NOBEL DA PAZ
O que Pequim mais teme
Liu Xiaobo, o pensador e dissidente chinês que desde 2008 cumpre pena de 11 anos de prisão por ‘atividades subversivas’ e foi contemplado na semana passada com o Prêmio Nobel da Paz, é um moderado. Pode parecer paradoxal, mas, com certeza, isso é o que explica o rigor do tratamento que lhe dispensa o repressivo regime de seu país – ele já sofreu outras condenações, uma das quais a 3 anos de trabalhos forçados por ‘perturbar a ordem pública’.
Pode explicar também o temor das autoridades chinesas de que Xiaobo viesse a receber a honraria – traduzido na ‘advertência’ ao comitê norueguês que decide a quem concedê-la – e suas reações virulentas à escolha. Além de considerá-la uma ‘profanação’ do espírito do prêmio e de ameaçar a Noruega com retaliações, como se o governo de Oslo fosse o responsável pela premiação, Pequim colocou em prisão domiciliar a mulher de Xiaobo, a poetisa Liu Xia, depois que ela visitou o marido no cárcere.
O regime chinês prefere enfrentar oposicionistas radicais cujas ações não só têm escasso apoio na população, como ainda podem servir de pretexto para investidas contra a dissensão em geral. Já um opositor como Xiaobo é uma ameaça potencial porque a sua pregação por mudanças políticas pacíficas – mediante o diálogo com o Partido Comunista – encontra eco nas novas gerações de seus concidadãos, beneficiadas pelas monumentais transformações da economia, a ponto de eventualmente contaminar setores da elite dirigente.
Xiaobo entrou para a lista negra da ditadura em 1989 menos por ter sido um dos inspiradores das manifestações da Praça da Paz Celestial do que por ter freado os cabeças quentes do movimento, negociando com as forças de segurança a retirada da multidão. Desse modo ele ganhou uma estatura que um visionário exacerbado jamais alcançaria. Ironicamente, companheiros ‘puros e duros’ de Xiaobo resmungaram que ele é brando demais para merecer o Nobel por uma luta pela democracia e os direitos humanos que não exclui entendimentos com quem os nega.
Mas a sua coerência é irrefutável. Ele foi sentenciado pela terceira vez, há dois anos, como um dos autores da Carta 08, o manifesto posto a circular na internet (e logo removido pelos censores) em defesa da liberdade, igualdade e direitos individuais como ‘valores universais compartilhados por toda a humanidade’. A começar do nome, o texto se inspirou na Carta 77, o abaixo-assinado de dissidentes checos que conquistou adeptos em todo o Leste Europeu, prefigurando a derrocada do ‘socialismo real’, 12 anos depois. Entre uma coisa e outra, Mikhail Gorbachev tentou abrir e modernizar o regime soviético.
Uma eventual repetição desse processo é o que o mandarinato comunista chinês mais teme. Os hierarcas do partido argumentam que uma liberalização política à Gorbachev não só escaparia fatalmente do controle, como ocorreu na URSS, como ainda abriria as portas do inferno – o caos e a desordem estilhaçariam o país que Deng Xiaoping costumava comparar a ‘uma travessa de areia solta’. Ao que tudo indica, quanto mais a economia chinesa se expande, tanto mais a mão pesada de Pequim se abate sobre a heterodoxia. Segundo estimativa confiável, a China mantém 5,8 mil pessoas presas por motivos políticos ou religiosos.
A contar de 2008, quando a repressão se intensificou à medida que se aproximavam os Jogos Olímpicos, mais chineses foram encarcerados por suas ideias do que durante os 5 anos precedentes – e mais prolongadas se tornaram as penas. O embrutecimento do regime desmente as expectativas ocidentais sobre os efeitos políticos da prosperidade na China. A abertura da economia, afirmava-se, cedo ou tarde se refletiria na esfera das liberdades. Não há sinais disso.
‘Independentemente do quanto os líderes chineses tenham aberto os seus mercados para o restante do mundo, eles não recuaram nem meio passo nas suas práticas políticas repressoras’, avalia o físico exilado Fang Li-Zhi. ‘Em vez disso, demonstram um desprezo cada vez maior pelos valores dos direitos humanos.’
FOTOGRAFIA
Tonica Chagas
Registros raros da guerra civil espanhola
Setenta e um anos depois de levados de Paris para serem protegidos durante a 2.ª Guerra e desaparecerem por décadas até serem redescobertos no México em meio a tranqueiras de um general, 126 rolos de filmes de 35 mm, com quase 4.500 negativos em nitrato de celulose que se preservaram da oxidação ou combustão, revelam, finalmente, um panorama completo dos três anos da Guerra Civil Espanhola registrado por Robert Capa, Gerda Taro e Chim (David Szymin), pioneiros da fotografia moderna de guerra. Desaparecidos desde 1939, embrulhados numa história misteriosa e agora convertidos em imagens impressas por processos de computação, eles são vistos em The Mexican Suitcase, exibida em Nova York pelo International Center of Photography (ICP) até 9 de janeiro, e também nas 592 páginas do catálogo em dois volumes editado para mostra.
Se existiu uma suitcase (maleta), como diz o título desse trabalho de recuperação, ela sumiu. Os negativos que documentam o conflito precedendo os 36 anos da ditadura franquista na Espanha chegaram ao ICP em três pequenas caixas de papelão. Eles não são todos os filmes que os três fotógrafos fizeram durante aquela guerra. Mas, além de conter centenas de imagens que nunca haviam sido ampliadas, também representam três anos da vida de três jovens europeus, expatriados e engajados contra o fascismo, que marcaram a história do fotojornalismo. Gerda, namorada de Capa, foi a primeira fotógrafa morta na cobertura de guerra; unidos por ideais na profissão, Capa e Chim juntaram-se a Cartier-Bresson e George Rodger em 1947 para fundar a agência Magnum Photos e acabaram morrendo da mesma forma que Gerda morreu.
Todos judeus, com pouco mais de 20 anos, o húngaro Capa conheceu o polonês Chim e a alemã Gerda, em 1933, no círculo de artistas, filósofos e socialistas vindos de outros países da Europa para refugiar suas ideias e perfis étnicos em Paris. O primeiro a ir à Espanha foi Chim, alguns meses antes do início da guerra. Como correspondente enviado pela revista francesa Regards, sua pauta era cobrir a tensão naquele país depois das eleições ganhas por uma coalizão de esquerda.
Um pedaço de filme com seis chapas traz o negativo original de uma das imagens mais famosas que ele registrou nesse período, a de uma mulher amamentando sua criança numa reunião sobre reforma agrária em Estremadura. Usada por diversas publicações, a cena chegou a ser identificada erroneamente, numa montagem com fotos de aviões, como se tivesse ocorrido durante um bombardeio. Ainda daquela primeira cobertura, há retratos feitos por Chim até agora desconhecidos de personagens como Dolores Ibárruri, a Pasionaria, e de Federico García Lorca, pouco antes de o poeta sair de Madri e ser morto em Granada.
Em agosto de 1936, apenas algumas semanas depois do início da guerra, Chim estava de volta à Espanha pela Regards, enquanto Capa e Gerda chegavam lá para fazer a cobertura pela revista Vu. Como usava óculos e, por isso, teria mais problemas para trabalhar no meio de bombas e tiros, o polonês se concentrou em registrar histórias exclusivas, obtidas em missões secretas ao lado dos republicanos. Assim ele fotografou a ação dos dinamiteros, fábricas catalãs, pesqueiros bascos, e a proteção dada por monges católicos aos que lutavam contra os nacionalistas, mesmo que na maioria eles fossem ateus. Mas também acompanhou combates como o do cerco de Alcázar, perto de Toledo, onde soldados leais à República atiravam das barricadas protegendo-se do sol com sombrinhas.
Nas frentes de batalha, Capa e Gerda às vezes fotografaram lado a lado, como ao acompanharem os republicanos na escavação de trincheiras para defender Madri das tropas de Franco e, depois, as ruínas da capital atacada pelos nacionalistas em aviões cedidos pelos alemães. Essas reportagens eram publicadas com o crédito Capa et Taro mas, pelos negativos, agora se sabe que foto foi feita por quem. Juntos também cobriram a fracassada ofensiva dos republicanos na Passagem de Navacerrada, que Ernest Hemingway transformou no livro Por Quem os Sinos Dobram.
Imagens. Há três anos o ICP produziu a primeira retrospectiva do trabalho de Gerda. Imagens impressionantes que ela registrou no hospital e no necrotério de Valência depois de um bombardeio, vistas naquela exposição, reaparecem em The Mexican Suitcase em muito mais fotogramas e na sequência em que foram tiradas. Como Chim, Gerda também mostrou a vida paralela na Espanha dividida pela guerra, em cenas como a de camponeses de Valsequillo, no front de Córdoba, sendo ajudados por soldados republicanos na colheita de trigo.
Na sua última cobertura, em julho de 1937, ela acompanhou uma das batalhas mais sangrentas daquela guerra, em Brunete. Os negativos desse episódio são tremidos ou borrados, talvez por causa da intensidade da luta. Na foto de um menino vestindo uniforme grande demais para o seu tamanho, Gerda demonstrou quanto os republicanos precisavam de mais soldados. Na tentativa de recuperar o controle de Madri, 25 mil deles foram mortos. Gerda morreu lá, quando tentava escapar dos nacionalistas.
Capa seguiu cobrindo a guerra na Espanha até janeiro de 1939. Em diversas batalhas ele tinha Hemingway como companheiro e a mostra exibe várias fotos do escritor feitas por ele. Os dois, mais o repórter do New York Times Herbert Matthews, entraram em Teruel, entre Madri e Valência, com as primeiras forças legalistas que a retomaram dos nacionalistas sob uma tempestade de neve, em janeiro de 1937. Em novembro de 1938, Capa também estava entre os republicanos numa das últimas vitórias deles, a batalha do Rio Segre, em Aragón. Mas nove dias após, com o Exército liderado por Franco na ofensiva para conquistar a Catalunha, eles tiveram de abandonar a posição. Nas fotos dessa batalha, que compõem o maior e mais dramático ensaio fotográfico feito na Espanha, entre corpos abandonados, crianças feridas ou velhos carregando o que podiam e deixando a cidade em busca de refúgio, Capa levou os leitores a um front de guerra de maneira que ninguém tinha visto antes.
Ele voltou a Paris em 28 de janeiro de 1939, quando ficou evidente que o Exército nacionalista tomaria o poder na Espanha. Mesmo após passar a fronteira, continuou cobrindo resultados da guerra, acompanhando a situação dos cerca de 400 mil espanhóis que fugiram para o sul da França. Em campos de confinamento, Capa fotografou o fim daqueles republicanos sob tendas improvisadas e olhares assustados diante de soldados senegaleses contratados para vigiá-los como prisioneiros.
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