável estranheza, que a designação do noivo vai oscilando como um pêndulo nestas páginas. Só na última semana, e na mesma secção do jornal (‘Pessoas’, no caderno P2), foi Guilherme à terça e William à quinta. Já no Público Online, em coerência com a sonoridade inglesa do título, prevalece claramente a segunda forma.
Espera-se dos jornais, e penso que com bons motivos, que harmonizem critérios na grafia dos nomes. Irá o PÚBLICO decidir como chamar ao primogénito de Carlos e Diana enquanto ele é solteiro?’