Os tucanos chegaram firme ao governo com o projeto de modernizar o país. A chamada grande imprensa saudou a entrada do Brasil no circuito das nações do ‘Primeiro Mundo’. Privatizaram o patrimônio público sob aplauso e apoio de matérias e editoriais. Adotaram o Consenso de Washington com seu superávit primário anunciado com sorriso, cada vez mais largo, sempre que aumentava o percentual de retração da economia. E na esteira dessa visão desenvolvimentista às avessas, aeroportos foram ampliados e repaginados para servir de carta de apresentação de um país que passou a ser sem ter sido.
No faz-de-conta, obviamente não estavam computadas as questões relativas ao elemento humano. Aliás, essa é a lógica do ótimo do Pareto, aquele economista que esquadrinhou matematicamente a sociedade ótima, e problema de quem não se encaixasse nela. Três leitos, quatro doentes, a sorte está lançada e quem chegar por último que se arranje. Porque a sociedade ideal é imexível. Essa dolorosa experiência foi naturalizada pela chamada grande imprensa e tratada como necessária ao processo de desenvolvimento do país.
A aviação comercial não escapou dessa arquitetura e muito menos da mesma perspectiva provinciana e irresponsável da chamada grande imprensa. Provinciana porque baba na gravata por qualquer sinal emitido pelo mercado regulador transnacional, e irresponsável porque incentiva a irritação dos passageiros enaltecendo a condição de consumidor que tudo pode na relação primária do pagou-passou.
A mentalidade do poder ilimitado do indivíduo-cliente chega agora ao transporte aéreo, só que nessa dimensão o buraco é muito mais em cima. Avião não é ônibus, e a massa de cidadãos que hoje acessa esse meio de transporte precisa ser esclarecida sobre as profundas diferenças entre os dois modos de locomoção, em lugar de ser estimulada a brandir seu direito de consumidor acima de qualquer segurança que passa, sim, pelas condições de trabalho dos controladores de vôo.
Esses profissionais são os responsáveis pelo tráfego aéreo. São os olhos dos pilotos. Conduzem os aviões a partir do solo, e não foram incluídos no projeto de modernização do país que o tucanato comprou de fora e reescreveu para dar uma versão ainda pior, versão essa que a chamada grande imprensa sustentou com manchetes e chamadas positivas.
No dito Primeiro Mundo, os passageiros têm experiência no trato entre direito e limite do consumidor. No Aeroporto de Heatrow, em Londres, Inglaterra, é recorrente a espera de até três horas dentro de uma aeronave à espera de autorização para decolagem. É claro que ninguém gosta, mas as condições de tráfego são essas e deve-se cobrar dos especialistas as alternativas para contornar o problema. No monumental Charles de Gaulle, de Paris, França, também não é incomum ficar três horas na sala de embarque e mais tantas dentro de um avião até que melhorem as condições do tempo e o piloto receba permissão para decolar.
Situação delicada
Como não há espetáculo da mídia, por muitas razões que valem outro artigo, ninguém se anima a protagonizar um papel que só interessa a uma imprensa para a qual democracia significa tão somente a liberdade ditatorial do mercado temperada pelo reconhecimento do direito do homem que de espectador passou a ser, também, o agente propagador dos sentidos emanados pela mídia.
Haja vista a cobertura do acidente da Gol. Mais uma vez a chamada grande imprensa não se ocupou em esclarecer, mas em transtornar ainda mais os sentimentos já à flor da pele. É preciso informar que no meio da aviação as causas dos desastres aéreos são apuradas com o objetivo de garantir que os acidentes não se repitam, e não com o propósito de punir ou de fornecer subsídios para ressarcimento. A razão parece óbvia. A ordem de grandeza dos componentes envolvidos num acidente de avião costuma contabilizar mais mortos do que vivos. Mas não foi assim que o assunto foi tratado. Punir e cobrar foram a tônica da cobertura no melhor estilo da sociedade do controle e de mercado.
Agora, a irresponsabilidade se repete, sensacional e sem esclarecimento na delicada situação que envolve os controladores de vôo. De fato, parodiando o astronauta da Apolo 13, cidadãos, ‘we have a problem’.
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Jornalista, mestre e doutoranda em Semiologia pela UFRJ