O Estado de S. Paulo, 27/3 João Bosco Rabello e Julio Maria Ana de Hollanda ‘O jogo é violento’ Ana de Hollanda sabia que o jogo seria violento. Seu irmão Chico Buarque avisou. Seus melhores amigos alertaram. ‘E, olha, confesso que está sendo mais violento do que imaginei’, diz. A vaidade denunciada no cuidado com as unhas e o batom, a voz macia de cantora desde a juventude e a aparência de fragilidade escondem a determinação de enfrentar os conflitos gerados desde sua posse. Poucas vezes se viu um início de gestão de tamanha turbulência na pasta da Cultura. Antes mesmo de tomar pé dos problemas herdados e ainda sem saber de qual orçamento disporia, foi alvo de furiosa campanha de segmentos insatisfeitos com seu primeiro ato: a retirada do selo Creative Commons do site do ministério. O CC oferece uma relação mais livre dos usuários com as obras artísticas, mas repassando o custo ao autor, instado a reduzir seus direitos autorais. O gesto lhe valeu a pecha de ‘ministra do Ecad’, para classificá-la de retrógrada. Esse e outros episódios resultaram na desistência da contratação do sociólogo e cientista político Emir Sader – convidado por ela própria para dirigir a Fundação Casa de Rui Barbosa- que a chamou pelos jornais de ‘meio autista’. Uma ala do PT disse que a dispensa de Sader foi do Palácio do Planalto. Ana, aqui, diz que foi dela. A aprovação de captação de R$ 1,3 milhão em incentivos para Maria Bethânia elaborar um blog de poesia reabriu velhas e espinhosas discussões referentes à Lei Rouanet. Ana considera o episódio ‘uma tempestade em copo d’água.’ Na semana passada, ela ouviu do governo norte-americano, durante a visita de Barack Obama ao Brasil, preocupações em torno de propostas de flexibilização dos direitos autorais apresentadas por seu antecessor, Juca Ferreira. Na visão dos americanos, elas poderiam representar um estímulo à pirataria. Nessa entrevista ao Estado, a ministra aborda diretamente esses e outros temas, garantindo que a ação do governo em relação aos direitos autorais terá como limite a não intervenção nas relações contratuais privadas. A senhora até agora falou pouco e ouviu muito. Está sendo um começo difícil? Qualquer anúncio de mudança gera insegurança. Por mais que tentemos esclarecer que estamos estudando as questões, as pessoas querem respostas imediatas. Aí começam a sair versões do que poderia estar certo ou errado. Eu nunca tive uma situação como temos agora, de sentar para responder. Qual foi sua primeira impressão ao ler o projeto de lei do ex-ministro Juca Ferreira, que pede mudanças na atual lei dos direitos autorais? Aquela proposta me assustou um pouco. O direito do autor está previsto na Constituição, é uma cláusula pétrea. Ele tem que ser respeitado. Comentava-se muito no meio cultural que as mudanças estavam deixando o autor em uma situação frágil em vários aspectos. Por exemplo? Quando se falava das cópias de um livro, por exemplo. Se essa obra for editada sem autorização, pela lei vigente, a obra seria recolhida e o infrator pagaria uma multa de, se não me engano, o equivalente a 30 mil cópias. A proposta de reforma já falava em multa de até 30 mil livros. Ou seja, a multa poderia ser de um, dez ou 30 mil. São detalhes que deixam o detentor dos direitos em situação frágil. As mudanças da lei propostas por Juca davam ao presidente da República poder para conceder os direitos de obras em casos especiais. A senhora já retirou esse poder do presidente e o repassou ao Judiciário. Qual é o limite da participação do Estado em questões ligadas aos direitos autorais? Sinto ainda que existe uma interferência muito forte do Estado no projeto de lei e isso, de uma certa forma, vai infringir a Constituição. O direito de associação de artistas é permitido pela lei, é livre. Então o intervencionismo do Estado (na fiscalização do Ecad) é muito complicado. Mas entendo que é necessário haver, sim, uma transparência para os autores sobre seus rendimentos. A senhora está dizendo que o Estado vai fiscalizar o Ecad? Eles devem apresentar um balanço público (sobre o que arrecadam em direitos autorais). O que a senhora discutiu com o secretário do comércio dos EUA, Gary Locke, durante a visita de Obama ao Brasil? Ele estava muito preocupado com a questão da liberação dos direitos. De como a flexibilização no direito autoral pode acarretar mais tolerância com a pirataria. Isso não preocupa só os americanos, preocupa nossa indústria cinematográfica, editorial, fonográfica. Estão com medo de que essa produção seja fragilizada. É muito preocupante essa possibilidade de a gente liberar para o mundo nossa produção. Isso pode desestimular os artistas. Por que vão editar obras no Brasil se o Brasil não as protege? Foi pensando assim que a senhora mandou retirar o selo do Creative Commons, que propõe maior liberdade nos licenciamentos de obras artísticas, do site do Ministério da Cultura? Eu achei muito estranha a gritaria que esse caso criou. Aquele selo era uma propaganda dentro do site do MinC. Não existe a possibilidade de você fazer propaganda ali. A responsável agora sou eu e eu não podia permitir que isso continuasse. A decisão da senhora então não foi ideológica? Não, foi administrativa. Então, ideologicamente, o que a senhora pensa dessa nova relação de direitos autorais proposta pelo Creative Commons? A questão que me preocupa é que a concessão de direitos no Creative é irreversível. Há sempre um prazo para uso de direitos autorais. Eu posso ceder minha obra para tal uso por cinco, dez anos e depois eu posso reaver essa obra. Mas é bom dizer que essa decisão, de usar o Creative Commons, cabe unicamente ao autor. Palavras da senhora no discurso de posse: ‘É importante democratizar tanto a produção quanto o consumo da cultura’. A reforma na lei dos direitos autorais e o Creative Commons são em tese democratizantes, no sentido de que garantiriam que a cultura chegaria a mais pessoas. Democratizar está sendo mais difícil do que a senhora imaginou? A democratização é possível sempre, mas ela tem de prever também o pagamento àqueles que criam. Um autor de um livro que trabalha dez anos com pesquisa vive disso. O direito autoral é o salário dele. A internet foi o paraíso para muita gente, já que o preço de um CD se tornou inacessível para muitos. Como fazer com que esse consumo continue sem prejuízo para os autores? Essa é uma questão, sim, que tem de ser estudada nos próximos passos que vamos dar. Agora há pouco, vi um estudo no Canadá que sugere cobrança dos direitos de provedores. Estamos nesse impasse entre a proibição absoluta – que é quase impossível, já que as pessoas estão baixando – e uma liberação que não prevê o pagamento de direitos. Maria Bethânia teve a aprovação do Ministério da Cultura para captar via Lei Rouanet R$ 1,3 milhão para criar um blog de poesia. Qual a opinião da senhora sobre isso? Isso foi uma tempestade em copo d’água. Projetos assim são aprovados mensalmente. A lei, que tem também modificação pedida no Congresso, prevê essa possibilidade. Não cabe a mim analisar ou interferir em uma questão que é julgada por uma comissão, que antes passa por pareceristas que analisam os preços e se o projeto é cultural ou não. E o mérito não é de qualidade, mas se é cultural ou não é cultural. Se os preços foram aprovados, está ok. Ninguém contesta que o projeto de Bethânia seja legal, mas esse dinheiro não deveria ser garantido a artistas com menos recursos? Olha, isso tudo está sendo revisto nessa reforma da lei que está no Congresso. Queremos favorecer mais o Fundo Nacional de Cultura, que poderá facilitar essa divisão melhor e que atenderia aos produtores que normalmente não atraem o patrocínio das empresas privadas. As empresas querem associar seus nomes a artistas consagrados, faz parte das leis de mercado. E assim os departamentos de marketing acabam definindo a política cultural do País. Sim, isso. A atual Lei Rouanet tem esse viés, que era necessário ser equilibrado. Chega a ser perigosa porque quase que exclusivamente se faz atividade cultural no País através da Lei Rouanet. Passou a ser imperiosa. Quando falamos da necessidade da cultura ser autossustentável, vejo como a Lei Rouanet foi prejudicial. Qualquer evento que se faz começa a ficar um megaevento e a ter custos mais altos. E para os artistas se inserirem nisso, precisam ter o nome forte. Agora, uma atividade mais experimental, nova, que não estiver no gosto do mercado, vai ter uma difícil aceitação. A Lei Rouanet viciou o mercado a trabalhar só através dela. A senhora, como cantora, tentou emplacar projetos pela Lei Rouanet? Eu não. Bem, até vi em um jornal que houve um proponente de um projeto meu que não foi aprovado, também porque a Lei Rouanet tem uma série de trâmites complicados. Acho que isso foi no período em que eu estava com o projeto de um disco e aí depois consegui trabalhá-lo de outras formas. Foi um projeto para ser aprovado, era um disco meu, sim, que depois acabei fazendo. O grande público, alheio a Creative Commons, Lei Rouanet, direitos autorais, percebe que entra e sai ministério e uma coisa não muda: cinema, shows e teatro são cada vez mais caros. Como se muda isso? Mas aí você está falando dos grandes, né? A Cinemateca, por exemplo, tem um acervo fantástico que distribui filmes para os pontos de cultura (centros de cultura nas periferias), os cineclubes estão crescendo. Você está falando das grandes estrelas. Foi da senhora ou do Planalto a decisão de desistir da contratação do sociólogo Emir Sader para a Casa Rui Barbosa? (Em entrevista, Emir se referiu à ministra como ‘meio autista’)? Não, eu agi. Levei, conversei com o Palácio, sim, mas deixei claro que a decisão era minha, cabia a mim. A senhora fala muito dos pontos de cultura, mas a situação deles é caótica, o dinheiro de alguns nunca chegou… Já tive encontro com os representantes dos pontos. É assustador, porque são trabalhos em comunidades carentes. O princípio dos pontos é maravilhoso. O governo vai à comunidade e reconhece um trabalho cultural que já está sendo desenvolvido. Fazemos um trabalho para auxiliá-los, ajudamos a se equiparem melhor. Agora, alguns estão sem receber há algum tempo. Não chegou o dinheiro de 2010. Há outros que estão sem receber desde 2008. Alguns com problemas com documentação, mas há uma parte legal. E tem nosso orçamento que está bastante restrito, não só da Cultura, mas houve um corte grande. Esse dinheiro chega este ano? Já está sendo liberado. Vamos quitar com eles essa dívida. Como a senhora, uma artista de formação e berço, chega para fazer política em Brasília? Eu tive várias etapas da minha vida em que já passei por algumas experiências como esta. Estive envolvida na política pública em São Paulo. Sim, mas Brasília é diferente. A senhora não sente dificuldades no jogo político? Olha, em Osasco era um microcosmo disso, eu sentia lá também a pressão da sociedade, dos artistas, do executivo querendo fazer uma coisa mega. Eu sei que vou incomodar, você não pode atender a gregos e troianos. Agora, o fato de ser mulher ou ter um jeito delicado no falar não quer dizer que eu seja fraca ou insegura. Não sou nem um pouco insegura. A senhora divide assuntos com seu irmão, Chico Buarque? Eu acho que tudo o que ele não quer é que eu fique falando dos problemas do ministério (risos). O Chico não queria que a senhora aceitasse o convite para ministra, certo? Ele ficou assustado não por ele. Aliás, não só ele. Somos sete irmãos, todos ficaram assustados porque sabiam que o jogo era violento. E confesso que é mais violento do que eu imaginava. Porque esses movimentos organizados agiram com uma agressividade muito grande. E estão agindo ainda. A senhora tem amigos na cúpula da música brasileira. Como ministra, está disposta a comprar briga com eles? Eu acho que eles não vão brigar comigo, não. Como amigos, eu não os perco. QUEM É ANA DE HOLLANDA CANTORA E COMPOSITORA Nascida em São Paulo, em 1948, estreou musicalmente em 1964, no palco do Teatro do Colégio Rio Branco, no show Primeira Audição, integrando o grupo vocal Chico Buarque e As Quatro Mais. Já lançou quatro discos.