Sunday, 24 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Lições de uma crise sem fim

Poucas vezes, nos últimos anos, os leitores têm tido a oportunidade de conhecer em detalhes a crise da mídia nacional como nesta semana, a partir da reportagem de duas páginas, com direito a sub-manchete, publicada na Folha de S.Paulo de domingo (15/2, págs. B 6 e B 7) pela jornalista Elvira Lobato.

Com carta branca da direção da Folha, que tenta se distanciar do movimento do setor em busca de ajuda do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social, a repórter foi fundo na consolidação de informações que vinham vazando ou sendo expostas estrategicamente pela Associação Nacional de Jornais desde o ano passado, quando a entidade, junto com suas congêneres que representam editores de revistas, emissoras de rádio e televisão, admitiu recorrer ao BNDES para sair do atoleiro.

Apesar de o conteúdo não ser completamente inédito, como diz a chamada de primeira página, a reportagem oferece uma contribuição inegável para a compreensão do grave momento por que passam as empresas de comunicação e, com um pouco de reflexão, nos ajuda a entender a natureza e os vícios desse negócio a que chamamos imprensa.

Ao juntar e expor a crueza dos números (dívidas totais de 10 bilhões de reais, prejuízos somados de 7 bilhões de reais em 2002 – com tímidos sinais de alívio em 2003 – e reduções combinadas do bolo publicitário e da circulação), a repórter permite entender até que ponto nos conduziu a insensatez geral que se apossou dos nossos gestores entre 1998 e 2000.

Conteúdo de valor

A leitura do texto de Elvira Lobato é para estômagos fortes, dado o cenário de incertezas que nos faz vislumbrar. Mas também se tiram dele importantes lições sobre o modelo de negócio que suporta nossa imprensa. Em primeiro lugar, a própria escalada de investimentos alimentados por empréstimos em dólar, direcionados para empreendimentos sobre os quais os gestores não tinham conhecimento adequado, revela um grau de irresponsabilidade que poucas vezes tivemos oportunidade de observar.

Nem mesmo em momentos cruciais de ruptura no ambiente dos negócios de comunicação, como no advento da televisão, se viu tamanho desregramento como no período da chamada bolha de TI (tecnologia da informação). Quem acompanhou e participou dos comitês de análise de projetos pôde testemunhar o desvario. Por dentro de cada operação de endividamento se podia apontar a presença de decisores que aparentavam não saber absolutamente o que estavam fazendo.

Beira a insensatez, para dizer o mínimo, a afirmação, repetida por alguns dos entrevistados da matéria, de que os gestores de praticamente todas as empresas de comunicação do país foram vítimas de uma ilusão quanto à estabilidade da moeda e as perspectivas de crescimento da economia. Pois não é a própria imprensa quem informa, analisa, direciona decisões de gestão, ao mediar os fatos econômicos, políticos e sociais? Como é que, tendo veiculado tantas análises sobre o cenário – houve até mesmo reportagens cuidadosas desmistificando o ‘bug do milênio’ – foi a própria imprensa, como negócio, cair na armadilha do deslumbramento com as novas mídias?

Sabia-se em 1997, por exemplo, que o provimento de acesso à internet, com o modelo adotado naquela fase, só poderia se sustentar por mais três anos, e mesmo assim à custa de muito investimento. Sabia-se também que era necessário encontrar novas formas de entregar o conteúdo, para preservar seu valor e evitar a invasão do setor por novos protagonistas. Em 1998, havia em quase todas as grandes empresas de comunicação estudos – e, em alguns casos, projetos prontos – para o provimento de acesso em banda larga vinculado a conteúdos diferenciados.

Revelação a fazer

A combinação do dinheiro aparentemente barato por longo prazo (contra projeções publicadas pelo próprios jornais e revistas) com a ignorância a respeito das limitações e custo real da tecnologia (em muitos casos omitiu-se o custo de manutenção e atualização de softwares) conduziu ao auto-engano generalizado.

Em 2001, o diretor da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo, Shigueharu Matai, já havia observado que os profissionais formados para Tecnologia da Informação estavam sendo convocados a influenciar decisivamente nos negócios sem que tivessem sido preparados para relações humanas e sutilezas da gestão.

Por fim, a reportagem de Elvira Lobato nos conduz à constatação de que, fundadas sobre um modelo familiar de gestão, as empresas nacionais de comunicação acabaram se fechando em núcleos de decisão com poucas janelas para o mundo real. Tornaram-se reféns de consultores interessados em vender equipamentos, softwares e serviços e, salvo raríssimas exceções, alienaram sua maior inteligência, as redações, do processo de decisão sobre como entrar no mundo digital.

Quando muito, os jornalistas foram utilizados como fonte de conhecimentos sobre a utilização de aplicativos e em nenhum momento estiveram perto dos núcleos de análise estratégica. Alguns dos que foram alçados a esse Olimpo desvairado se tornaram celebridades de um momento para outro, forraram seus patrimônios e até hoje ninguém lhes cobra a responsabilidade.

Mergulhadas na crise, as empresas foram buscar o equilíbrio de seus caixas no sacrifício daqueles que tentaram injetar algum senso de realidade no processo – e justamente os profissionais que foram deixados de fora do jogo são os personagens que pagam o preço maior no ajuste. Em dois anos, relata a repórter da Folha, citando como fonte o Ministério do Trabalho, foram cortados nada menos do que 17 mil empregos de rádios, emissoras de TV, revistas, jornais e agências de notícias.

A reportagem, correta, deixa, no entanto, alguma coisa de fora. Alguém precisa revelar, por exemplo, as condições em que o capital foi internalizado nas empresas. Da mesma forma como se torna agora necessário garantir que seja transparente a operação de transferência de recursos públicos, via BNDES, para as empresas de comunicação.

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Jornalista.