Sunday, 17 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

Sobre vilanias e dogmas

O debate suscitado por Marcelo Beraba (Folha de S. Paulo, edição 22/10/06, p. A8) e Alberto Dines (‘A vilanização da imprensa‘, comentário radiofônico do OI, de 23/10/06) me levou, por analogia direta, a um trecho final de um livro emblemático: ‘A imprensa não revela fatos, não toma partido; não é responsável pelos acontecimentos, apenas os registra. Esse dogma jornalístico jamais soou tão irreal como depois do 11 de setembro’ (Carlos Dorneles, in Deus é inocente: a imprensa, não).

É possível dizer que, a partir de 29 de outubro, esse dogma estará definitivamente pulverizado, por obra e graça da própria mídia em suas desventuras antidemocráticas. Vamos tomar como exemplo a mesma Folha, edição do domingo 22/10/06. O texto de Beraba (‘Nervos à flor da pele‘) atesta e denuncia, já no segundo parágrafo, essa tentativa ‘irresponsável de colocar a grande imprensa como participante de um golpe’. Enfim, a esotérica tentativa de ‘vilanização da imprensa’.

Simulacro de jornalismo

De suas 28 páginas o primeiro caderno da Folha de S.Paulo dedica, na editoria de ‘Brasil – Eleições 2006’ pelo menos sete matérias de valência negativa ao candidato Luiz Inácio Lula da Silva. Segue-se um festival de jornalismo ‘declaratório’ – ‘oposição diz’ (p. A4), ‘Valdebran afirma’ (p. A8), ‘acusados dizem que…’ (A9), ‘diz Alckmin’ (p. A17), cujo enquadramento leva a uma só direção, do ponto de vista da produção de sentidos: desgastar a imagem do candidato petista e preservar a de seu adversário. Outras três matérias são ‘neutras’; deduzidos os espaços publicitários, colunistas da pg. A2, cartas, editoriais sobra a lúcida coluna de Janio de Freitas (p. A11), indicando a necessidade da discussão do ‘Dossiê do caso dossiê’.

Pode-se destacar, ainda, duas pérolas da lavra ‘rabo preso com o leitor’, mote publicitário que embala o discurso de ‘imparcialidade e isenção’ do jornal dos Frias. A primeira está publicada na pg. A10 e tem como fonte única o ‘isento’ deputado Carlos Sampaio (PSDB-SP), tratado pelo jornal como ‘porta-voz’ da CPI dos Sanguessugas. Ilustrada por uma foto de Freud Godoy, o texto de Ranier Bragon é um primor de parcialidade, jornalismo de botequim, de fonte única e oficial – o próprio deputado tucano que inspira o título da página: ‘CPI critica PF e vê elo entre Freud, dossiê e valerioduto’. A informação que dá base à matéria? É simples, basta ouvir o deputado:

Sampaio disse ter convicção da participação de Godoy no episódio e apresentou dados [sic???]… ‘Não acreditamos que haja nada que possa livrar o Freud’.

Na segunda ‘pérola’, a Folha abre uma página inteira para repercutir o que, generosamente, chama de ‘reportagem’ da revista Veja (o caso Lulinha). A ‘denúncia’, como bem definiu Dines neste OI, é uma ‘provocação para deixar o clima tenso e favorecer deslizes do candidato oficial nos próximos debates’. Num simulacro de jornalismo, a Folha de S.Paulo finge ouvir fontes diversas citadas no texto publicitário de Veja, mas faz o serviço ‘sujo’ com perfeição: ligar o episódio à campanha de Lula, ressignificando a ‘matéria’.

Peça acusatória

O jornalista Luis Nassif sugere um texto com um outro olhar sobre essa pauta, crítica mas jornalística por excelência: ‘Leia Angélica Santa Cruz, no Estadão. Uma matéria técnica, com diversos elementos de análise, mostrando tanto as facilidades que o parentesco permitiu quanto as dificuldades que criou, e os méritos da empresa’.

Ora, caros Dines e Beraba, se há ‘vilanização’ da mídia esse é o resultado direto de uma cobertura que tem se pautado pelo desrespeito ao público (leitor, ouvinte, telespectador, internauta…) e à ética jornalística. Os dados do Laboratório de Pesquisa em Comunicação Política e Opinião Pública são incontestes: nas páginas da Folha, no período de 13/9 a 1º/10, o candidato Lula teve 17% de valência positiva contra 45% negativa (total de 570 aparições); Alckmin foi citado 27% positivamente contra 26% negativamente (total de 364). Essa é a discussão de fundo: sem fazer uma opção explícita, atuando na burla e no desrespeito à sociedade, a mídia vai caminhando na direção não da suposta ‘vilania’, mas do descrédito, puro e simples. Nesse ponto, desserve a democracia e o interesse público.

Erros, desvios, fraudes são adjetivos que caberiam numa análise da cobertura do processo eleitoral. No dia 23, a TV Globo deu mais um exemplo disso tudo, junto, ao cobrir o depoimento do empresário Abel Pereira, em Cuiabá. De saída, já extraiu mais um factóide: a acusação de que o senador petista Aloízio Mercadante estava ligado à máfia das ambulâncias. No texto, a reportagem destaca que Mercadante negara seu envolvimento com o caso. Detalhe: Abel citara que os Vedoin lhes ofereceram um dossiê contra o então candidato a governador pelo PT em São Paulo. O que deveria ser pauta para apuração sobre existência ou não de um ‘segundo dossiê’ vira, num átimo, peça acusatória a mais uma figura pública do partido do governo. A chamada na página do Bom Dia Brasil (http://bomdiabrasil.globo.com/, edição de 24/10/06) diz tudo: ‘Escândalo do dossiê: Abel Pereira compromete Aloízio Mercadante’.

Cúmplice ou omissa

O mérito das duas reportagens de capa de CartaCapital é ter suscitado essa discussão sobre o ‘dossiê da mídia’. Como escrevem os repórteres Raimundo Rodrigues Pereira e Antônio Carlos Queiroz: ‘A imprensa não está acima do bem e do mal, como querem alguns; ela merece ser investigada’ (CC, 25/10/06 – p. 24). Este parece ser o desconforto dos jornalistas Marcelo Beraba e Alberto Dines. A partir de cada posto privilegiado de ‘observação’, ambos ficam na superfície do fenômeno. Beraba chama a matéria de CartaCapital de ‘incompleta’ mas, a cada nova revelação sobre a trama da cobertura do dossiê, mais ‘completa’ se torna a compreensão do distinto público (é só conferir os últimos textos publicados nos blogs de Luiz Carlos Azenha e de Paulo Henrique Amorim).

O ombusdman da Folha de S.Paulo acusa o jornal de ‘coonestar a farsa armada pelo delegado’. Contudo, aceita passivamente as explicações de Eleonara de Lucena (editora-executiva do jornal) que considera ter agido com ‘correção, rigor e transparência’. Mentir para o leitor e tentar lograr sua interpretação dos fatos baseado num relato sabidamente inverídico (‘responsavelmente’ assumido pela repórter Lilian Christofoletti) é rasgar o Manual da Redação e todos os códigos deontológicos que fundamentam o jornalismo. Beraba finaliza com uma estranha constatação: ‘No dia seguinte, quando o delegado assumiu o vazamento das fotos, o jornal estava liberado para publicar a conversa dele com os repórteres, de evidente interesse jornalístico’. Mas, não o fez. As perguntas de CartaCapital continuam a espera de respostas…

Criticando esse ‘olhar superior’ da mídia, o jornalista Carlos Dorneles termina seu livro sobre a cobertura da guerra no Afeganistão de maneira muito categórica e apropriada a esse debate sobre o papel da imprensa: ‘Seja qual for o canto do planeta, a imprensa não consegue se desvencilhar do poder político, da força econômica, da pressão patriótica, e serve como alicerce para objetivos definidos bem longe das redações. (…) Por cumplicidade ou por omissão, mas sem inocência’.

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Jornalista, doutor em Mídia e Teoria do Conhecimento pela Universidade Federal de Santa Catarina, professor e coordenador do curso de Jornalismo do Instituto Bom Jesus/Ielusc, Joinville (SC)