Parafraseando Norberto Bobbio ao referir-se à imprensa, uma democracia se considera como tal quando todos os interesses e setores da sociedade podem manifestar sua opinião de maneira livre, orgânica e sem exclusões, usando de iguais oportunidades e direitos, respeitando os mesmos deveres.
Bastião de resistência contra as ditaduras do Cone Sul latino-americano, a imprensa alternativa, isto é, a imprensa partidária, dos movimentos sociais e sindicais, dos estudantes, dos bairros e comunidades, tanto escrita quanto oral, paradoxalmente longe de ter qualquer reconhecimento, é um dos setores que mais foi prejudicado pela democracia. Veículos de informação que tinham grande impacto e tiragem durante o processos de abertura, fecharam depois.
Os conglomerados midiáticos – que cresceram e engordaram cúmplices das ditaduras e amparados pela censura que destruiu concorrentes e adversários – agora posam de democráticos e, o que é pior, gozam de um poder como nunca antes tiveram. Principalmente, ninguém põe em discussão o que escrevem ou dizem . Primeiro, porque quase aniquilam a capacidade de comunicação da imprensa alternativa, reduzindo-a a uma função subterrânea, praticamente clandestina. Para isso, a ‘grande imprensa’, sem maiores obstáculos, obteve fabulosos investimentos privados e públicos, seja diretamente através de ‘empréstimos a fundo perdido’, como indiretamente através da publicidade.
Investimentos astronômicos e crescentes foram realizados pelo capitalismo financeiro e grandes conglomerados econômicos mundiais na montagem e desenvolvimento de meios de comunicação de direita e ultradireita tanto nos países do Primeiro Mundo quanto nos chamados em vias de desenvolvimento.
Financiamento aos grandes
Esses planos de valor estratégico e os recursos conjuntamente empregados pelos Estados em infra-estrutura de satélites, informatização e redes de transmissão, assim como em investigação científica, foram os propulsores da chamada ‘revolução tecnológica’ que teve seu principal impacto precisamente na comunicação, modificando radicalmente regimes e códigos de produção.
O controle praticamente absoluto desses novos e poderosos meios, consolidaram o domínio da comunicação por parte de um pequeno grupo de ideólogos de direita altamente profissionalizados que, enquistados nos principais centros informativos de cada país, projetam suas pautas e enfoques unilaterais através de redes globais.
O método que usam é simples e eficiente: exagerar com o sangue, o sexo, os escândalos pessoais e os espetáculos vazios de arte, talento e conteúdo. Em matéria de política econômica defendem, sobretudo, o ‘livre mercado’ de contratos e trabalho e capitais, as receitas fundomonetaristas de endividar-se e exportar para crescer, de cortar gastos sociais para pagar juros de uma dívida que, apesar de todos os esforços, continua duplicando-se a cada cinco anos. Sustentam o financiamento público dos grandes conglomerados privados, especialmente financeiros e, em causa própria, os de comunicação. Conseguem, assim, a incrível façanha de transformar em públicas as próprias dívidas, aumentar seu próprio poder e, ao mesmo tempo, valendo-se da impressionante supremacia tecnológica alcançada, liquidar qualquer expressão organizada diferente.
Pensamento único
Na política, essa ‘grande imprensa’ chantageia partidos e políticos democraticamente, ou seja, sem exceções. Se querem divulgar suas opiniões têm que ajoelhar-se da maneira mais vil que se tenha notícia na história ante seus desígnios, idéias e projetos. Do contrário, um silêncio sepulcral se abaterá sobre eles.
Um dos objetivos dessa ‘grande imprensa’ autodenominada democrática é alienar o cidadão de seus interesses, da realidade, fazê-lo esquecer seus direitos mais elementares e induzi-lo ao consumismo e à apatia política, inclusive a emitir opiniões e praticar atos que o autoprejudicam.
Como martelos pneumáticos, esses meios se abatem sobre as cabeças promovendo o individualismo, a solução do ‘salve-se quem puder’, a expressão primeira dos instintos básicos, o racismo direto ou velado, a agressão às minorias e às maiorias sem poder econômico, a aculturação forçada.
Por outra parte, são ajudados inconscientemente pelos partidos que, longe de defender interesses populares e nacionais em função de posições táticas de poder alcançadas, renunciam a promover uma imprensa verdadeiramente independente que represente interesses claros de setores sociais presentes e não encobertos.
Lamentavelmente muitos dirigentes, talvez a maioria dos quadros políticos que lutaram contra as ditaduras, terminaram convencendo-se de que pode existir uma ‘imprensa neutra ou imparcial’ e que nela é possível o debate, a confrontação de idéias, leal e aberta, de modo que os leitores, ouvintes ou telespectadores formem sua própria opinião.
Ante qualquer hipócrita pretensão de apresentar a ‘grande imprensa’ como tribuna de livre expressão, de informação plural e objetiva, de igualdade de oportunidades para defender idéias e pontos de vista diferentes, é possível observar que por detrás dessa vitrine o que predomina é a mais raivosa defesa dos interesses dos ‘poderes fortes’ a que estão aliados e os financiamentos estatais ‘a fundo perdido’ dos quais são beneficiários. As idéias, a cultura e até os gostos dos setores dominantes, da direita e ultradireita que os compactam em um pensamento único terminam predominando e, o que é pior, sendo assumidos como
seus pela maioria da sociedade, inclusive pelos adversários.
Bombardeio ininterrupto
O eixo deste azeitado sistema de enganos em cadeia é a informação. Através dela o cidadão discerne, forma sua opinião ou renuncia a tê-la. Por isso é tão importante para a ‘grande imprensa’ fracionar seus adversários, reduzir a concorrência ao ridículo e a ser, no melhor dos casos, pantomima da tendência imposta.
O ‘Irmão Maior’ sabe que a política necessária para manter o status quo significa, sobretudo, capacidade de comunicação; e que manter a hegemonia política em uma sociedade é uma luta que impõe métodos de divulgação das idéias baseados nas ciências da informação e na potência tecnológica para ocupar cada espaço de tempo e toda a atenção das pessoas e do conjunto da sociedade, de modo que todos e cada um sejam consensuais com os interesses do conglomerado midiático.
A estratégia de ocupar esta máquina monstruosa e – valendo-se da independência e consciência dos jornalistas – conduzi-la por um caminho ‘virtuoso’, evidentemente fracassou. O monstro comeu a muitos e aqueles que escaparam com vida sobrevivem nas condições mais improváveis. A imprensa partidária foi parar nas catacumbas. Órgãos de imprensa de movimentos sociais amplos e sindicatos com dezenas de milhares de filiados são divulgados como se estivessem na clandestinidade. Sobrevivem editados e distribuídos artesanalmente sem o menor apoio do Estado.
Sua periodicidade não pertence ao tempo real nem ao tempo da gente, alguns saem quando podem, são trimestrais, mensais, em casos excepcionais, semanais. Encaram uma luta praticamente inútil contra a ‘grande imprensa’ que não deixa uma brecha, bombardeando sem pausas com uma infinidade de publicações e transmissões que ocupam com tenacidade cada espaço de tempo e lugar.
Sem dúvida, ainda que muitos tenham perdido a esperança, é possível reverter essa situação catastrófica. Basta ter vontade política de fazê-lo e um plano que deve, por força, ser ambicioso: construir um Sistema de Comunicação Alternativo poderoso, eficiente e de verdade independente dos grupos econômicos e financeiros internacionais.
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Jornalista uruguaio radicado na Itália, colaborador do semanário Liberación, editado na Suécia, em língua espanhola