Friday, 29 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1316

José Queirós

‘Concluí uma das minhas últimas crónicas considerando que têm razão os leitores que vêem na proliferação dos erros de escrita no PÚBLICO um sinal de menosprezo pelo seu direito a um produto jornalístico de qualidade. E manifestei a intenção de regressar ao tema, abordando também outras falhas de revisão e edição que têm vindo a afectar a imagem do jornal. Como então escrevi, gostaria de o fazer com a informação que julgo necessária para a análise das causas e o exame das possíveis soluções de um problema que está na origem de queixas constantes dos leitores. Aguardo ainda, com esse objectivo, explicações pedidas à direcção editorial do PÚBLICO. Até lá, valerá a pena avançar um pouco mais no diagnóstico da situação e nas questões que ele suscita, a partir das reclamações que me chegam e dos esclarecimentos que já recebi dos mais directos responsáveis pelo controlo de qualidade da escrita do jornal (a equipa de copy desk).

Parto de algumas premissas: a qualidade da escrita é um valor inscrito no projecto editorial do PÚBLICO; os leitores que escolheram o jornal esperam encontrar nas suas páginas informações e opiniões redigidas em bom português; à imprensa de referência cabe um papel importante na defesa da língua contra o seu abastardamento no espaço público. Neste quadro, a frequência de erros de redacção e edição no jornal impresso, e a sua ainda maior abundância na edição on line, devem ser entendidas como faltas de profissionalismo e de respeito por um contrato implícito com os leitores. A exigirem medidas de restabelecimento de uma confiança em alguns casos já perdida.

Parto também de um diagnóstico pessoal, que resulta da leitura diária do jornal, mas que vejo confirmado, na sua relevância para um número significativo de leitores, pelo elevado número de protestos que recebo. Suponho que serão ainda muitos mais os compradores do PÚBLICO que se sentem defraudados por exemplos de escrita descuidada, mas não se dão ao trabalho de protestar.

É um diagnóstico negativo. A quantidade de erros de redacção e revisão parece-me superior à tolerável num jornal de qualidade. Os leitores que têm dado a conhecer o seu descontentamento dispensar-me-ão de multiplicar aqui os exemplos. São erros de ortografia, erros gramaticais (com destaque para as falhas de concordância, o desrespeito por regências verbais, as vírgulas a separar sujeito e predicado). Alguns surgem com frequência patológica, e imitam o mau português que cada vez mais se ouve, por exemplo, nas televisões (o facto dos sindicatos terem apelado à greve…; tratam-se de novas condições colocadas na mesa da negociação…; o deputado interviu na discussão…; desde Madrid chega a informação…), sem falar já das tropelias clássicas com o verbo haver ou com a distinção entre ‘por que’ e ‘porque’.

São ainda os erros que mostram desconhecimento do significado de palavras, portuguesas ou estrangeiras. São os erros de tradução, termos estrangeiros mal grafados, estrangeirismos desnecessários e aportuguesamentos errados. São, muitas vezes, simples ‘gralhas’ não corrigidas, fruto de distracção e de erros de digitação. São os textos em que sobrevivem palavras que se pretendeu alterar ou anular. São os abusos de linguagem especializada (o ‘economês’ é apenas o exemplo mais conhecido), que atentam contra a clareza e inteligibilidade das notícias. São erros ocorridos na paginação, como é o caso frequente das peças a que faltam as últimas linhas.

São, num outro plano, os erros de edição. As fotografias com identificação errada, as infografias mal revistas, os textos para uso interno (que servem para contar espaços ou dar indicações gráficas) que alguém se esquece de substituir na página que vai ser impressa. São os títulos que não correspondem ao que se lê nos textos ou os que são redigidos de modo a que se adaptem ao espaço disponível, numa operação em que a preocupação com o equilíbrio gráfico sacrifica demasiadas vezes, e de forma especialmente visível, o uso correcto da língua portuguesa.

São os erros factuais, fruto de ignorância, às vezes atrevida, em matéria de geografia, história, cultura geral, que não deveriam sobreviver ao exame de editores competentes. São os erros que podem provocar prejuízos concretos e a irritação legítima de leitores, como os que por vezes mancham as áreas da chamada ‘informação útil’ (horários de espectáculos, farmácias de serviço, chaves de resultados de jogos sociais, soluções de passatempos).

São, na verdade, erros a mais. Antes de analisar causas e discutir remédios, interessará compreender até que ponto os responsáveis editoriais e a redacção do PÚBLICO subscrevem o diagnóstico severo que a este respeito está patente nas mensagens de muitos leitores. E saber se partilham a percepção, comum a muitas dessas mensagens, de que o problema se tem vindo a agravar.

Disponho, para já, das opiniões, especialmente relevantes neste domínio, dos profissionais mais directamente envolvidos no controlo da qualidade do que se escreve no jornal. Aurélio Moreira, José Luís Baptista e Ricardo Neves, que integram a equipa de copy desk na redacção do Porto, observam que ‘a ocorrência de erros num jornal que é visto como ‘de referência’ é mais grave do que se o jornal não tivesse essa imagem’. E, embora salientem que ‘neste campo, o leitor não tem sempre razão’, admitem que, ‘restringindo a análise aos que a têm’, ‘é possível que os lapsos se tenham agravado nos últimos anos’. Consideram que os jornalistas com quem trabalham estão conscientes da importância do problema, dando como exemplo uma iniciativa recente do Conselho de Redacção para o debate colectivo dos ‘erros mais correntes’.

Manuela Barreto, da mesma secção em Lisboa, não acha que os erros e gralhas ‘abundem assim de forma tão avassaladora’. Mas diz conhecer queixas segundo as quais ‘a qualidade/estilo da escrita se degradou’, e não crê ‘que haja uma preocupação particular no jornal em relação à questão linguística’. Já Rita Pimenta, que actualmente garante a revisão dos textos da revista Pública e anteriormente coordenou a secção na redacção de Lisboa, acha que têm razão os leitores ‘quando afirmam que os erros são um problema sério para a imagem e credibilidade do PÚBLICO’, e concorda que estes ‘têm vindo a agravar-se nos últimos anos’. ‘Não me parece’ — acrescenta — ‘que a percepção deste problema na redacção seja generalizada. De outra forma, creio que haveria um maior investimento e um outro cuidado na escrita dos textos. No entanto, há muitos jornalistas e editores bastante cuidadosos e atentos a estas questões. O que tem evitado desaires maiores’.

Exiguidade de meios humanos, alterações introduzidas nos processos de edição, a exigência crescente de rapidez (actualmente agravada com a maior pressão nesse sentido própria da edição on line), o menor peso de jornalistas seniores na redacção, o progressivo esquecimento da boa e velha regra de o jornalista dar o seu texto a ler a um colega, são algumas das explicações — ‘nada disto desculpa os erros, apenas os explica’, ressalva Rita Pimenta — que estes profissionais encontram para as deficiências de escrita e o eventual agravamento do problema. A elas voltarei, bem como às informações e sugestões que me fizeram chegar, e que serão úteis para esclarecer os leitores sobre os processos de controlo de qualidade existentes, as suas lacunas e os meios para os aperfeiçoar.

Último esforço, antes da boda

A questão parecerá menor, e já me referi a ela mais de uma vez para ilustrar a aparente indiferença dos responsáveis editoriais do PÚBLICO pela aplicação de regras de coerência na grafia de nomes próprios.

Como tem sido exaustivamente anunciado nestas páginas, está marcado para o próximo dia 29 o casamento do neto mais velho da rainha de Inglaterra, esse mesmo que no PÚBLICO tanto é designado por príncipe Guilherme como por príncipe William, segundo o critério aparentemente aleatório e claramente variável de quem escreve ou edita (nomeadamente na página Pessoas do caderno P2). Seria, já o sugeri, uma boa altura para decidir finalmente essa coisa simples que é adoptar uma forma única para grafar o nome de alguém que nos próximos dias será certamente protagonista de várias notícias.

Do Livro de Estilo do jornal consta a regra de ‘respeitar a grafia original do nome de personagens vivas ou de um passado recente, mas adoptar a forma aportuguesada para figuras históricas’. Penso que da excepção à regra devem fazer parte, de acordo com uma tradição consolidada, os nomes daqueles que — como os membros de várias famílias reais europeias ou os papas — integram (ou poderão vir a integrar) listas históricas em que os nomes se repetem e são numerados. O jovem príncipe, por exemplo, poderá ser um dia o rei Guilherme V.

Mas não á minha opinião que está em causa. O que não é aceitável, e neste caso está a tornar-se francamente ridículo — aconselhando uma decisão rápida e fundada em argumentos claros —, é que se permita a opção por uma grafia diferente conforme os dias da semana ou os humores dos jornalistas.’