‘Eram muitos milhares de pessoas, iluminando com velas a noite habitualmente deserta da Baixa do Porto e fazendo ecoar nas suas velhas ruas o som das rezas do rosário. Juntaram-se na noite da passada segunda-feira, 31 de Maio, e desfilaram da igreja da Lapa até à Sé portuense atrás de uma pequeno ícone branco que os católicos conhecem pelo nome de imagem peregrina de Nossa Senhora de Fátima.
Foi uma cerimónia religiosa que nada teve de rotineiro. De acordo com uma reportagem do Jornal de Notícias, à qual devo boa parte das informações que aqui transcrevo, a referida imagem ‘não era contemplada no Porto desde 1957’. Procissões desta dimensão são hoje invulgares nas grandes cidades. Há quem refira, certamente com exagero, que participaram mais de 50 mil pessoas. As fotografias mostram que era, em qualquer caso, um mar de gente, nada habitual em desfiles na cidade. A marcar a natureza pouco comum da iniciativa, a procissão parou em vários pontos do centro urbano, para ouvir as intervenções de individualidades que não associaríamos de imediato às manifestações de devoção popular, como o banqueiro Artur Santos Silva, a editora Zita Seabra e o jornalista Carlos Magno, entre outros que responderam ao convite da diocese do Porto.
Poderá ver-se, neste acontecimento, mais um sinal do que alguns têm vindo a descrever como um renovado impulso do catolicismo português para se afirmar e intervir no espaço público. Talvez. Mas, perguntarão os que estão a ler-me, que traz o tópico a esta página, quase uma semana depois? É simples: o jornal não dedicou uma linha ao desfile religioso. Para quem o compra para estar bem informado, não se passou nada no Porto na última noite de Maio.
O leitor Miguel Alvim insurgiu-se contra a omissão. Pergunta onde está a ‘isenção’ do PÚBLICO e realça a ‘impressionante’ mobilização conseguida pela diocese ‘num Norte deprimido pelo desemprego’ e ‘pelo desinvestimento’, ‘onde já se passa fome’. E, antes de sentenciar que o jornal ‘não percebe que anda a leste dos problemas reais dos portugueses’, compara a ausência de qualquer referência à manifestação católica com o destaque que teria sido dado, na edição de 1 de Junho, com ‘eco em primeira página’, ‘ao encontro do primeiro-ministro, em S. Bento, com alguns elementos do lóbi homossexual’.
Seria fácil responder-lhe que uma coisa nada tem a ver com a outra, como de facto não tem. E que a chamada de capa, tal como a notícia no interior, se refere à entrada em vigor da lei que permite o casamento entre pessoas do mesmo sexo, e não ao encontro em S. Bento. Ou que o almoço de Sócrates com as chamadas associações LGBT é descrito num único parágrafo de um texto secundário (aliás dedicado a um protesto do lobby anti-casamento homossexual por Sócrates não o ter recebido), e na legenda de uma fotografia que, é um facto, se destaca na mancha da página.
Mas parece-me mais pertinente notar um dado objectivo: esse encontro, que pode ser visto como um mero acto de marketing político, encontrou espaço no PÚBLICO, contra zero caracteres e zero imagens para a inusitada concentração católica no Porto. Permitindo que este e outros leitores se interroguem legitimamente sobre os critérios de selecção noticiosa de um jornal que se obriga, no estatuto editorial, a uma ‘informação diversificada’, ‘correspondendo às motivações e interesses de um público plural’.
Dito isto, é preciso explicar que houve um motivo para a omissão. ‘O PÚBLICO’, garante o director-adjunto Nuno Pacheco, ‘não teve conhecimento, nem oficial nem particular’ da realização da procissão. ‘Não é habitual’, explica, ‘noticiarmos procissões: realizam-se muitas no país, cumprindo o calendário eclesiástico normal’. À redacção não terão chegado, neste caso, informações que permitissem prever um ‘acontecimento jornalístico’. ‘Se tivéssemos sabido previamente da procissão e dos seus contornos incomuns’, conclui, ‘teríamos enviado repórteres e teríamos feito cobertura do acontecimento. Não foi, portanto, uma omissão deliberada’.
É uma justificação incontornável. Não se sabia, não se podia adivinhar. Não houve critério editorial contestável, apenas ignorância. Eu próprio pude averiguar que não terá havido grande divulgação da iniciativa fora dos meios da Igreja Católica e dos seus órgãos de comunicação. Parece aconselhável que a diocese reveja os seus métodos de divulgação noticiosa.
Ainda assim, sobram-me dois motivos de estranheza. Como é que um acontecimento que ocupa durante um tempo considerável o centro do Porto não chega ao conhecimento da redacção do PÚBLICO? É só um azar que dificilmente se repetirá, ou haverá falhas de organização que devem ser estudadas? E, para terminar, porque é que na edição de 2 de Junho se continuou a ignorar o que acontecera?
Mais rápido nem sempre é melhor
A colocação de despachos da agência Lusa na edição on line do PÚBLICO tem provocado alguns equívocos e reclamações. Ainda que a origem da informação seja citada, os leitores tendem a ler esses textos como ‘notícias do PÚBLICO’, o que é compreensível, já que os lêem no PÚBLICO.
Quando se trata de matérias controversas, que recomendam a procura do contraditório, e os temas não foram (ou não foram ainda) tratados autonomamente pelo jornal, a colocação imediata na edição electrónica desses despachos — que frequentemente referem apenas a posição de uma parte, sendo essa parte com igual frequência o Governo ou a administração pública — provoca acusações de parcialidade, que deveriam ser evitadas com a adopção de um escrutínio mais rigoroso da informação fornecida pela agência.
Já abordei este problema na minha crónica de 16 de Maio, a propósito da controvérsia em torno de um concurso público para a admissão de novos diplomatas. Volto a referi-lo hoje devido a outro processo de candidaturas lançado pelo Governo, neste caso visando o preenchimento de vagas para estágios nos serviços públicos. Trata-se do PEPAC (Programa de Estágios Profissionais na Administração Central).
No dia 27 de Maio, a edição electrónica do PÚBLICO anunciava em título: ‘Candidaturas ficaram aquém das expectativas / Quase metade dos estágios na Função Pública estão por ocupar’. Seguia-se um texto curto, com origem na Lusa, que começava assim: ‘Apenas 2700 jovens licenciados até aos 35 anos aceitaram até agora vagas para os estágios na Função Pública, um número que surpreendeu o Governo, já que fica aquém dos cinco mil lugares disponíveis’. Devido a esta alegada, e de facto ‘surpreendente’, falta de interesse de jovens licenciados em apostar numa carreira na administração pública, a divulgação da lista dos seleccionados, que deveria ter sido feita na véspera, iria — anunciava o Governo — ser prorrogada por uma semana.
Contra o teor desta notícia protestou um leitor, dizendo que o PÚBLICO reproduzira ‘acriticamente’ um despacho da agência noticiosa, que se limitaria ‘a fazer passar a versão governamental’. Estranhando que, entre muitos milhares de candidatos, só 2700 tivessem aceitado os estágios propostos (pessoas que se candidataram a numerosas vagas não teriam recebido nenhuma proposta), defendia que o processo de selecção fora pouco transparente. No seu entender, o Governo ‘queria fazer passar a mensagem’ de que o problema consistiu na falta de candidaturas, o que conduziria à ideia de que ‘os malandros dos ‘licenciados desempregados’ não querem trabalhar’. É pena, concluía, ‘que a comunicação social não cumpra a sua função de escrutínio do poder’.
Solicitado a comentar este caso, o director adjunto Nuno Pacheco acha que ‘o leitor tem, no essencial, razão’, e reconhece que, ‘por vezes, a pressa em colocar em linha informações consideradas relevantes leva a falhas’. Pelo que ‘devia ter havido mais cuidado, atrasando a notícia para contactar outras fontes ou dá-la com uma formulação diferente’.
A meu ver, é esse o ponto. Os leitores teriam sido mais bem servidos se a informação, ainda que mais tardia, fosse mais completa. O tema PEPAC deveria ter merecido investigação própria, até pela estranheza que sempre teria de provocar o não preenchimento de quase metade das vagas disponíveis para estágio. Deveria ter sido feito um esforço para se compreender porque é que isso acontecera, tendo havido milhares de candidaturas ao programa.
Foi o que o PÚBLICO acabou por fazer, pelo menos em parte, numa notícia publicada na última quinta-feira, em que a jornalista Raquel Martins relatou o desfecho do programa (2981 vagas ocupadas em cinco mil disponíveis) e deu voz, para além das fontes governamentais, a um grupo de jovens licenciados que se organizou para denunciar ‘atropelos e lacunas’ no PEPAC. Fica a saber-se, e é um dado relevante, que o Estado irá gastar menos 22 milhões de euros do que o inicialmente previsto com o programa, poupando nos salários mensais de 900 euros que não terá de pagar a mais de dois mil estagiários.
Não será ainda a notícia definitiva sobre o caso, pois permanecem por esclarecer as queixas relacionadas com a alegada falta de transparência do processo de selecção. Como fica por averiguar a pertinência da sugestão oficial de que muitos candidatos terão recusado propostas por não estarem interessados em estagiar na localidade ou no serviço que lhes seriam destinados.
Mas foi um primeiro passo, a demonstrar que por trás de uma informação ‘surpreendente’ há geralmente uma história por contar. Motivo bastante para o PÚBLICO não se limitar a colocar em linha, sem mais reflexão, qualquer despacho da Lusa.’