Friday, 29 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1316

José Queirós

‘A queixa é repetida, a justificação é repetida e eu vou também repetir-me, esperando que a repetição possa contribuir para uma melhor reflexão, por parte de redactores e responsáveis editoriais do PÚBLICO, sobre os prejuízos que a banalização do recurso a fontes anónimas pode causar à credibilidade do jornal.

Em Agosto passado, numa crónica intitulada ‘Conselheiros anónimos e com medo’, critiquei o teor de uma notícia em que o jornal reproduzia uma acusação dirigida ao procurador-geral da República, Pinto Monteiro, a coberto do anonimato, por um membro do Conselho Superior do Ministério Público (CSMP). Tratava-se de uma acusação grave, não apoiada em factos e sobre a qual o visado não fora ouvido. A autora da notícia justificou então o recurso ao anonimato com o temor de ‘represálias’ invocado pela sua fonte, salientando que ‘de outra forma não seria possível fazer a notícia’. Concluí, nesse caso, que nenhum ‘decisivo interesse público’ justificava a publicação da notícia naquelas condições e manifestei a minha perplexidade pelo facto de um alto magistrado se refugiar no anonimato para lançar acusações ao presidente do órgão a que pertence. É um comportamento censurável a que o PÚBLICO deveria recusar servir de veículo.

O caso que hoje aqui trago será menos grave, mas tem alguns ingredientes semelhantes e os mesmos protagonistas. No passado dia 11 de Março, o procurador-geral da República, Pinto Monteiro, foi chamado ao Parlamento para esclarecer declarações públicas que fizera sobre a existência de escutas telefónicas ilegais. Em notícia de antecipação a essa audição, publicada na mesma data, a jornalista Mariana Oliveira dava conta de que ‘vários elementos do Conselho Superior do Ministério Público’ tinham uma opinião diferente esse respeito e consideravam ‘anómalas’ as declarações do procurador-geral, classificadas por um deles como uma ‘infantilidade’. Atendendo à importância do que nesta matéria pode estar em causa no plano do respeito pelas garantias dos cidadãos, a divergência de opiniões entre magistrados é de óbvio interesse noticioso, embora ao bom jornalismo deva interessar mais a investigação da verdade dos factos do que a reprodução de eventuais palpites contraditórios. O que tornava esta notícia ‘anómala’, para usar o termo atribuído aos conselheiros, era o facto de uma das partes dizer o que pensava em declarações públicas, enquanto a outra comentava essas declarações, e o tema a que aludiam, sob a capa do anonimato. Não é uma forma responsável de fazer passar mensagens, e menos ainda apreciações desprimorosas, como foi o caso. Se o método não incomoda magistrados a desempenhar funções públicas relevantes, deveria incomodar os responsáveis editoriais do PÚBLICO.

O leitor José Mário Costa, que já protestara contra a notícia do Verão passado, assinada pela mesma jornalista, voltou a criticar, e a meu ver com razão, ‘o recurso a fontes não identificadas’ para comentar e qualificar negativamente as declarações do PGR. A autora da notícia, por seu lado, argumenta que ‘há áreas como a Justiça onde é muito difícil as fontes falarem em on’, já que os magistrados são obrigados ao dever de reserva e o Ministério Público tem uma organização hierárquica, em que o PGR, no topo, pode mandar abrir processos disciplinares’. ‘Considero’ — acrescenta — ‘que, apesar de anónimas, estas opiniões são relevantes para o leitor enquadrar um determinado assunto sensível como as escutas ilegais. (…) Tracei, por isso, um panorama do que pensava a maioria dos membros deste órgão e outros responsáveis do sector sobre as escutas ilegais e isso foi fundamental para enquadrar a situação’. E diz ainda ter escolhido a expressão ‘infantilidade’, por retratar bem ‘o que as várias fontes disseram’.

Creio que há vários pontos fracos nesta argumentação. Não me parece nada claro que o dever de reserva possa impedir um membro do CSMP de tornar pública a sua apreciação do problema das escutas telefónicas, mas, se fosse esse o bom entendimento, então a reserva deveria ser mantida, e não desrespeitada por via do anonimato. Para quem aceita ser identificado pela fórmula ‘um membro do CSMP’, trata-se aliás de um expediente que acaba por envolver indevidamente outros membros do mesmo órgão que não se reconheçam nesse procedimento. Também não me parece claro que os membros do Conselho, na maioria eleitos pelos seus pares e pelo Parlamento, devam recear processos por delito de opinião. Este não é certamente um quadro em que os jornalistas, e os responsáveis pela edição das notícias, devam aceitar a recusa de identificação, ou esquecer o dever de não reproduzirem opiniões — e é de opiniões que aqui se trata — de fontes anónimas.

A verdade é que nada na notícia permite fundamentar de forma credível que a opinião atribuída a ‘vários elementos’ corresponde ao que a jornalista descreve como ‘ um panorama do que pensa[va] a maioria dos membros deste órgão e outros responsáveis do sector sobre as escutas ilegais’, e que considera ‘relevante para contextualizar’ o assunto. Não discuto a relevância do tema em si, mas a relevância do que se escreveu, e os métodos utilizados. A credibilidade obriga ao respeito por regras conhecidas, e não é das fontes, mas de quem lhes dá voz, que se espera o seu cumprimento.

Na mensagem que me enviou a este respeito, Mariana Oliveira faz uma revelação curiosa: ‘Na sequência do anterior texto em que esta questão se levantou [uma referência ao caso de Agosto passado], conversei com várias fontes judiciais sobre este problema. E todas, sem excepção, disseram que se não respeitasse o anonimato não poderiam sequer falar comigo, ainda que para contextualizar algumas situações. Impuseram, por isso, as regras que aceitei porque não tinha alternativa face à importância do que estava em causa’.

Há aqui duas palavras-chave: ‘alternativa’ e ‘importância’. A alternativa, que nem sempre é bem sucedida, mas deve sempre ser procurada, passa pela investigação, por saber mais e confirmar, e por resistir, como regra, à facilidade dos recados anónimos. A importância deve ser avaliada pela substância do que se noticia e do seu interesse público e é na qualidade dessa avaliação, confrontada com as boas regras do ofício, que se afirma a credibilidade de um jornal. Como já aqui escrevi, a banalização do recurso a fontes anónimas mina essa credibilidade nas situações excepcionais em que um jornal possa ou deva avançar com informações obtidas de fontes não identificadas.

A mesma notícia de 11 de Março pode ajudar a ilustrar este ponto. A antecipação da audição do PGR era apenas a segunda parte de um texto focado na questão das escutas, que tinha por título’Juiz Carlos Alexandre convicto que já foi alvo de escutas ilegais’. Deixando agora de lado a forte visibilidade do erro gramatical (o juiz estará, isso sim, ‘convicto de que’…), esta é uma informação de óbvio interesse público, bastando recordar que o juiz em causa tem ou teve a seu cargo alguns dos casos judiciais mais sensíveis da actualidade (Furacão, Face Oculta, submarinos, Freeport…). A notícia assinada por Mariana Oliveira explicava os indícios concretos em que se fundamentaria tal convicção do magistrado, mas era igualmente baseada em fontes anónimas e não confirmada pelo próprio.

A jornalista garantiu-me estar completamente segura da veracidade da notícia — que de facto não foi desmentida — e explicou-me ter discutido com os responsáveis editoriais as condições em que obtivera e confirmara a informação, tendo a essa luz sido ponderadas a sua correcção, oportunidade e relevância. Sem prejuízo de uma desejável investigação posterior e mais completa do que foi divulgado, esta é uma opção editorial defensável — embora o facto de faltar à peça a confirmação do principal protagonista pudesse aconselhar um título menos assertivo.

Num caso como este, o jornal põe conscientemente em jogo a sua credibilidade, ao decidir avançar com uma notícia em que aceita omitir as fontes. A informação será tida como boa pelos leitores que acreditarem que o PÚBLICO não a divulgaria sem estar convicto da sua veracidade. E é esse capital de credibilidade, essencial para a reputação de um jornal, que não pode ser corroído pela banalização das fontes não identificadas.’