‘1. ‘Príncipe William vai casar-se na Primavera ou no Verão’, anunciava a edição on line do PÚBLICO na passada terça-feira. ‘Foi com o anel de Diana que William pediu Kate em casamento’, lia-se no dia seguinte na capa do jornal, remetendo para uma notícia, no caderno P2, sobre o noivado que acabava de ser confirmado pela casa real britânica.
Erro, diz o leitor F. Pinto dos Santos. E explica: ‘Se a rainha é Isabel II e se o seu filho é o príncipe Carlos, o filho deste é o príncipe Guilherme e não ‘William’’. Ou não saberá o jornal, interrogava, ‘ que os nomes dos membros das casas reais são (…) sempre traduzidos?’.
William ou Guilherme? A dúvida assaltou a jornalista Rita Siza, quando redigia a peça sobre o noivado do príncipe: ‘Coloquei a questão às editoras do P2, que me explicaram que havia uma regra, vertida no Livro de Estilo, estabelecendo que se utiliza o ‘uso corrente’ do nome, e que no caso esse era William e não Guilherme’. A editora Andreia Sanches, por quem passou o texto, consultara a equipa de copy desk do jornal e ouvira a opinião de que o normal seria ‘adoptar a designação que é mais corrente’, o que levaria à opção por William, ao contrário do habitual aportuguesamento — pelo mesmo critério de ser ‘mais comum’ — dos nomes do pai (Carlos) e da avó (Isabel) do príncipe. Numa rápida pesquisa, constatou que o número de referências a ‘príncipe William’ na imprensa nacional era duas vezes superior ao das menções a ‘príncipe Guilherme’.
Esse resultado, que não nos diz necessariamente qual é a opção dominante na comunicação social portuguesa, mostra que a questão não é pacífica. E nem sequer é pacífica na redacção do PÚBLICO. Aurélio Moreira, da equipa de copy desk (à qual cabe, entre outras, a tarefa de zelar pela harmonização de critérios na grafia dos nomes), concorda com a observação do leitor Pinto dos Santos, e lembra que ‘a regra antiga (…) era a de que se atribuía aos membros das famílias reais os nomes correspondentes em português’. E desfia os exemplos: Beatriz da Holanda, Balduíno da Bélgica, Carolina ou Estefânia do Mónaco, entre muitas outras figuras, vivas ou já desaparecidas, das monarquias europeias. Recorda apenas, como excepções, o espanhol Juan Carlos (talvez ‘por ter vivido em Portugal em criança e a imprensa se ter habituado a grafar desse modo o seu nome’) e o monegasco Rainier (por eventual dificuldade ‘de se encontrar um nome correspondente em português’). Na sua opinião, ‘fontes de noticiário social maioritariamente escrito em inglês’ e o ‘desconhecimento’ da norma por redactores mais jovens terão contribuído para o crescente esquecimento da ‘regra antiga’, ‘criando situações de incoerência’ como a que ‘o leitor assinalou’. Conclui propondo que o PÚBLICO ‘reponha a coerência’, ‘admitindo apenas (…) as grafias de príncipe Guilherme e Henrique (Reino Unido), princesa Letícia (Espanha) e princesa Catarina, quando esta se casar com o príncipe Guilherme, uma vez que o seu nome não é Kate Middleton, mas Catherine Elizabeth Middleton, sendo Kate um diminutivo de Catherine’.
Manuela Barreto, também com funções de copy desk, não vai tão longe (‘soa-me estranhíssimo traduzir Kate Middleton por Catarina’), mas aceita ‘que se escreva príncipe Guilherme em vez de William’ (o que é ‘coerente com Isabel e Carlos’). Se no caso em apreço aconselhou a segunda opção foi porque ‘há que ter em conta o uso’, ‘ evitando ir contra o que os falantes vêm interiorizando’. ‘A cultura anglo-saxónica’, refere, ‘vem exercendo um domínio e uma contaminação/evolução da língua (organismo vivo) que em alguns casos não me parece que valha a pena contrariar’.
Por mim, penso que o mais importante é que o jornal siga um critério bem definido neste domínio, quer prevaleça, como tem acontecido, a tendência mais pragmática que invoca o ‘uso corrente’, quer se revalorize a norma tradicional em nome da ‘coerência’. Mas faço notar que o argumento do ‘uso corrente’ é de tipo circular: quem produz hoje esse ‘uso’ no que toca a nomes próprios como os das famílias reais é, em primeiro lugar, a própria comunicação social.
O Livro de Estilo deste jornal prevê que ‘nos nomes estrangeiros, a regra é respeitar a grafia original do nome de personagens vivas ou de um passado recente (…), mas adoptar a forma aportuguesada para figuras históricas’. O que é sensato mas neste caso não ajuda muito, já que na primeira linha das excepções à regra se encontram precisamente a maioria das cabeças coroadas da Europa e os seus parentes próximos. Falo da Europa porque o que está aqui em causa é a tradição de adaptar a cada língua (em concreto, a idiomas com um sistema de escrita comum e fortes relações de familiaridade entre si, no mesmo espaço cultural e histórico de matriz cristã) os nomes próprios de reis e outras figuras de relevo. Como tantas outras, é uma tradição que poderá não resistir à pressão globalizadora, à sociedade da comunicação instantânea e à hegemonia da língua inglesa. Não é por acaso que a tradução de antropónimos nas línguas europeias quase só subsiste em relação às figuras que hoje encabeçam instituições de longa continuidade histórica, como as monarquias dinásticas ou o Papado.
É essa dimensão de continuidade que devemos ter em conta quando falamos de William Arthur Philip Louis of Wales, possível futuro monarca do Reino Unido da Grã-Bretanha e Irlanda do Norte. Sendo Gales um topónimo de tradução incontestada, não parece muito coerente chamar-lhe William de Gales. Nem mais tarde William, príncipe de Gales, se o noivo de Kate (ou Catarina) vier a sê-lo, como acontecerá se o pai for coroado. Nem, ainda mais tarde, William V, se e quando for ele o rei de Inglaterra, uns dois séculos depois de Guilherme IV.
Sei que a imprensa portuguesa é das mais vulneráveis à rápida adopção de expressões inglesas (veja-se como a sigla OTAN tem resistido melhor em outros países de língua latina) e não vejo aí motivo para desgosto melancólico. Mas inclino-me, como o leitor, a pensar que não faz sentido ‘desaportuguesar’ os nomes da realeza britânica a partir do sucessor de Isabel II (ou de Carlos III). E menos sentido ainda teria uma coerência retroactiva. Passaríamos a chamar William, o Conquistador, ao mais célebre dos homónimos antecessores do jovem príncipe? E Edward VII ao conhecido parque lisboeta?
Guilherme, pois. E Catarina, quando for princesa.
2. Aung San Suu Kyi foi descrita como ‘a mais famosa dissidente’ da Birmânia na titulagem da peça, assinada por Francisca Gorjão Henriques, com que o PÚBLICO noticiou no passado domingo a libertação da dirigente histórica da oposição ao regime birmanês.
Erro, considera o leitor J. Eduardo Brissos. Que explica: ‘Suu Kyi é a líder da oposição e resistência à ditadura militar da Birmânia. Dissidente é ‘o que sai de um determinado grupo ou organização (p.ex. política, religiosa), por divergir de seus princípios, ideias, doutrinas, métodos, etc.’ (Dicionário Houaiss). Ora Aung San Suu Kyi nunca pertenceu nem apoiou de qualquer forma a ditadura militar que (…) oprime e reprime o povo da Birmânia’.
Questão semelhante fora levantada em 21 de Julho passado pelo leitor Gabriel Silva, criticando a aplicação do termo ‘dissidentes’ aos presos políticos cubanos numa notícia assinada por Isabel Gorjão Santos. ‘O conceito de dissidência’, afirmava, ‘tem origem nos tempos soviéticos, onde não se imaginava possível (nem se permitia) a simples discordância. (…).O que qualquer cidadão é, quando se opõe, pela via pacífica, às políticas e práticas do seu governo, tenha este a forma que tiver, é ser opositor’.
Tendo consultado o Dicionário da Academia das Ciências, que define dissidente como alguém ‘que se afasta ou se separa’ de um grupo ou organização por discordar das suas ideias, a jornalista aceitou parcialmente a crítica. Reconheceu que ‘esta questão da separação não se aplicará aos opositores cubanos que nunca tiveram qualquer ligação ao regime’, mas entendeu poder aplicar-se a outros, como ‘Guillermo Fariñas, que chegou a receber formação militar na União Soviética e foi condecorado pelo seu desempenho na guerra em Angola até entrar em completa discordância com o regime de Fidel Castro’.
Miguel Gaspar, director adjunto, argumentou por seu lado: ‘O leitor parece sugerir que o conceito de dissidência política não é universal, quando ele se aplica aos opositores políticos de regimes que não admitem qualquer oposição. (…) Ao falarmos em dissidentes estamos a dizer que a divergência não é aceite em países onde existem presos políticos, como é o caso de Cuba’. Considera que o mesmo raciocínio se poderá aplicar ao caso de Suu Kyi.
Por mim, creio que o que importa salientar é que o termo está de facto fortemente associado, na memória colectiva recente, à ideia de desilusão, ruptura e confronto com um sistema político e ideológico, tendo-se popularizado na linguagem política e mediática sobretudo como referência aos adversários internos nas últimas décadas do poder soviético (embora nem todos os chamados ‘dissidentes’ fossem ex-comunistas). Utilizar a mesma palavra para caracterizar os que se opõem a um regime que nunca apoiaram ou integraram pode por isso confundir e ter até uma leitura pejorativa. Nessa acepção que creio ser a mais corrente (e a privilegiada pelos dicionários), podemos dizer que Humberto Delgado, reconhecido opositor de Salazar, foi um dissidente do Estado Novo. Mas não podemos dizer que Suu Kyi é uma dissidente do regime birmanês.
Uma peça do trabalho que este jornal lhe dedicou há uma semana tinha por título ‘Alguns chamam-lhe ‘Mandela da Birmânia’’. Penso que ninguém se lembraria de definir o ex-presidente sul-africano como um ‘dissidente’ do apartheid. A bem da clareza terminológica, o PÚBLICO deveria reflectir nas críticas destes leitores, que considero pertinentes.’