Na Folha de S. Paulo de 27 de outubro, foi noticiada a recuperação, pela polícia, de dois documentos de alto valor histórico e cultural para o Brasil. Esses documentos haviam sido furtados das instituições públicas às quais pertenciam por quadrilhas especializadas que têm agido sistematicamente contra nosso patrimônio. Um dia antes, o mesmo jornal trouxe matérias sobre a apreensão de mapas raros históricos surrupiados do Itamaraty e de recuperação de obras ‘levadas’ da biblioteca Mário de Andrade, em São Paulo. Um dia depois, reportagem sobre o corte de telefones do super-endividado Masp, de onde, recentemente, haviam cortado a luz. Há tempos ocorrem furtos na Biblioteca Nacional.
Mas a matéria dava ênfase à forma como foram tratados tais documentos. Manuseadas por jornalistas e policiais sem qualquer cuidado, as peças sofreram estragos: folhas acabaram rasgadas e pedaços espalhados pelo sofá (!!!) em que foram expostos. Os jornalistas atiraram-se como ‘urubus’ aos documentos. Palavras do delegado, que disse também que nada pôde fazer. Ainda bem que não era uma turba disposta a um linchamento.
Canudo e corretivo
Incrível como um acontecimento como esse expõe nossas mazelas. Como expõe o enorme descaso dos governantes de todas as cores políticas tanto com a cultura como com a educação. Nossas bibliotecas, museus e afins têm sido tratados com um descaso tal que há tempos seus acervos, se não se deterioram por falta de investimentos nas condições e pessoal necessários à preservação, são ‘aliviados’ de suas peças mais caras por quadrilhas especializadas. Em muitos casos, quadrilhas que contariam com a ajuda de funcionários mal pagos e sobrecarregados, por serem poucos, conforme apurado em outros episódios. Essas quadrilhas por certo têm seus receptadores finais, sempre ilesos, e esse trâmite todo parece então ser reflexo do que temos visto há muitos anos no trato da coisa pública.
O que mais impressiona nessa reportagem, contudo, não é tanto o descaso com a cultura, mas com a educação. Diante dessa notícia lembro-me imediatamente de meu pai porque, para ser jornalista, é preciso um diploma, e para ser delegado, também. E meu pai sempre diz que tem gente que é formada na Academia de Zé Novita. Zé Novita era um tratador de cavalos e burros de aluguel, em Santos, lá pelas décadas de 20 e 30 do século passado. Acho que ele tem razão, visto o tropel que danificou os documentos e a postura empacada de quem permitiu que isso acontecesse.
Vivi muito próximo ao jornalismo, por conta de trabalho e de casamento, e nos últimos anos, pelos mesmos motivos, tenho convivido com o direito. E nos dois casos, com a educação. Nessa convivência, a discussão da questão do diploma parece estar sempre atual: diante de tal notícia, o canudo talvez servisse para aplicar a alguns de seus donos o devido corretivo. Se a culpa fosse só deles.
Azar do leitor
Em todas as áreas, a maioria dos profissionais tem sido tratada como gado, formada numa linha de produção, uma indústria técnica e caça-níqueis, que só falta imprimir o diploma e enviá-lo pelo correio mediante, é claro, a devida remuneração. E parece ser apenas o que interessa. Essa indústria tem lobby forte e explora o empobrecimento sistemático do ensino médio, voltado apenas ou à aprovação no vestibular, como na grande maioria das escolas particulares, ou à aprovação automática, para que o aluno vença a idade escolar, como na grande maioria das públicas. Basta construir escolas e largar a moçada lá dentro. Nem biblioteca precisa mais, nas duas! Só técnica. Só o exigido pelo MEC para figurar nas prateleiras. Nada de conteúdo extra, nada de reflexão, nada de exigências, nada de enriquecimento da pessoa. E, sem isso, basta o sujeito decorar alguns preceitos, se tanto, e lançar-se a um mercado abarrotado, que dita regras e remunerações.
Alunos que não compreendem o que lêem, colegiais que não sabem escrever, profissionais que não reconhecem obviedades e que não vão além do básico.
No caso do direito… bem, os exames da Ordem têm mostrado o resultado. Os concursos para a magistratura, por exemplo, nunca conseguem preencher as vagas disponíveis, porque felizmente requerem um determinado nível de formação. No caso do jornalismo, como o leitor está num patamar mais próximo ao do redator, o valor deste talvez não precise ser aquelas coisas, como sinaliza o tal mercado. E como não se pode filtrar tudo, azar do leitor e do redator. Azar de quem é informado e de quem informa. Estou falando da maioria. Sorte, como sempre, das exceções. Esse é o país das exceções. Dos puros-sangues.
******
Bibliotecário, Valinhos, SP