Primeiro, uma série de redundâncias surpreendentemente necessárias: não há poder que não possa e não deva ser criticado e fiscalizado. A própria mídia se auto-intitula o quarto poder da sociedade: logo, ela deve ser criticada e fiscalizada, desde que não se confunda fiscalizar com patrulhar.
As redundâncias são necessárias porque nos dias de hoje qualquer crítica mais severa aos meios de comunicação é interpretada como ‘ataque à liberdade de imprensa’. Com um mínimo de boa vontade, no entanto, é possível compreender que pessoas civilizadas não utilizam a mídia para atacar a liberdade de imprensa, mas evocam a liberdade de imprensa para criticar a mídia, num ato cidadão de fiscalização dos poderes.
O problema pode ser de ordem semântica: quando se diz imprensa, normalmente se refere ao corpo de jornalistas responsável por levar a verdade dos fatos à sociedade. Ou aqueles que vão até o mais amplo leque possível da sociedade (ou seja, ‘o todo’) para ouvir as suas diversas vozes sobre fatos e fenômenos sociais. Usando uma expressão dos adolescentes de hoje: nem a ciência ‘se acha’ tanto. [Nem é razoável que se acredite que todas as vozes da sociedade tenham lugar na grande imprensa, nem que a verdade, cujo estatuto é tão questionado nas epistemologias modernas, seja uma atribuição possível da imprensa. ‘As vozes’ aqui entram em cena numa referência a Mikhail Bakhtin e às ‘vozes ideológicas’ presentes na sociedade, e que freqüentariam uma literatura moderna e polifônica como a de Dostoievski. A partir de Bakhtin, teóricos da mídia começaram a atribuir ao jornal a característica central da polifonia, sem perceberem, no entanto, que, na maioria das vezes, quando há implicações políticas e/ou econômicas sérias, os jornais tendem ao silenciamento das vozes discordantes.] Tanto uma definição quanto outra, além de demonstrar pretensões descabidas, motiva o corporativismo por apagar um fato quase sempre silenciado.
O fato é que ‘imprensa’ refere-se, na verdade, ao universo de jornalistas que trabalham em instituições midiáticas, mas também aos seus dirigentes, e a outros jornalistas que se outorgam o direito de serem independentes. Por instituições midiáticas podemos nomear de pequenos jornais alternativos a megagrupos empresariais, com interesses políticos e econômicos, tão ideológicos quanto qualquer militância esquerdista de porta de fábrica.
Há o modo idealista de se ver a imprensa. É direito de quem quiser vê-la assim – dissociada dos grandes grupos empresariais e das famílias que oligopolizam a liberdade de expressão. Mas há também um modo menos ingênuo: por exemplo, que no Brasil não seja possível discutir-se imprensa sem se pensar na disputa por nichos de telecomunicações, como telefonia ou transmissão a cabo, distribuição de livros em escolas, tecnologias digitais etc., além, evidentemente, da luta pelo prestígio político. Esta disputa se dá nas páginas de revista, mas também na Bovespa, no Congresso ou no Palácio.
Empresas. Nada mais
É preciso dar definitivamente um ‘Adeus às ilusões‘ de um jornalismo absolutamente romântico, que teria lutado contra a nobreza em nome do Terceiro Estado. Sabe-se perfeitamente que parte – e somente parte – do objeto do manifesto do abade Sieyès [Autor do manifesto que, em oposição ao Primeiro (o clero) e ao Segundo Estado (a nobreza), mostra como a ampla maioria da classe produtora, burguesia, trabalhadores livres e camponeses, estava, nas cercanias da Revolução Francesa, alijada das decisões de poder e dos direitos do Estado] foi promovida, com a imprensa junto. Meio século depois, Balzac [Autor de Os jornalistas, crítica ácida aos personagens da imprensa que freqüentavam a sociedade burguesa francesa nos Novecentos.] já tinha percebido isso.
Enquanto isso, do outro lado do Atlântico americanos da penny press [Que marca o surgimento da imprensa noticiosa, contra a chamada party press (baseada na prática da opinião e de artigos de fundo); a ‘penny press’ (que pode ser traduzido hoje como ‘imprensa do tostão’) fazia referência ao preço muito baixo desses jornais, de feitio popular, que surgiu nos 30, nos EUA, e cujos fundadores nunca esconderam seu caráter absolutamente comercial] já pregavam, sem pudor, que ‘news is commodity’ [Ver Muniz Sodré Reinventando a cultura (ed. Vozes, 1996), sobre o surgimento da notícia moderna.], mostrando que nem só de burguesia, mas de muito mercado, precisaria a imprensa daquele momento em diante.
Herdamos esse idealismo tardio. O que foi reforçado nos tempos da ditadura. Mas no Brasil, 20 anos depois, parece que ainda se acredita que o heroísmo da luta contra a ditadura militar por parte de alguns jornalistas diz respeito a uma suposta luta de grandes empresários contra aquele regime que os beneficiava. Poemas de Camões [Editores do Estadão publicavam versos para denunciar censura naquele espaço da página.] em páginas censuradas não impediam o cafezinho à noite com o poder, em encontros entre donos de jornais e ministros adesistas. Quem se pôs do outro lado foi para o espaço, como o saudoso Correio da Manhã [Melhor referência sobre o caso é Um jornal assassinado: a última batalha do Correio da Manhã, de Jéferson Andrade (José Olympio, 1991).]. A ditadura era mais do que militar. Quem sobreviveu, usufruiu. E não me parece que os filhos dos oligopólios da mídia tenham tido o mesmo fim de Vladimir Herzog [Morto em 25 de outubro de 1975, nas dependências do DOI-Codi, em São Paulo.].
Então, é preciso parar de divinizar as empresas jornalísticas, como senhoras cativas do céu dos justos. São empresas. Nada mais. Pagam aos jornalistas e às vezes atrasam. Estes sabem perfeitamente o que é ‘pegar a barca’ [Passageiro freqüente das barcas, Alberto Dines pegou a última em 2004, na estação Jornal do Brasil, por discordar da linha editorial do periódico carioca.] se discordarem. Sabem também que a maior vítima do todo-poder dos barões da mídia é a própria liberdade de opinião dos jornalistas. E que megaempresário está longe de ser coleguinha [Para os que não são da área, ‘coleguinha’ é como alguns jornalistas se referem aos companheiros de categoria.].
Novo marco
Mas há algo novo no ar. Com o advento de mídias liberais [Aqui expressão tomada em oposição às ‘mídias tradicionais’, muito dependentes de empresas de algum porte para funcionar. As mídias liberais, possibilitadas pelo surgimento da web, não precisam de estrutura institucional, como a televisão, a produção impressa ou o rádio, o que faz com que a ação autônoma de jornalistas possa ter lugar.] (blogs, podcasts, sites independentes, como este), a liberdade de opinião foi potencializada. E potencializados os instrumentos de crítica e fiscalização dos próprios conglomerados de mídia.
O que está deixando os barões de cabelos em pé é o fenômeno que vem desestabilizando as regras do jogo do ‘mercado de opinião’ (expressão do jornalista Luis Nassif) que dominavam sem preocupação, pois faziam coincidir liberdade de expressão, de opinião, de imprensa e de empresa sem nenhum pudor: entraram em cena jornalistas independentes, de credibilidade insuspeita, e leitores ávidos por opinar e se posicionar. Com isso, a atividade de media watching deixou de ser um monopólio do solitário e combatente Observatório da Imprensa e passou a se difundir pela rede.
Isso já era um processo histórico. Mas foi na atual eleição que se deu o marco: a web, pela primeira vez, afetou a primazia surda e soberba das grandes redes de TV, revistas e jornalões, que não estavam preparados para ouvir críticas em grandes volumes. Blogs e observatórios geraram um intenso e salutar debate em torno da cobertura nessas eleições, o que poderia animar qualquer idealista sobre a liberdade de imprensa a sonhar com o fim do monopólio da voz [Não escondo aqui a referência indireta à obra de Muniz Sodré O monopólio da fala: função e linguagem da televisão no Brasil (Ed. Vozes, 1984), mas mantendo a metáfora conceitual de ‘voz ideológica’.] e o início de um grande espaço público da comunicação.
Processo irreversível
Mas eis que a reação não demoraria: num primeiro momento, alguns poderosos editores se predispuseram a prestar esclarecimentos. Mas, numa mídia tão interativa, estariam sujeitos a serem contestados. Não acostumados com isso, logo depois passariam à prática de disparar torpedos fulminantes contra este Observatório e a liberdade de opinião de jornalistas como Luis Nassif, Caio Túlio Costa, professores como Venício Lima e outros, no início perigoso do que pode ser uma caça empresarial às bruxas e à formação de um index com nomes de jornalistas e intelectuais.
O ataque também vem se dirigindo a empresas jornalísticas menores que ousaram divergir da cobertura e do ponto de vista do establishment midiático. A face do poder dos grandes grupos vai se revelando de forma autoritária e perigosa para a sociedade, que se animou a debater a voz, a imagem e o papel da mídia.
Confia-se, no entanto, em que o processo que agora se inicia seja absolutamente irreversível. Que a violência verbal que se usa contra jornalistas independentes, contra entidades de media watching não será bem-vinda pelo conjunto da sociedade organizada. E que nenhuma ditadura em nome da liberdade será admitida: nem de governos, nem de megaempresas de comunicação e seus generais.
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Lingüista e professor de Jornalismo.