Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Sem mordaça alguma

A perspectiva de uma ‘mordaça’ legal assusta a todos, jornalistas ou não. Referimo-nos a democratas, cidadãos de bem, claro. Mas é também cabível a pergunta: existe mesmo liberdade de imprensa no Brasil? Comparado ao que se passava durante o regime militar, não sobram dúvidas. O problema agora é determinar quem detém a liberdade em questão, a saber, se os proprietários e os patrocinadores (empresários, agências de publicidade), se os profissionais que se sentem porta-vozes da comunidade, de algo ainda maior do que o seu público-leitor em sentido estrito.

Esta questão reaparece sempre que se dá alguma atenção comparativa a uma certa imprensa estrangeira – a parisiense, por exemplo. Um caso digno de exame é o Canal Plus (o segundo mais importante da televisão francesa e que, embora funcione a cabo, transmite três vezes por dia em circuito aberto), que põe no ar o programa Guignol de l’Info. Trata-se de uma sátira política, em que apresentadores com máscaras imitativas de âncoras da própria tevê e figuras da vida pública encenam sketches sobre temas da atualidade.

No último domingo de janeiro, Guignol tinha como assunto a sentença judicial que condena a 18 meses de prisão com sursis e torna inelegível por dez anos Alain Juppé, ex-primeiro ministro, ex-ministro das Relações Exteriores, atual prefeito de Bordeaux e virtual candidato à sucessão do presidente Jacques Chirac.

O país inteiro sabe que a responsabilidade por administração abusiva e irregularidades em contratações cabe também a Chirac, mas Juppé foi o boi de piranha. Ele apelou para o Conselho Superior da Magistratura, mas se prevalecer a sentença inicial estará terminada a sua carreira política.

Guignol não tem o mesmo impacto de dez anos atrás. No programa de 25/1, entretanto, estava engraçadíssimo. ‘Juppé’ (seu intérprete mascarado), depois de ouvir as esquivas e negaças verbais do presidente da República, simplesmente dá-lhe um tapa na cara. A cena foi forte. Guignol já foi alvo de um processo por parte de Chirac, por ter transmitido um sketch pesadíssimo com a primeira-dama Bernardete.

A retórica e a vida

O resultado das comparações não pode deixar de vir à cabeça do observador de imprensa. Um programa daqueles é impensável no Brasil. É que a mordaça, aqui, já funciona antes mesmo da tal lei. Há primeiro a censura estrutural da própria mídia, ferreamente atrelada a seus interesses e a seus patrocinadores. Em seguida vem o controle dissuasivo das ações por danos morais, que há algum tempo entraram em moda judicial. Depois, é forte ainda a ojeriza à fiscalização, seja qual for a sua forma, por parte de uma classe política que aspira a uma intocabilidade suspeita.

A França não é nenhum grande modelo de democracia. Na verdade, pode mesmo ser considerada pelos puristas uma ditadura constitucional, quando se leva em conta o famoso artigo 18 da Constituição francesa, que autoriza o presidente da República a dissolver o Parlamento e convocar novas eleições.

Ainda assim, a classe política está sujeito a controles institucionais e a críticas acerbas por parte da imprensa. Políticos importantes podem mesmo dar com os burros n’água, sem precisar chegar aos exageros dos ‘nossos’ anões do Orçamento ou dos personagens da Era Collor. Assim é que, no mesmo domingo de janeiro, a televisão francesa concedeu tempo generoso ao ex-ministro das Cidades Bernard Tapie, recém-saído da prisão por ‘irregularidades’ análogas às de Juppé.

Tapie é agora ator de teatro. É o protagonista da peça Um beau salaud (‘Um bom safado’), que acaba de estrear no Théatre de Paris. Da vida real para a ribalta, pelo visto, sem grande esforço interpretativo.

O programa Guignol é tido como responsável, na época, pela eleição de Chirac. A peça Um beau salaud expõe a afinidade da política com o teatro. Tudo isto pode levar o público-leitor ou espectador a refletir sobre o descompasso entre a retórica dos políticos e a vida real. Isto é de fato formativo em termos de cidadania. Mas só é possível sem mordaça. Ainda não se fez a prótese da liberdade de expressão.

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Jornalista, professor-titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro