A imprensa entrou com o pé direito no período pós-eleição. O governo começou tropeçando nos próprios pés e dando bordoadas. O primeiro tropeço ocorreu já no domingo (29/10), dia da votação, quando o poeta solitário Tarso Genro, também ministro de Relações Institucionais, anunciou o fim da ‘era Palocci’ e da ‘preocupação neurótica com a inflação’. Foi uma Carta aos Brasileiros com sinal trocado. A notícia apareceu com destaque em todos os meios, competindo com as primeiras declarações do presidente reeleito. No dia seguinte, quando surgiram os previsíves efeitos da bravata, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva teve de corrigir o estrago, reafirmando compromissos com as políticas fiscal e de metas de inflação. É raro um governante escolhido para um segundo mandato ser forçado, em menos de 24 horas, a um lance defensivo, para dar explicações à opinião pública.
Nessa mesma segunda-feira, novo tropeço, politicamente mais feio que o primeiro. A chegada do presidente Lula a Brasília foi saudada por boçais de carteirinha com hostilidade à imprensa e ameaças a jornalistas. O presidente não se manifestou. Como de costume, não soube de nada. O presidente do PT, Marco Aurélio Garcia, fez um comentário morno sobre a cafajestada: ‘Se houve qualquer manifestação de intolerância, tem nossa condenação’.
Primeiro, o condicional não se aplica. As manifestações foram públicas. Segundo, a imprensa não pede tolerância. Em seguida, o conselheiro presidencial e diretor do partido governista aconselhou aos meios de comunicação uma ‘auto-reflexão’ sobre seu procedimento na campanha.
Depois desses fatos e da conversa do ex-ministro Ciro Gomes sobre ‘democratização’ dos meios de comunicação, os jornalistas têm o direito, e até o dever, de se prevenir contra novos ataques às liberdades de informação e de opinião nos próximos quatro anos. As pressões de um delegado da Polícia Federal conta repórteres de Veja, na mesma semana, completaram o cenário agourento para a imprensa brasileira.
Se fosse um jogo, os meios de comunicação teriam vencido de goleada, tanto por suas jogadas quanto pelos gols contra marcados pelo governo. Enquanto autoridades e dirigentes da Petrobras insistiam em ter feito um bom acordo com o governo boliviano, os jornais foram publicando, dia após dia, informações acachapantes sobre as negociações do contrato do gás. O governo brasileiro havia desmentido o ultimato boliviano, mas correu para assinar o contrato na noite de sábado (28/10) para domingo, no prazo fixado pelo presidente Evo Morales.
Silêncio eloqüente
Brasília aceitou a maior parte das condições, incluída a vinculação de rentabilidade a novos investimentos. Admitiu, entre outros detalhes inconvenientes, sujeitar à Justiça boliviana qualquer conflito referente ao novo contrato. Na edição de terça-feira (31/10), o Estado de S.Paulo destacou esse detalhe. A Folha de S.Paulo chamou a atenção para a tática política de Morales – aproveitar o segundo turno para pressionar Lula.
Naquele dia, em La Paz, Evo Morales informou, numa entrevista coletiva a correspondentes e enviados estrangeiros, haver posto as Forças Armadas de prontidão para tomar instalações da Petrobras, se o contrato não fosse assinado no prazo. O governo brasileiro, segundo o Estadão, havia sido informado da ameaça uma semana antes, por um enviado oficial boliviano. As autoridades brasileiras continuaram comentando o caso como se nada grave houvesse ocorrido e como se qualquer reação mais digna equivalesse a um ato imperialista.
Além de informar sobre a ameaça, o Estadão contou, na quarta-feira (1/11), o objetivo seguinte do governo Evo Morales: entregar à Petrobras um gás empobrecido, retendo frações nobres, como butano, etano e propano, para aproveitamento em plantas petroquímicas. Se isso ocorrer, um projeto brasileiro será impossibilitado. A Petrobras negou conhecimento do assunto. Se o projeto petroquímico boliviano-venezuelano for levado adiante, comentou o especialista Carlos Miranda, ex-ministro de Hidrocarbonetos da Bolívia, será preciso rever o contrato de venda de gás ao Brasil. Até a semana passada, o governo brasileiro e a Petrobras mantinham silêncio sobre todos esses detalhes.
O público nada saberia sobre esse e outros aspectos do contrato com a Bolívia sem o trabalho da imprensa. Talvez o governo, e não a imprensa, devesse fazer uma auto-reflexão. Mas nada autoriza, por enquanto, esperar do presidente Lula e de seus auxiliares um novo comportamento.
Imprensa compreensiva
A qualidade gerencial do atual governo – e talvez do segundo mandato – foi escancarada, mais uma vez, com a semana de caos na aviação civil. O ministro da Defesa, Waldir Pires, confessou desconhecer as condições de trabalho dos controladores de tráfego aéreo. O presidente Lula, como de costume, nada sabia, mas pelo menos cobrou das autoridades da área uma solução para a crise. O ministro da Defesa aparentemente nem sabia da possibilidade de convocar para o trabalho o pessoal militar da reserva.
Os prejuízos morais e econômicos foram certamente enormes e mais uma vez o mundo real ficou entregue às traças. Mais uma vez o centro do poder mostrou desconhecer as condições mínimas de funcionamento do país e de operação da sua economia. As conseqüências apareceram e os meios de comunicação registraram.
A tal imprensa democratizada, ajudada e abençoada pelo poder, talvez seja mais compreensiva, mais patriótica e mais disposta a cuidar dos verdadeiros interesses do povo – aqueles apontados pelo Palácio do Planalto – se os caminhos apontados pelos amigos do presidente forem seguidos.
******
Jornalista