ELEIÇÕES
Quando a censura veste toga
As liberdades de expressão e de imprensa foram protegidas de forma reforçada pela Constituição de 88, que as consagrou como cláusulas pétreas. O poder constituinte quis exorcizar definitivamente o risco de que se repetisse, após a promulgação da Constituição, o cenário do regime militar, em que a censura aos artistas e meios de comunicação era prática corriqueira.
Diante desse quadro constitucional, causa perplexidade constatar que, no Brasil contemporâneo, a censura tem vindo de onde menos se poderia esperar: do Poder Judiciário. O fenômeno não é novo – basta recordar as diversas biografias de personalidades públicas cuja publicação foi impedida pela Justiça -, mas ganhou novas tintas no atual período eleitoral. Nestes últimos dias de campanha multiplicaram-se as decisões da Justiça Eleitoral impondo algum tipo de censura aos candidatos ou aos veículos de comunicação. O corregedor do TRE de Tocantins, em decisão posteriormente reformada pelo próprio tribunal, proibiu a imprensa de noticiar supostos ilícitos penais em que estaria envolvido o governador e candidato à reeleição pelo PMDB, Carlos Gaguin. O TRE do Paraná, a pedido do candidato do PSDB ao governo do Estado, Beto Richa, vedou a divulgação de pesquisas eleitorais. O TRE do Rio de Janeiro determinou a retirada da internet de vídeos caseiros que ridicularizavam o candidato a governador Fernando Gabeira. Não se pretende aqui discutir o mérito de nenhuma dessas decisões – todas devidamente fundamentadas em argumentos jurídicos -, mas apenas destacar que elas revelam um padrão jurisprudencial que não atribui o devido peso à liberdade de expressão.
A mesma crítica não pode ser dirigida ao Supremo Tribunal Federal. Pelo contrário, a nossa Suprema Corte proferiu, nos últimos tempos, decisões extremamente importantes em defesa da liberdade de expressão, como a que declarou a inconstitucionalidade de normas que restringiam a faculdade dos veículos de telecomunicação de fazerem humor com candidatos durante o período eleitoral. Entretanto, as instâncias judiciais inferiores, sobretudo da Justiça Eleitoral, ainda não compreenderam essas lições do STF e continuam tratando a liberdade de expressão com um certo descaso, como se fosse um direito menor que devesse ceder passagem a qualquer outro direito ou interesse em casos de conflito.
É verdade que a liberdade de expressão não é um direito absoluto. Como afirmou o juiz norte-americano Oliver Wendell Holmes, em célebre passagem, ela não protege aquele que grita ‘fogo’ em um teatro lotado. Contudo, contra seu exercício abusivo os remédios prescritos pela Constituição são o direito de resposta e a responsabilização posterior daquele que tenha violado injustamente direitos de terceiro, não a censura. Até se admite, em hipóteses absolutamente extremas e com grande cautela, a imposição judicial de restrições prévias à liberdade de imprensa, visando à tutela de outros direitos fundamentais. Imagine-se o caso de um canal de televisão aberta que anunciasse a transmissão de um filme pornográfico, durante o dia, para um público composto majoritariamente por crianças. Contudo, o que vem acontecendo atualmente é fenômeno muito mais grave: uma verdadeira banalização da censura imposta pela Justiça Eleitoral.
A censura não ofende apenas o direito dos titulares dos veículos de comunicação, ou daqueles que são impedidos de se manifestar. Ela agride sobretudo o direito do público, que se vê privado do acesso a opiniões, ideias e informações diversificadas, necessárias para que cada um possa formar livremente as próprias convicções e fazer suas escolhas. Ainda quando bem-intencionada, a censura é antidemocrática, pois infantiliza o cidadão ao presumir que ele não tem capacidade de julgamento e por isso deve ser impedido de conhecer certas opiniões ou informações tidas como erradas ou ‘perigosas’.
Quando estão em jogo pessoas públicas ou temas de interesse social – o que ocorre invariavelmente no contexto eleitoral – as liberdades de expressão e de imprensa ganham sua máxima proteção. Por isso, a proteção da honra e reputação dos políticos e candidatos tem, nesse cenário, de ceder algum espaço, de forma a não asfixiar os debates travados na esfera pública, que devem manter-se abertos e robustos, para o bem da democracia.
Tem se tornado cada vez mais frequente a crítica dirigida ao excesso de judicialização da política brasileira. Alega-se que o fenômeno comprometeria a democracia, ao permitir que juizes não eleitos decidam questões extremamente controvertidas, substituindo os representantes do povo. Uma das respostas a essa crítica afirma que o ativismo judicial muitas vezes protege a democracia, ao invés de violá-la, ao garantir direitos que são pressupostos para seu funcionamento. Contudo, quando o Judiciário se torna ativista contra a liberdade de expressão – logo, ativista contra a democracia – aí sim, é hora para grande preocupação.
DANIEL SARMENTO, PROFESSOR DE DIREITO CONSTITUCIONAL DA UERJ E PROCURADOR REGIONAL DA REPÚBLICA, É AUTOR, ENTRE OUTROS, DE ‘POR UM CONSTITUCIONALISMO INCLUSIVO’ (LUMEN JURIS)
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