Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

O estudante e o linotipo

Nos anos 1930, quando o perfil do jornalista era de um boêmio, irresponsável e meio beberrão, José Hamilton Ribeiro conta que o profissional da época ‘podia ser analfabeto ou semi-alfabetizado. Enfrentava a estrutura do patronato com a fragilidade psicológica decorrente de sua errática e inconsistente formação escolar, quando havia alguma. O ambiente de trabalho era tão suspeito que nas redações não havia mulher. Principalmente à noite’.

O perfil do profissional e das redações mudou. E continua mudando. Álvaro Caldas, em Deu no Jornal (Edições Loyola), diz que hoje as redações se tornaram assépticas, inacessíveis à maioria das pessoas, sem contato com o público, e um repórter conversa com o outro, na mesa ao lado, por e-mail. Não se trata aqui de avaliar se isto é melhor ou pior que em outros períodos, até porque esse tipo de avaliação normalmente é carregada de sentimentalismos e percepções subjetivas – como o texto do cronista Mario Prata, publicado no Estado de S. Paulo (7/4/04), intitulado ‘O repórter e o linotipo’.

O texto faz referências aos cursos de Jornalismo e o desconhecimento dos estudantes sobre algumas questões, como sobre o que é um linotipo. O autor diz que nunca freqüentou uma faculdade de Jornalismo e não conhece seus currículos. ‘Mas sei que tem algumas matérias que eles não ensinam lá: português, reportagem e história universal da imprensa. Se ensinam, ensinam mal’. E arremata: ‘E não se fazem mais repórteres como antigamente’.

Antes de ir aos pontos mais polêmicos do texto, é preciso concordar que o aspecto sedentário do jornalismo, que ele também critica, é pernicioso. O telefone, e mais recentemente o e-mail, distanciam o repórter da sua fonte e impossibilitam o contato pessoal, rico em sensações. Porém, se há algo também pernicioso é o exercício de tentar transpor realidades. Não é mais possível um repórter viajar pelo país, como permitiam as revistas dos anos 1960, buscando personagens pelo Nordeste. Atualmente, o repórter executa duas, três ou quatro pautas em um dia, em cidades onde as dificuldades de deslocamento são cada vez maiores. Apesar disso, a reportagem ganha em qualidade quando é possível ter contato direto com a fonte. O e-mail é uma versão piorada do telefone, pois não é possível sequer ouvir o tom de voz do entrevistado e não há garantia de que foi ele quem escreveu as respostas.

Mário Prata foi sarcástico, como é próprio de seu estilo, ao dizer que as faculdades de Jornalismo não ensinam português, história e reportagem. Não é preciso ter cursado para saber. O bom senso indica isso, como indica que um curso de Medicina ensine anatomia. Primeiro, que essa não é uma tarefa das universidades. Um aluno deveria chegar à universidade sabendo escrever bem, especialmente aquele que opta por Jornalismo. Mas, mesmo assim, as faculdades procuram corrigir essas imperfeições e, além disso, ensinam muita reportagem e muita história da comunicação. História em que o papiro, a calandra e o linotipo são pontos interessantes, mas não essenciais. Um repórter pode ser um bom profissional sem conhecer a calandra, o linotipo e o palimpsesto.

Segundo emprego

O cronista foi sarcástico ao dizer que hoje ‘nem fumar na redação pode mais. Onde já se viu um repórter sem um cigarro na boca, deixando cair a cinza no teclado?’. O cigarro não torna melhor ou pior o jornalista. Álvaro Caldas diz em seu livro que ‘o que era impensável na atividade jornalística até dez anos atrás tornou-se uma realidade: não se fuma mais na redação. O fazer jornalístico necessitava tanto do barulho da máquina quanto da muleta do cigarro’.

O emprego do termo romântico para designar o período do jornalismo desenvolvido nos anos 1950, 60 e 70 serve para identificar uma época em que o repórter praticava o jornalismo mais investigativo, aprofundado, privilegiando o estilo em detrimento da agilidade na produção das reportagens. Esse papel quase que missionário do repórter contrastava com o espírito empresarial do jornalismo predominante na época, representado por personagens como Assis Chateaubriand e Samuel Wainer.

Quanto à leitura das revistas antigas, como O Cruzeiro, também é interessante que haja uma indicação da leitura do livro Cobras Criadas – David Nasser e o Cruzeiro, de Luiz Maklouf, que mostra as suas peripécias e o ‘jornalismo inventivo’ da revista. Mostra a vida de Nasser, estrela do jornalismo da época, dublê de jornalista e presidente de honra do Esquadrão da Morte, célebre pela morte de inocentes durante a ditadura militar. Também é interessante ler Histórias de um Repórter, de Edmar Morel, que fala de David Nasser como um ‘excelente repórter, com extraordinária capacidade de trabalho, talento para dar e vender. David era, todavia, despido de qualquer caráter. Suas reportagens eram constantemente montadas num esquema de mentiras, porém rendoso do ponto de vista comercial’.

É importante lembrar ainda de Chateaubriand, o Chatô, que, ao receber pedidos de aumentos de aumentos de salários, orientava os repórteres a buscar ‘por fora’ junto com os entrevistados, sugerindo que praticassem corrupção. Isso sem falar das pessoas que durante parte do dia trabalhavam como policiais e depois iam para as redações trabalhar como repórteres.

Fernando Morais, cujos textos são indicados por Mario Prata como dignos de uma aula de jornalismo, diz que o crítico Geraldo Ferraz trabalhava como repórter à tarde (no Diário Nacional) e à noite marcava ponto no Diário da Noite. Durante o dia ele criticava Chateaubriand. No segundo emprego, respondia às acusações. Nos anos 1970 o jornalista Cláudio Marques, que trabalhava na Folha da Tarde, dizia que os prisioneiros políticos eram bem tratados pela ditadura militar. Quem viveu os jornalismo dos tempos do linotipo conhece essas histórias. Será que os alunos de Jornalismo de hoje terão boas referências neste tipo imprensa? Hoje, além de reportagem, português e história, os cursos de Jornalismo também têm uma disciplina chamada Ética.

‘Amor-próprio e autoconfiança’

Para ensinar quem foi Samuel Wainer é importante indicar a leitura de Minha razão de viver: memórias de um repórter, onde ele diz que não aceitava cheques pois ‘o pagamento vinha em dinheiro vivo. Uma vez por mês, ou a cada dois meses, eu visitava os empreiteiros e recolhia suas doações, juntando montes de cédulas que encaminhava às mãos de João Goulart’.

A leitura desses livros é importante para que fique claro o que não deve ser feito e mostra o quanto o jornalismo pode se transformar em uma eficiente ferramenta maligna quando manuseada por quem conhece o jornalismo, mas não aplica suas regras no cotidiano.

Há, sim, expoentes de brilho nas décadas mais recentes, como a trajetória da revista Realidade ou do Jornal do Brasil. É preciso ainda fazer justiça aos brilhantes profissionais que, apesar dessas promíscuas administrações, conseguiam destacar-se nas redações.

Quanto a conhecer o linotipo, é importante. Mas menos importante que conhecer um pixel, que muitos jornalistas desconhecem. Definição em DPIs, compressão e transmissão de arquivos e o uso de ferramentas como bancos de dados são novas necessidades que se impõem aos jornalistas desta década. Ter o domínio delas é fundamental.

É próprio dos cronistas não só o sarcasmo como a poética, muitas vezes saudosista, mas a razão mostra que, apesar de das imperfeições, as escolas de Jornalismo atuais são muito melhores que há 20 anos. José Hamilton Ribeiro, que viveu esses períodos e que vive as redações de hoje, é um personagem perfeito para avaliar esse período de transição. Ele diz que o estudante de hoje ‘chega à redação com um mínimo de crítica, de aprendizado e de informação, com reforçado amor-próprio e autoconfiança. Não é mais aquele tabaréu que pedia emprego como se estivesse pedindo um prato de comida. A escola de Jornalismo e a obrigatoriedade do status universitário para o jornalista fizeram um bem enorme à imprensa e ao Brasil. Só não vê quem não quer’.

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Jornalista e professor de Jornalismo da UniFiam e Unip.