Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Um jogo particular de vaidades

Quem pode ir contra o jornalismo que a revista Veja proporciona ao país? Há várias denúncias da equipe do presidente Luiz Inácio Lula da Silva com relação ao jornalismo do veículo na campanha eleitoral, inclusive considerações neste Observatório. Para nós, que somos espectadores, a favor de um ou de outro ou indecisos, resta esperar que a informação apurada e publicada seja a mais isenta possível e as fontes não sejam contaminadas.

Agora, em que um assunto técnico vem à baila, o dos controladores de tráfego aéreo, posso ter mais noção da prática jornalística nos principais veículos de comunicação do país, notadamente nos estados de São Paulo e Rio de Janeiro. Tivemos, vez por outra, que ensinar à imprensa a nomenclatura correta para uso em suas colunas diárias, porque a capacidade de pesquisa de ‘focas’ e repórteres era por demais limitada. Estavam mais preocupados em solucionar o acidente a partir de meras evidências e especulações do que em veicular informação consistente que atualizasse a população brasileira quanto à situação que se apresentava.

Títulos de capa como o da IstoÉ, por exemplo, com chamada para a ‘verdadeira história’ ou ‘Erro fatal – Falha humana é responsável pela morte de 154 pessoas no maior acidente aéreo do Brasil’, são uma afronta ao trabalho de peritos, de investigadores, de pesquisadores acadêmicos e à história da aviação como um todo, que só chegou ao atual estágio de modernidade porque as falhas encontradas serviram para o aprimoramento das bases de segurança do serviço de transporte aéreo.

Como a IstoÉ, todos os veículos orbitavam em torno do mesmo aspecto: procuravam uma resposta, e não uma informação a ser veiculada. A especulação é alarmante e, ao meu ver, compromete toda a credibilidade da imprensa brasileira, bem como dos cursos de formação de jornalistas. Dos jornais de abrangência nacional, somente os repórteres da Folha de S.Paulo, mais especificamente da Folha Online, deixaram-se sensibilizar pela correção das informações no tocante, no mínimo, aos trabalhadores e órgãos de prestação de serviços de controle de tráfego aéreo (doravante, ATC).

Pedindo baixa

Aprenderam, assim, que a Torre de Controle, outrora ‘Torre de Comando’, não autoriza mudança de nível de aeronave em vôo de cruzeiro; que existem quatro Cindactas no país e, dentro deles, os Centros de Controle de Área respectivos; aprenderam que o nome universal dos prestadores de serviço ATC é ‘controlador de tráfego aéreo’, e não ‘controlador de vôo’, pois o vôo é o piloto quem controla e o serviço ATC consiste essencialmente em separar tráfegos entre si, seja no ar ou no solo (aeroportos, no taxiamento ou na pista), e a prestação do serviço de alerta quando necessário (caso do Gol do acidente ou do pseudo-seqüestro do dia 4 de novembro).

E aprenderam que ‘greve branca’ ou ‘operação-padrão’ é equívoco que causou impressão negativa na sociedade, já perturbada com o acidente e a segurança – embora os desatinos nos aeroportos tenham provado indiretamente a confiança que o brasileiro ainda tem no sistema de transporte aéreo. É sabido que a relação entre o número do efetivo de controladores de tráfego aéreo apto ao desempenho da atividade do ATC e o número de tráfegos dispostos a usar o espaço aéreo controlado está desequilibrada. Já tínhamos um efetivo comprometido antes, mas nunca se deu ouvido às denúncias feitas internamente e nem à imprensa – quando o Fantástico e o Jornal Nacional ouviram o presidente do Sindicato Nacional de Trabalhadores na Proteção ao Vôo, Jorge Botelho, em entrevista aberta e sem disfarces.

Desde o dia 29 de setembro, este efetivo tem diminuído sintomaticamente. Acredito que os mais desolados, acusando o impacto mais que outros, estejam pedindo baixa da carreira militar ou antecipando a aposentadoria. Os que sobraram e continuam na atividade precisam recuperar a autoconfiança, pois se nada conclusivo ainda foi apresentado quanto a fatores contribuintes e determinantes do acidente, somados à carga auto-imposta de quem se indaga o tempo todo ‘poderia eu ter feito algo que não fiz, aqui onde estou, para impedir esta fatalidade?’, e mais o prejulgamento público alimentado pela grande imprensa e sua avidez especulatória – tudo impede que o serviço seja prestado nos moldes anteriores de ordenação e agilidade do tráfego, duas de nossas metas no ATC.

No imaginário coletivo

Privilegiou-se a segurança, a terceira e mais importante meta, mais ainda do que antes. Aí, chamam a isso de operação-padrão ou greve branca. Mas a lógica, se é que existe, dos repórteres da Veja, neste exemplo a seguir, entre tantos outros, é a seguinte:

Acuados pelas evidências de que erros do controle aéreo contribuíram para o desastre, os controladores decidiram que, diante do radar, passariam a monitorar apenas catorze aeronaves cada um, como manda o regulamento, e não vinte, como vinha acontecendo. Como isso significa ter menos aviões nos céus, as autorizações para decolagens – e, conseqüentemente, os vôos – começaram a sofrer atrasos num efeito de bola de neve. O resultado foi a maior situação de caos já registrada na história da aviação brasileira. Nos principais aeroportos, durante toda a semana passada, houve cancelamento de vôos ou atraso nos embarques que chegavam a vinte horas.

Explicam assim, transformando o trecho acima numa forma de discurso muito usada por políticos cuja intenção é convencer os incautos: ‘Todo homem é inteligente; a mulher não é homem; logo, a mulher não é inteligente’. As premissas sofreram uma ‘sutil’ alteração e nada têm a ver com a conclusão, mas a confusão criada não é facilmente percebida.

Assim trabalha a lógica (ou falta de) do jornalismo brasileiro na função de informar o leitor e o cidadão. Percebe-se muito claramente, para quem está imerso no dia-a-dia da tecnicidade desta atividade – ainda não regulamentada oficialmente, diga-se de passagem –, como os veículos brincam entre si num jogo particular de vaidades e a informação é apenas um objeto acessório à brincadeira. Então, brincam à vontade: criam o termo ‘apagão aéreo’ no auge da criatividade, a ‘greve de controlador de vôo’, a ‘autorização da torre no nível 370 para Manaus’ solicitado pelo piloto ao preparar e assinar o formulário de Plano de Vôo (ué, não podia voar no 370?) e, sobretudo, no auge da farra competitiva pelo prazer de estabelecer a verdade antes de todos, contradizem-se a si próprios reiteradas vezes na mesma matéria, conforme se pode confrontar pelo trecho que extraí e citei mais acima com esse, dois parágrafos após:

Há quinze anos, uma equipe de controle aéreo trabalhava com onze controladores. Hoje, a maior parte das equipes trabalha com nove, mesmo o tráfego aéreo tendo dobrado nesse período. O resultado é a sobrecarga de trabalho, particularmente penosa para quem precisa ficar de olhos grudados numa tela, com extrema atenção, monitorando a rota de uma dezena de aviões para evitar acidentes. Além disso, despreza-se a necessidade dos controladores de fazer um intervalo a cada duas horas trabalhadas.

Qual informação acham que fica no imaginário coletivo? A de ‘acuados etc.’ ou esta que a contradiz?

Alerta desde 2001

Comecei este texto expondo a revista Veja porque é a que se mostrou de mais evidente arrogância, junto com a reportagem mencionada e totalmente descartável da IstoÉ, que está mais para roteiro de ficção do que para informação jornalística. Elogiei a Folha Online, em especial a possibilidade de contato facilitada na página na internet, a prontidão da resposta, a análise e a correção, embora tenham muitas pessoas cobrindo o mesmo assunto. Dias atrás foi a vez da jornalista Eliane Cantanhêde, nossa ‘amiga’ desde o episódio com o general do Exército no caso do Aeroporto de Viracopos, de soltar o seu ‘furo jornalístico’ cheio de conflitos com as informações diárias da Folha Online, além de erros de nomenclatura básica do controle de tráfego aéreo.

Ainda assim, o pecado mora em todas as casas de imprensa, pelo visto, e não há sangue de cordeiro à vista que nos livre desse jugo quando a praga vier sobre nossas cabeças. Isso porque, alicerçado pelas más informações, o Comando da Aeronáutica, pego de surpresa com a reunião do ministro Waldir Pires e os representantes dos controladores de tráfego aéreo, esboça sua reação: apela para a quebra da hierarquia porque a FAB não teve sua participação autorizada.

O desprezo que sentiram não foi maior que o dos abnegados controladores que ao longo dos anos vinham alertando a este mesmo comando militar. Prova? Sim, aqui está uma, entre tantas outras que vocês poderão encontrar, mais rapidamente do que eu: a reportagem ‘Perigo no céu‘, do Jornal Hoje, de 28 de novembro de 2001:

Militares que trabalham na torre de controle, do comando aéreo do Nordeste, no Recife, denunciam: falta segurança na monitoração dos vôos.

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Controlador de tráfego aéreo, São Paulo