PANAMERICANO
fundo do BAÚ
A crise do Grupo Silvio Santos veio à tona às vésperas do aniversário de 80 anos do empresário e no pior momento para o SBT.
O mercado foi surpreendido na semana passada com a notícia de que todas as empresas de Silvio, o SBT inclusive, foram colocadas como garantia em um empréstimo de R$ 2,5 bilhões, que visa salvar o banco do grupo, o PanAmericano, da falência. À Folha, na quinta, o empresário afirmou que venderia o SBT para alguém que assumisse a dívida.
E é justamente agora, quando as eleições terminaram e o ano chega ao fim, que os anunciantes definem seus investimentos para 2011. A fim de conseguir descontos, nesta época do ano já negociam cotas de longo prazo.
A onda de notícias negativas, entre elas a suspeita de que houve fraude no banco, e a incerteza sobre o futuro do SBT podem refletir na decisão do mercado publicitário, para diretores de mídia entrevistados pela Folha.
Há uma expectativa de que anunciantes decidam não comprometer a verba por um período longo e trabalhem com a compra ‘picada’, mês a mês. Isso pode atrapalhar o planejamento da programação de 2011.
É também possível que empresas pleiteiem desconto maior, em troca da compra de anúncios em um momento delicado. Normalmente, as TVs reduzem os preços em 30% na compra antecipada.
Outra aposta no mercado é a de que o governo possa aumentar a publicidade de estatais nos intervalos do SBT, concedendo ajuda indireta à crise gerada pelo PanAmericano, de quem a Caixa Econômica Federal virou sócia.
A Secom (secretaria de comunicação do governo), responsável por distribuir a verba publicitária, não informa quanto cada rede recebe.
Consultor de mídia e ex-conselheiro comercial do SBT, Antônio Rosa Neto afirma ‘que o mercado publicitário tem consciência da importância da sobrevivência da emissora’. Para ele, o SBT não deve ser prejudicado com a crise. ‘Anunciantes olham o resultado de ibope.’
O diretor comercial do SBT, Henrique Casciota, afirmou, por meio da assessoria, que ‘os anunciantes e as agências de publicidade estão atuando normalmente’.
O SBT, contudo, passou a negociar o aluguel das madrugadas com evangélicos.
Na quinta, entrou no ar nos intervalos da emissora comunicado dizendo que ‘o SBT e outras empresas que valem no mercado mais do que o empréstimo estão absolutamente garantidas’ e que ‘as pessoas e empresas que confiam no grupo Silvio Santos não terão prejuízo’.
Na sexta-feira, a Bandeirantes, que sonha tirar o terceiro lugar do SBT, publicou anúncio dizendo que ‘confiança é tudo’ e que ‘o mercado está de olho na Band’.
TV FELIZ
A crise se soma a um histórico de queda de audiência e redução de salários no SBT.
Há dois anos, a rede perdeu para a Record a vice-liderança no Ibope. Silvio fez recentemente uma ofensiva contra megassalários. Hebe, entre outros, teve salário reduzido, e Ratinho deixou de ser contratado para se tornar ‘sócio’. Isso significa que não recebe do SBT e lucra com anúncios do programa.
Raul Gil se ofereceu para trabalhar no SBT e Silvio concordou, contanto que aceitasse ser ‘sócio’, sem salário. Esse tipo de sociedade vale também se o programa der prejuízo, que tem de ser dividido entre SBT e artista.
Essa também foi umas das razões pelas quais Gugu Liberato trocou o SBT pela Record. Em 2006, quando foi renovar seu contrato, recebeu de Silvio essa proposta.
Aceitou, até porque seu programa lucra bem. Mas a Record lhe propôs, em 2009, além de salário, um contrato de oito anos, enquanto o SBT ultimamente só assina por seis meses ou um ano.
Marília Gabriela foi uma das que assinaram contrato por apenas seis meses.
Outra dificuldade de funcionários do SBT, que lançou o slogan ‘A TV Mais Feliz do Brasil’, é lidar com a administração familiar.
Íris Abravanel, mulher de Silvio, é consultora de dramaturgia. Daniela Beyruti, sua filha, diretora artística.
Silvio, contudo, ora dá carta branca a ela, ora lhe corta o poder. Nesses momentos, chega a tirar do ar programas escolhidos pela filha, como fez com séries americanas.
No SBT, apesar do clima de apreensão, Silvio manteve a rotina de gravações. Mas já avisou que não quer comemoração para seu aniversário de 80 anos, no dia 12/12.
Termina de gravar seus programas na primeira semana de dezembro e possivelmente vai para sua casa em Orlando, na Flórida (EUA), onde poderá passar o aniversário anonimamente.
Elio Gaspari
A mosca do Planalto e as redes de TV
AQUILO QUE pareceu uma má notícia no mercado financeiro virou uma novidade do mundo das comunicações. O empresário Silvio Santos, com um rombo de R$ 2,5 bilhões no banco PanAmericano, contou à repórter Mônica Bergamo que uma das maiores redes de televisão brasileira está à venda.
Vale relembrar que no início do governo de Nosso Guia chegou ao Planalto um boato segundo o qual haveria empresários interessados no SBT, e ele disse: ‘Não dá pra gente comprar?’
Quem é ‘a gente’, não se sabe, mas é possível que ‘a gente’ tenha influenciado a Caixa na compra, por R$ 1,4 bilhão, de um buraco de R$ 2,4 bilhões do PanAmericano.
Silvio Santos frustrou as intenções de atravessadores que gorjeavam soluções capazes de contornar o problema do PanAmericano.
Na manhã de quinta-feira, o empresário Eike Batista anunciou que poderia estar interessado no SBT. À tarde, desmentiu.
A ideia de que ‘a gente’ precisa controlar uma rede de televisão está nas asas das moscas que vivem no Planalto. Em 1981, depois da falência da Rede Tupi, a Editora Abril habilitou-se para comprar a emissora e estava na reta de chegada quando foi abatida pelo tiro da desconfiança política. Ele partiu do general Otávio Medeiros, chefe do Serviço Nacional de Informações. Silvio Santos levou a Tupi.
TELEVISÃO
A bela carrasca fashion abre o closet do SBT
Em tempos em que Hebe e Ratinho dançam miudinho para renovar seus contratos, Isabella Fiorentino e Arlindo Grund, do ‘Esquadrão do Moda’, estão com o passe garantido no SBT em 2011. E mais: dando pitacos na roupa de todo mundo. É justamente com esse ‘pode’ e ‘não pode’ do mundo fashion que a dupla colocou o reality show de transformação de visual entre os melhores faturamentos da emissora. Em entrevista à Folha, a modelo Isabella, agora também consultora de estilo, dá dicas do que vestir e do que fugir na moda e arrisca até analisar o figurino do patrão.
Folha – É verdade que no começo você não conseguia esculachar os participantes do programa?
Isabella Fioretino – Sofria só em pensar que teria de ser má com as pessoas. Nunca tinha chamado alguém de brega. O diretor do programa teve de fazer um trabalho psicológico para eu começar a pegar pesado com os participantes (risos). O que me alivia é que os amigos e a família são bem piores que eu na esculhambação.
Você repete roupa?
Sim, fui em cinco casamentos com o mesmo vestido. Mulher chique sabe amortizar o estrago no bolso.
O que está proibido na moda?
Legging branca. Só podem as babás e as crianças.
Mais alguma dica?
As gordinhas devem tomar cuidado com as listras, até com as verticais. Gordinha com calça risca de giz, não pode. O culote fica parecendo parênteses.
Quem erra mais na hora de se vestir: homens ou mulheres?
Mulheres, porque têm mais opções. Mas homem quando dá para errar… Camisa masculina de seda deveria ser proibida (risos).
Quem se veste bem no SBT?
A Marília Gabriela e o André Vasco. A Eliana investe bem em tendências.
A Hebe se veste bem?
Ela é autêntica. Depois de uma certa idade, a mulher tem de se mostrar mais exuberante, usar joias. Não pode sair na rua como velhinha, com seda javanesa.
E o Silvio Santos?
O patrão está muito elegante todo de Ricardo Almeida. Até elogiei. Mas só disse isso. Até hoje fico tremendo quando falo com o Silvio, dá dor de barriga (risos).
MTV leva programas de verão ao Rio
Confirmando a disposição de investir mais no Rio, a MTV vai montar o palco para sua programação de verão na praia do Leme, zona sul da cidade. A emissora também negocia com a prefeitura um segundo espaço para gravar nas areias de Ipanema ou do Arpoador.
De 10 de janeiro a 27 de fevereiro, sete atrações de verão ocuparão quatro horas diárias no canal musical.
As novidades são um ‘talk show’ com Bento Ribeiro e a volta do ‘Luau MTV’, apresentado pelas gêmeas Bia e Branca.
RedeTV! lança tabuleiro e game do ‘Mega Senha’
A Rede TV! começou a investir em licenciamentos de produtos. Vai lançar o ‘Mega Senha’ como jogo de tabuleiro da Estrela.
‘Mais adiante apostaremos em um game do programa’, disse o vice-presidente do canal, Marcelo Carvalho, que divide o comando do programa com a mulher, Luciana Gimenez.
Segundo ele, em 2011 a Rede TV! passará a investir nesse tipo de negócio. ‘O ‘Pânico’ pode render muitos licenciamentos. Imagine um ‘ringtone’ do ‘Ah, muleque’!’.
Roberto Kaz
Davi e Golias, em versão colombiana
No dia 3 de fevereiro de 2009, após a libertação de quatro reféns das Farc (Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia), o então presidente da Colômbia, Álvaro Uribe, foi à televisão fazer um pronunciamento.
Dentre elogios aos militares, Uribe criticou duramente o jornalista Hollman Morris -apresentador do televisivo ‘Contravía’-, que, sem conhecimento do governo, acompanhou a ação, avisado por membros das Farc.
Morris declarou que as entrevistas que fizera, com homens recém libertados, eram de interesse nacional. Já Uribe preferiu taxá-lo de ‘cúmplice do terrorismo’.
Em 5 de fevereiro daquele ano, a Human Rights Watch, organização em defesa dos direitos humanos, endereçou uma carta ao mandatário do país, desafiando-o a provar a acusação ‘ou extingui-la por completo’.
Uribe se retratou publicamente -com uma frase discreta colocada no site da presidência. ‘Ninguém viu’, contou Juan Pablo Morris, irmão de Hollman e produtor do ‘Contravía’. ‘Por outro lado, a acusação foi transmitida massivamente.’
O evento teve, para o jornalista, um duplo desdobramento. Ao passo em que passou a ser mal quisto por parte da população, Hollman se viu falando de igual para igual com o presidente. Foi como se Lula, em vez de criticar a imprensa, acusasse um repórter da TV Brasil.
Em outubro, a Folha visitou a produtora do ‘Contravía’, um programa semanal, de baixa audiência, feito a US$ 5 mil o episódio.
No local, há fotos de Hollman com o escritor Gabriel García Márquez e com o subcomandante Marcos, porta-voz do Exército Zapatista de Libertação Nacional, grupo político-militar do México.
Abaixo, trechos da conversa, ocorrida ao vivo com o produtor Juan Pablo Morris e, por telefone, com Hollman, que está nos Estados Unidos em função de uma bolsa ofertada por Harvard.
Folha – Quando surgiu o ‘Contravía’? Juan Pablo Morris – Em 2003, financiado pela União Europeia. De cara, conquistamos o Simon Bolívar e o India Catalina, dois principais prêmios de jornalismo da Colômbia. No ano seguinte, a Embaixada da Holanda financiou outros 60 capítulos.
Quantas pessoas fazem o programa? Juan Pablo – Eu, meu irmão, um jornalista, um estagiário e um câmera. Viajamos de ônibus, dormimos de favor na casa dos outros. Transmitimos na menor emissora, o Canal Uno, quase todo dedicado a televenda e programação religiosa. Compramos meia hora semanal por US$ 1.500.
Por que a briga com Uribe? Juan Pablo – Isso começou em 2005, quando fizemos o episódio ‘No Podemos Guardar Silencio’, sobre San José Apartado, comunidade localizada em uma área de conflito entre militares e guerrilheiros. Em dez anos, 150 pessoas haviam sido mortas. O problema é que Álvaro Uribe governara esta região entre 1995 e 1997. Despertamos uma raiva pessoal.
O que aconteceu em seguida? Juan Pablo – Começaram as ameaças. Hollman recebeu flores em casa em ‘luto’ por sua ‘futura’ morte. Uribe o acusou de estar ligado às guerrilhas. A Embaixada da Holanda não prolongou o financiamento.
Atualmente quem banca o programa? Juan Pablo – A Fundação George Soros, que doou US$ 140 mil. Voltamos ao ar no domingo passado, com um episódio sobre a polícia secreta da Colômbia. [Juan Pablo pega uma caixa repleta de papéis]. Isso é o resultado da espionagem que eles fizeram sobre nós e que está sendo julgada pela Suprema Corte. Por sermos parte do processo, temos acesso [Ele mostra cópias de e-mails grampeados, um mapa com as viagens internacionais de Hollman e uma apostila de um suposto curso da polícia, cujo enunciado diz: ‘Iniciar campanha de desprestígio a nível internacional, através de comunicados e inclusões em vídeos das Farc’]. É um Watergate, só que pior.
Como vocês conseguiram acompanhar a libertação de reféns da Farc? Juan Pablo – Recebemos um telefonema das Farc no meu celular. Ligamos várias vezes de volta para averiguar se era cilada. Hollman e o cinegrafista decidiram ir à aldeia combinada e ficaram oito dias esperando, até receber outra ligação: ‘Vamos libertar os reféns. Se quiserem presenciar, o lugar é X.’ Hollman – Era uma ação de libertação. Antes, eu havia estado cinco vezes em acampamentos, todos sem reféns. Entenda: nunca vou deixar um campo de sequestrados com material jornalístico e sem os sequestrados.
Pretende voltar à Colômbia? Hollman – Estou nos Estados Unidos desde agosto, com minha família. Na Colômbia, são quase dez anos de ameaças, em que meus filhos cresceram com escolta. Aqui tenho uma vida. Gostaria de ficar mais.
Vanessa Barbara
Ioga para homicidas
TALVEZ SEJA culpa da velhice, mas acho surpreendente, quase inexplicável, a existência de um seriado como ‘Dexter’ (FX, qui., às 22h, 18 anos), que atinge picos de audiência de 2,6 milhões de espectadores nos Estados Unidos.
Para quem nunca viu, a série fala de um analista forense da polícia de Miami, especialista em padrões de dispersão de sangue, mas que também acumula o ofício de serial killer nas horas vagas.
Sim, é um mocinho sociopata que esfaqueia, asfixia e retalha o próximo, embrulha seu cadáver e o despeja no mar, a bordo de um iate chamado ‘Fatia da Vida’.
É verdade que em sua lista de vítimas figuram apenas homicidas impunes e que só raramente ele mata alguém por engano. ‘Eu sou um monstro limpinho’, afirma, referindo-se aos rolos de plástico com que costuma forrar a cena do crime.
‘Vivi na escuridão por um bom tempo. Então meus olhos foram se ajustando até que a escuridão se tornou o meu mundo e eu pude enxergar’, filosofa.
Durante a segunda temporada da série, que já está em seu quinto ano, o canal australiano Foxtel precisou tirar do ar um comercial que foi considerado de mau gosto. Além disso, meia dúzia de psicopatas em atividade confessaram sua admiração pelo personagem, o que estranhamente ainda não gerou nenhuma passeata de senhoras escandalizadas com a atração.
O que é ótimo, pois, enquanto isso, podemos assistir a cenas de Dexter na aula de ioga: ‘Este é absolutamente, sem dúvida nenhuma, o pior momento da minha vida’. Então a professora começa a dançar e pede que Dexter seja tão belo quanto os flocos dourados de poeira diante da luz do sol. ‘Eu provavelmente poderia matá-la antes que alguém percebesse o que houve’, pensa.
Dexter é um justiceiro engraçado, do tipo que hesita em matar um psiquiatra homicida só porque precisa de mais uma sessão de terapia. Sua narração em ‘off’ tem humor negro, tiradas tétricas e trocadilhos bobos.
‘Mais um belo dia em Miami -cadáveres mutilados e chances de tormenta no fim da tarde.’
Em certa ocasião, a mulher pergunta como ele pode ficar impassível diante do sofrimento do filho tomando uma injeção, ao que Dexter retruca mentalmente: ‘Serial killer, lembra?’.
Como se não bastasse, o fim da quarta temporada é de matar.
LITERATURA
Caçada a Monteiro Lobato
RESUMO
A releitura de ‘Caçadas de Pedrinho’ e de outros clássicos de Monteiro Lobato, avaliados como ‘racistas’ em recente polêmica na Folha, revelam uma prosa anterior aos ditames politicamente corretos. Expressões em desuso, ainda que eivadas de racismo, não impedem a construção de um mundo ficcional complexo e rico.
EXISTE RACISMO na obra de Monteiro Lobato? A resposta, definitivamente, é sim. Leia-se, por exemplo, o que ele escreveu num artigo de jornal, reproduzido em ‘Ideias de Jeca Tatu’ sem mudanças, nas diversas edições que o livro teve ao longo da vida do autor.
‘Enquanto colônia, o Brasil era uma espécie de ilha de Sapucaia de Portugal. Despejavam cá quanto elemento antissocial punha-se lá a infringir as Ordenações do Reino. E como o escravo indígena emperrasse no eito, para aqui foi canalizada de África uma pretalhada inextinguível.’
Mesmo para os padrões da época (o artigo foi escrito no começo do século 20), não deixa de soar chocante e incomum esse ‘pretalhada inextinguível’.
Certo que portugueses, índios, italianos e alemães não recebem tratamento muito melhor. O afrancesamento das elites, Lobato repetiu o tema várias vezes, era coisa de ‘macacos’.
Mas o ‘pretalhada inextinguível’ não se apaga facilmente da memória, quaisquer que fossem as intenções caricaturais e polêmicas do escritor.
Isso está na obra para adultos de Monteiro Lobato, hoje bem menos levada a sério do que sua literatura infantil.
NEGRA COMO PRONOME Passo às ‘Caçadas de Pedrinho’, que não é o único livro a fazer de Tia Nastácia uma personagem caricatural, insistindo em descrever seus traços africanos.
A todo momento, o leitor é lembrado de que a cozinheira é ‘preta’. Ela arregala os olhos como ‘duas xícaras de chá’; resmunga, ‘pendurando o beiço’; apavorada ao ver um rinoceronte, cai desmaiada no chão, e o narrador comenta: ‘desmaio de negra velha é dos mais rijos’.
Mais do que isso, a referência à cor serve o tempo todo como uma espécie de pronome, substituindo ‘Nastácia’, para evitar a repetição do nome próprio: ‘a negra aproximou-se’, ‘a pobre negra era ainda mais desajeitada do que Rabicó’, ‘a pobre negra se convenceu’ etc. etc.
Nenhum livro hoje em dia, para crianças ou para adultos, usaria esse tipo de vocabulário, e por mais que se ironize a ideia do ‘politicamente correto’, há inegável progresso em evitar esse tipo de caracterização.
Discuto mais adiante o teor do famigerado parecer do Conselho Nacional de Educação (CNE) sobre ‘Caçadas de Pedrinho’, que antes de mais nada notou o que é visível a olho nu: um palavreado como o de Lobato não se admite mais atualmente.
Observo apenas, no recenseamento desses termos, que um trecho do livro não é tão racista quanto parece. Nastácia é comparada a uma ‘macaca de carvão’ quando, em desespero, sobe rapidamente num mastro de são Pedro para escapar das feras da floresta. O macaco de carvão, ou mono-carvoeiro (Brachyteles arachnoides), tem pelo claro, quase loiro.
A VELHA, O ALEMÃO Dito isso, o tal uso ‘pronominal’ do termo ‘negra’ para substituir ‘Nastácia’ tem equivalentes em outros personagens do livro. Dona Benta é por vezes chamada de ‘a velha’, e o dono de um circo, o sr. Fritz, recebe imediatamente o tratamento de ‘o alemão’. Por sua vez, Emília, sendo interesseira e boa comerciante, é chamada de ‘ciganinha’.
Um exemplo mais recente, que não é de Lobato. Reportagem policial publicada na Folha em julho de 1969 referia-se à testemunha de um assassinato como ‘a negra Angelina Maria de Jesus (…) gorda e baixa, de nariz achatado e grande’. A reportagem sempre usa o termo ‘negra’ ao referir-se a ela.
Ruim, sem dúvida, que no ano de 1969 ainda se escrevesse assim. O caso talvez nos advirta para ver com mais estranheza, por exemplo, alguma notícia nos dias de hoje que fale de um ‘coreano’ ou um ‘boliviano’ assaltado no centro da cidade, em vez de mencionar apenas sua condição, digamos, de comerciante ou de turista.
Voltando a Tia Nastácia, vale notar que sua cor também acaba introduzindo um certo componente ‘estrangeiro’ ao conjunto dos personagens do ‘Sítio do Picapau Amarelo’.
Enquanto Dona Benta é uma velhota assustada, que acaba propiciando as condições para as aventuras dos netos, Tia Nastácia assume um papel mais rico e contraditório. É ela quem toma distância do mundo fantástico do Sítio; crédula no que diz respeito a sinais da cruz, é bem mais cética do que Dona Benta quanto estão em jogo as invencionices de Emília e as aventuras de Pedrinho.
Para Tia Nastácia, o marquês de Rabicó é, antes de tudo, um leitão. Ela corresponde a um ‘mundo adulto’, mais realista, que Dona Benta encarna apenas imperfeitamente.
Quando Emília propõe a Tia Nastácia que compre o rinoceronte, a cozinheira responde sem paciência nenhuma: ‘Era só o que faltava (…) Se fosse uma chocolateira eu fazia negócio, porque a minha está vazando’.
Por fim, quando todos perdem o medo do rinoceronte e o atrelam a um carrinho para passear, ela é a última a aceitar a novidade. É assim que termina o livro, numa frase ‘antirracista’: ‘Tenha paciência’, diz Nastácia, ou melhor, ‘a boa criatura’, expulsando Dona Benta de seu posto no carrinho. ‘Agora chegou a minha vez. Negro também é gente, sinhá…’
RACISTA AFINAL? Para resumir. Existiria, para usar o clichê, um ‘conteúdo racista’ em ‘Caçadas de Pedrinho’? Conteúdo, propriamente, não, porque o livro não diz que os negros seriam uma ‘raça inferior’ etc. etc. Mas há ‘formas de expressão’ racistas ao longo de todo o texto, mesmo quando, no último parágrafo, os direitos de Nastácia à igualdade são reivindicados (e atendidos).
Seria essa incômoda e deseducativa presença de vocabulário racista o suficiente para banir ‘Caçadas de Pedrinho’ das escolas brasileiras?
Certamente não. Mas o recente parecer do Conselho Nacional de Educação nunca propôs isso. O relatório, escrito pela professora Nilma Lino Gomes, merece ser lido na íntegra, e procura resolver com equilíbrio uma situação burocrática e legal das mais complexas.
Trata-se de responder à reclamação de um funcionário da secretaria de Educação do Distrito Federal, que notou a seguinte ambiguidade. Uma edição recente do livro, publicada em 2009, vinha com adaptações às novas normas ortográficas e com uma nota explicando que Lobato, ao fazer Pedrinho matar uma onça, vivia numa época em que os cuidados com o ambiente não eram tão intensos como hoje.
O ‘ecologicamente correto’, até que bastante injusto com Lobato, um dos primeiros a denunciar queimadas no Brasil, impôs notas e advertências na nova edição de ‘Caçadas de Pedrinho’.
NOTAS DEMAIS Por que não colocar o mesmo tipo de coisa no tocante ao vocabulário racista?
É isso o que sugere o relatório do CNE, sem deixar de enfatizar o caráter clássico da obra. Pode-se discordar, talvez, de tantos cuidados pedagógicos com notas e contextualizações, como se professores e alunos fossem incapazes de tocar com as próprias mãos num texto carregado de radioatividade política.
Pode-se imaginar que, no futuro, notas e explicações sobre ‘ciganinhas’, ‘alemães’, ‘velhas’ ou o que quer que seja terminem sobrecarregando o livro com a seriedade do politicamente correto.
Será o momento em que as aventuras de Pedrinho, Narizinho e Emília deixarão, em definitivo, de divertir os seus leitores e tratá-los com inteligência, para tornarem-se apenas uma ‘maçaroca’ e uma ‘caceteação’, como diria Lobato, a serem enfiadas pela goela das crianças.
‘A todo momento, o leitor é lembrado de que a cozinheira é ‘preta’. Ela arregala os olhos como ‘duas xícaras de chá’; resmunga, ‘pendurando o beiço’; apavorada ao ver um rinoceronte, cai desmaiada no chão, e o narrador comenta: ‘desmaio de negra velha é dos mais rijos’
‘Enquanto Dona Benta é uma velhota assustada, que acaba propiciando as condições para as aventuras dos netos, Tia Nastácia assume um papel mais rico e contraditório. É ela quem toma distância do mundo fantástico do Sítio; crédula no que diz respeito a sinais da cruz, é bem mais cética do que Dona Benta’
‘Existiria um ‘conteúdo racista’ em ‘Caçadas de Pedrinho’? Conteúdo, propriamente, não, porque o livro não diz que os negros seriam uma ‘raça inferior’. Mas há ‘formas de expressão’ racistas ao longo de todo o texto, mesmo quando, no último parágrafo, os direitos de Nastácia à igualdade são reivindicados’
Josélia Aguiar
O dia do juízo
RESUMO
Controvérsia em torno do Jabuti 2010 expõe as fragilidades dos prêmios literários brasileiros, que buscam firmar-se num país sem tradição na área. Na confluência de mercado editorial, leitores e crítica, exemplos americanos e europeus fornecem possíveis modelos para conferir credibilidade aos equivalentes nacionais.
QUANDO CONCLUIU ‘Leite Derramado’, o escritor Chico Buarque pensou que enfim estava livre dos tormentos de Eulálio, o narrador moribundo que àquela altura já se transformara num encosto para seu criador. Mas há duas semanas, ao ser chamado ao palco da Sala São Paulo para receber o Prêmio Jabuti de melhor livro de ficção do ano, o bafafá irrompeu. Seria coisa de Eulálio?
Aos comentários galhofeiros sobre sua fecundidade (já são três os quelônios em sua prole) seguiram-se críticas mais duras -não ao livro, mas à entidade que o cobriu de louros. Segundo colocado na categoria romance, Chico acabou levando para casa o grande prêmio da noite -o de livro do ano de ficção, no valor de R$ 30 mil.
Na última quinta-feira, o presidente do Grupo Editorial Record, Sérgio Machado, divulgou uma carta endereçada à promotora do cinquentenário prêmio, a Câmara Brasileira do Livro (CBL). Editor do primeiro colocado na categoria romance, o estreante Edney Silvestre, Machado indignou-se com a situação ‘esdrúxula’. O Jabuti, diz a carta, seria uma ‘comédia de erros’ da qual o Grupo Record -o maior do país no setor de obras gerais, isto é, não especializado em obras técnicas ou didáticas- não mais iria participar.
Não é a primeira vez que Chico Buarque vê seu talento ser questionado ao amealhar um Jabuti. Em 2004, ‘Budapeste’, o terceiro lugar na categoria romance, também foi escolhido como livro do ano de ficção, para indignação dos que não aceitam ver um compositor ser alçado à glória literária.
REGULAMENTO A polêmica não está na discussão sobre a qualidade da prosa de Chico ou de Edney, mas no abstruso regulamento do prêmio, que reúne uma infinidade de categorias -em 2010, foram 21- e uma confusa segunda etapa, na qual os três primeiros colocados nas principais categorias concorrem ao título de livro do ano de ficção e de não ficção.
Em vez do júri especializado da primeira fase, quem escolhe os vencedores da segunda são os representantes da CBL (livreiros, editores, agentes, distribuidores e demais representantes do setor editorial), em geral pouco afeitos ao exercício da crítica literária.
Quem inventou essa regra insólita, entre as outras que há no Jabuti, certamente não pensou na celeuma que podia causar. Por causa delas, autores de qualidade e premiáveis são muitas vezes colocados sob suspeição. Uma vitória merecida ganha ares de ‘tapetão’, mesmo cumprindo as exigências do regulamento.
A Folha consultou a CBL sobre o comunicado da Record. A entidade divulgou uma nota afirmando que ‘no ato da inscrição das obras que concorreram este ano, que teve recorde de inscritos, todos os participantes declararam conhecer o regulamento da premiação’ (veja a íntegra da nota em folha.com/ilustrissima).
INCONGRUÊNCIAS Não é de hoje que editores reclamam do funcionamento do Jabuti. Mas as queixas costumam ser em off, pois há um misto de simpatia pelo prêmio e receio de se indispor com a entidade que representa o setor. Os rugidos da Record são uma ameaça à harmonia no mais tradicional prêmio das letras brasileiras.
Não faltam incongruências que contribuem para lançar suspeitas sobre a legitimidade do prêmio. Uma das queixas recorrentes: a cada ano, há sempre livros encaixados em categorias diferentes daquelas em que são registrados na ficha catalográfica, feita pela própria CBL. Há ensaios que ganham como se biografia fossem; há autores clássicos, já mortos, que competem com autores iniciantes.
Não há dúvida de que ‘O Leitor Apaixonado’, coletânea de ensaios em que Ruy Castro recolhe suas reminiscências de leitura, merece ser premiado; mas na categoria reportagem? As crônicas inéditas de Manuel Bandeira, que ficaram em terceiro lugar e levaram o prêmio ‘in memoriam’, não deveriam estar numa categoria à parte, reservada aos clássicos? E Nelson Rodrigues, que, uma vez inscrito, nem entre os três primeiros ficou? Quem pode julgar uma tradução do grego antigo, sânscrito, russo ou húngaro, as línguas difíceis que volta e meia dão aos tradutores o Jabuti da categoria?
PRESTÍGIO ‘Antes os escritores eram prestigiados pelos prêmios, agora são os prêmios que precisam dos escritores para ter prestígio’, resume o editor José Mário Pereira, da carioca Topbooks. ‘Com a sociedade do espetáculo, já sabemos em janeiro quem vai ser premiado em dezembro. O premiado é fabricado antes, pela mídia.’
Júlio Pimentel Pinto, professor de história na USP, que fez ressalvas a ‘Leite Derramado’ em seu blog (paisagensdacritica.wordpress.com), defende o autor: ‘O problema não é o Chico, que é sério e escreveu um livro decente. O problema são os aduladores’.
O curioso é que, entre as 21 categorias, nenhuma tem como objetivo revelar autores estreantes, umas das vocações de um prêmio literário. ‘A tradição do Jabuti é escolher os melhores’, explica o curador do Jabuti, José Luiz Goldfarb. ‘Consagrado ou estreante não é critério. Há muitos consagrados premiados, mas a cada ano temos também novidades.’
De fato, há novidades em 2010. Uma delas é o prêmio de melhor romance para Edney Silvestre, por ‘Se Eu Fechar os Olhos Agora’, que fez dele o favorito para o livro do ano de ficção. Três meses antes, o autor recebera outro prêmio, o São Paulo de Literatura, mas na categoria primeiro romance.
No Prêmio São Paulo, o vencedor na categoria romance foi Raimundo Carrero -que, aliás, não estava entre os dez finalistas do Jabuti. Chico também estava entre os dez finalistas do São Paulo.
Em tempo: nem Silvestre, nem Carrero ficaram entre os dez finalistas de outro prêmio importante, o Portugal Telecom, que Chico Buarque também faturou.
GONCOURT O terceiro lugar para as crônicas de Manuel Bandeira levou a Folha a perguntar: inéditos de Paul Valéry ou Georges Bataille teriam chance hoje de estar entre os finalistas para o Prêmio Goncourt? A pergunta deve ter parecido bem esquisita, pois Marie Dabadie, a administradora da Academia Goncourt, interrompeu subitamente a troca de mensagens com a reportagem. Insisti. ‘Por favor, consulte o regulamento no site’, ela respondeu. Disse-lhe que o havia lido, mas queria ter certeza. No novo e-mail, a frase que ela recortou e colou assinalava que a distinção se destina estritamente ‘às novas e ousadas experiências do pensamento e da forma’, segundo o testamento de Edmond de Goncourt.
Apenas livros novos, de autores vivos, podem competir, confirmaram representantes do britânico Man Booker Prize e do americano National Book Award. A pesquisa não foi exaustiva. Passa de 300 o número de láureas de grande porte nos EUA e na Europa, informa um dos catálogos que mapeiam prêmios literários do exterior.
Goncourt, Booker Prize e National Book Award têm respeito da crítica, prestígio entre leitores, atenção de editores e livreiros e ajudam a lançar nomes ou a consagrar autores já conhecidos.
Na França, os prêmios são uma mania nacional comparável às greves do metrô: há para todos os gostos, inclusive um indicado pelos alunos do ensino médio, o Goncourt des Lycéens, e um que dá ao vencedor uma taça de vinho por dia, durante um ano, no Café de Flore, ícone dos intelectuais de Saint-Germain-des-Prés.
Com a votação popular pela internet, implantada em 2010 -o que o aproxima de prêmios de cinema, nos quais a plateia dá seu voto na saída-, o Jabuti mais uma vez causou espécie entre os entrevistados do Goncourt, do National Book Award e do Man Booker Prize.
‘Surpreender’ o público, segundo responderam, está entre os atrativos. ‘Como assim ‘se refletimos o gosto do mercado’?’, perguntou Marie Dabadie, irritada.
VALORES O que ajuda um prêmio a ter mais prestígio que outro? Ser o mais antigo ou o pioneiro são alguns dos valores em jogo. Uma grande soma como premiação é outro fator. A reputação dos jurados é essencial. Além, é claro, de ter acertos no currículo, explica James F. English, Ph.D. em literatura inglesa, autor de ‘The Economy of Prestige -Prizes, Awards and the Circulation of Cultural Value’ (Harvard University Press).
O livro de English, que combina análise sociológica e econômica para compreender prêmios de cinema e literatura, conta uma história que começa na Grécia antiga, com festivais em honra a Dioniso (competia-se com poesia, música e dança), e chega ao século 20, com sua profusão de láureas -a mais famosa delas, o Nobel, que em 1901 inaugurou a era moderna dos prêmios (leia mais em folha.com/ilustrissima).
English acrescenta: ‘Certa medida de escândalo e controvérsia pode dar enorme vantagem a um prêmio, na comparação com outros mais ‘discretos’. Alguns prêmios têm valor simbólico, e outros, de tão polpudos, garantem a subsistência por um bom tempo. O principal é que, ao receber na capa uma etiqueta que diz ‘vencedor do Goncourt’, uma obra pode mudar a trajetória de um autor.
Mas, para dar certo, a controvérsia deve ser de natureza literária ou crítica -o que não é o caso da polêmica do Jabuti, que tem a difícil tarefa de satisfazer os gregos e troianos associados da CBL.
Quando questões de mercado se misturam a critérios críticos, a chance de algo dar errado é grande, como ocorreu com o romancista argentino Ricardo Piglia, que ‘venceu’ o concurso de sua própria editora, a Planeta.
Na atrapalhada operação, que visava mais promover o romance ‘Dinheiro Queimado’ do que premiar novos ou antigos talentos, a editora tentou abater com o valor do prêmio parte dos US$ 100 mil que pagara ao escritor como adiantamento dando-lhe um prêmio que, por tabela, alavancaria as decepcionantes vendas do livro.
Descoberta a picaretagem, editora e autor foram processados por um concorrente preterido no certame, que venceu a contenda judicial. Intelectuais se manifestaram em defesa de Piglia, , um dos autores mais respeitados do país, que estaria sofrendo uma campanha de difamação.
POLÍTICA Na carta à CBL, a Record afirma que ‘a premiação foi pautada por critérios políticos, sejam da grande política nacional, sejam da pequena política do setor livreiro-editorial’. Quem esteve na Sala São Paulo afirma que Chico Buarque subiu ao palco sob gritos de ‘Dilma, Dilma!’.
De fato, num debate estético, é difícil evitar julgamentos políticos, que podem ser de dois tipos: internos -quer dizer, ligados ao círculo literário- ou externos. Não é um autor magoado, sem prêmios, quem diz isso. É Harold Augenbraum, diretor-executivo do National Book Award. A saída, explica, é misturar, num júri, vozes e perspectivas estéticas diferentes.
‘Sempre enfatizamos com os jurados que devem olhar para fora de sua ‘zona de conforto’, ou seja, observar obras bem realizadas que sejam diferentes deles mesmos’, afirma Augenbraum. Diz algo parecido Ion Trewin, diretor literário do Man Booker Prize: ‘Os jurados são escolhidos para refletir uma grande variedade de formações e gostos. Podem ser de qualquer área, desde que sejam apaixonados por ficção’.
O National Book Award foi alvo de críticas, durante décadas, bem como outros prêmios de porte nos EUA, por supostamente ceder à pressão de grandes editoras. O que levou ao surgimento de iniciativas como o Pushcart Prize, criado em 1976 para premiar apenas autores publicados pelas editoras pequenas, independentes.
REPERCUSSÃO Mesmo recentes, o Portugal Telecom e o São Paulo de Literatura têm grande repercussão, sobretudo pelo valor concedido aos vencedores. Ajudar bons escritores a constituir um pé de meia que lhes permita viver de escrever, afinal, é um dos propósitos de um prêmio literário. O fenômeno póstumo Roberto Bolaño, chileno que virou best-seller mundial, passou boa parte da vida no anonimato, faturando pequenos concursos de prefeituras espanholas.
Criado em 2003, o Portugal Telecom se constituiu, de certa modo, procurando evitar as fragilidades do Jabuti: de saída, reivindicou o posto de prêmio mais polpudo e preocupou-se em formar um júri final com críticos de renome na imprensa ou na universidade. São dez finalistas e três premiados -primeiro, segundo e terceiro lugares- em prosa e poesia. Outra diferença em relação ao prêmio da CBL é que os jurados do Portugal Telecom se reúnem para debater.
Pelo regulamento, há cotas para autores portugueses e de países africanos de língua portuguesa. Há uma auditoria independente, que acompanha as diversas fases, quando a decisão sobre os semifinalistas é feita por meio de consulta a uma lista de jurados com algumas centenas de nomes.
No Prêmio São Paulo, organizado pelo governo paulista há três anos, o júri tem profissionais de perfil misto -são ligados ao mundo do livro- e apenas duas categorias: melhor romance e melhor romance estreante.
A premiação que oferece é muito superior à do Jabuti. Andrea Matarazzo, secretário de Cultura, lembra que o Prêmio São Paulo de Literatura tem o mérito de, nas duas últimas edições, ter premiado autores com carreira significativa -este ano, Carrero, ano passado, Ronaldo Correia de Brito-, mas que ainda não haviam recebido o devido reconhecimento.
CONVERGÊNCIAS Ano a ano, a comparação entre os finalistas do Jabuti, do Portugal Telecom e do São Paulo mostra que há mais convergências que divergências. Até porque muitos dos curadores e jurados se repetem e se revezam.
‘Julgar é uma grande responsabilidade, hoje mais do que no passado, quando os critérios de valor eram mais definidos’, afirma Leyla Perrone-Moisés, crítica literária que participou de mais de um júri do Portugal Telecom, entre eles o de 2010. ‘Apesar disso, quando os críticos se reúnem não há grandes divergências, e muitas vezes há consenso, o que prova que os valores, embora mais fluidos, continuam existindo.’
Outro crítico, Alcir Pécora, avesso a prêmios, ressalta que literatura de qualidade depende não do apoio isolado dos prêmios, mas do nível de educação da população. ‘Dado o quadro conhecido e lastimável da educação brasileira, toda a prática cultural do país está comprometida. Sofrem todas as artes, sofre tudo o que demande e dependa do cultivo intelectual. Claro que um ou outro milagre pode ocorrer, sempre, mas será um milagre, não uma situação sobre a qual se possa descrever pela razão’. As ações culturais de peso, argumenta Pécora, são sempre relativas à educação e não à promoção de eventos culturais isolados, sejam quais forem os agentes envolvidos: críticos, editoras, prêmios, jornais ou revistas.
Ele diz que são mais felizes os prêmios literários de países que os tomam apenas como prêmios literários, em vez de tomá-los como responsáveis decisivos pela melhora da situação cultural e literária do país. ‘Tanto menos se dependa deles como salvação da lavoura, ou, dito de outro modo, tanto mais saibam que são fundamentalmente dispensáveis, tanto mais podem ser interessantes’, diz.
Não é de hoje que editores reclamam do funcionamento do Jabuti. Mas as queixas costumam ser em off, pois há um misto de simpatia pelo prêmio e receio de se indispor com a CBL.
Ano a ano, a comparação entre os finalistas do Jabuti, do Portugal Telecom e do São Paulo mostra que há mais convergências que divergências.
Sérgio Machado: ‘Edney Silvestre foi garfado’
NA QUINTA-FEIRA, o presidente do Grupo Record, Sérgio Machado, enviou carta à presidente da CBL, Rosely Boschini, e ao curador do Jabuti, José Luiz Goldfarb, anunciando que em 2011 não inscreverá livros no prêmio.
O motivo: sua discordância com os critérios da disputa, que premiou como livro do ano de ficção o segundo colocado na categoria romance, ‘Leite Derramado’ (Cia. das Letras), de Chico Buarque, em detrimento do vencedor na categoria, ‘Se Eu Fechar os Olhos Agora’ (Record), de Edney Silvestre.
Machado recebeu o editor da Ilustríssima, Paulo Werneck, na sede da Record, no bairro carioca de São Cristóvão. Entre a indignação com o Jabuti (‘um concurso de beleza’) e a empolgação com a rotativa Cameron que acaba de comprar, Machado e a diretora editorial do grupo, Luciana Vilas Boas, falaram à Folha, tendo por testemunha a assessora de imprensa Gabriela Máximo e 30 das muitas estatuetas do Jabuti já conquistadas pelo grupo.
Folha – Por que a Record não vai mais inscrever livros no Jabuti? Sérgio Machado – O meu protesto não é contra quem ganhou, é contra o processo, contra o conceito, a concepção do prêmio. Nesse prêmio o livro é inscrito pelas editoras, que pagam por inscrição. Quando eu inscrevo e pago, estou aceitando as regras. E se eu não estou feliz com as regras, o que é que eu posso fazer? Não inscrever. É só isso que eu fiz.
A que você atribui a premiação a ‘Leite Derramado’?
A concepção do prêmio favorece essa característica de celebridade. Se eu amanhã publicar um livro infantil da Xuxa, é capaz que eu ganhe o infantojuvenil. Esse prêmio, do jeito que está sendo disputado, poderia ser feito na plateia do Faustão. Ou do Silvio Santos. Porque não tem absolutamente nenhum critério.
Soa como um ‘tapetão’?
Não. Soa uma coisa mal pensada. Você tem que ser orientado. Tem que haver uma lista. Agora essa lista chega e diz assim: o melhor é esse, o segundo é esse, o terceiro é esse. Se essa lista não ranqueasse, se fosse um ‘short list’ [lista de finalistas] como o Booker Prize, não haveria esse mico do segundo ganhar [o prêmio de ‘livro do ano’], o terceiro ganhar, o que é uma coisa esquisita.
Existe uma intenção de reafirmar um consenso nacional em torno do Chico Buarque?
Acho que isso é uma obviedade. Não acho que houve por parte da CBL, mas de certa forma acaba sendo, quer dizer, fica combinado assim, quando o Chico Buarque tiver um livro, ele já ganhou.
Edney foi roubado?
Roubado, ‘garfado’. É uma coisa desagradável, porque a sua defesa pode ser sempre: ah, está com dor de cotovelo… mau perdedor… Mas nós entendemos que o autor é a razão de ser da editora.
E se a CBL propuser um novo regulamento?
Claro, vamos estudar, vamos ver, vamos experimentar, claro. A ideia é essa. (Leia a íntegra em folha.com/ilustrissima)
Esse prêmio, do jeito que está sendo disputado, poderia ser feito na plateia do Faustão. Ou do Silvio Santos. Porque não tem absolutamente nenhum critério
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