A narrativa, entendida como o ato de contar estórias, está ligada à própria origem da humanidade. Sem desmerecer as múltiplas dimensões desse ato, foca-se a forma escrita de narrar estórias.
Barthes (1976: 20) alega que os formalistas (Propp, Lévi-Strauss) propuseram o seguinte dilema: ou a narrativa é uma simples acumulação de acontecimentos ou então possui em comum com todas as narrativas uma estrutura acessível à análise. Na procura por tal estrutura da narrativa, os pesquisadores desenvolveram estudos tipológicos, categorizações e pressupostos gerais, dentre os quais destaca-se o de Todorov (1980: 64). Para o autor, há dois princípios fundamentais em toda e qualquer narrativa: o princípio de sucessão e o de transformação. As mudanças ou transformações, próprias da narrativa, recortam o tempo em unidades descontínuas. Pelo princípio da sucessão, entende-se o encadeamento de unidades descontínuas. Do princípio da transformação, depreende-se que a natureza das transformações é variada, sendo que seu paradigma é a negação ou oposição (passagem de A para não-A). Em síntese, a relação entre as unidades ou elementos da estória é a de sucessão e a de transformação. Todorov defende que a estrutura da narrativa aparece tanto nos textos literários, pesquisados por ele, quanto em outros sistemas simbólicos.
Sobre a temática, Barthes infere: ‘(…) por mais familiar que seja hoje o fato de abrir um romance, um jornal ou ligar um aparelho de televisão, nada pode impedir que este ato modesto instale em nós, de um só golpe e no seu todo, o código narrativo do qual teremos necessidade’ (1976: 53). Entre os operadores da narrativa, ou ‘signos de narratividade’, como define o autor, foca-se, neste estudo, a organização ou forma da narrativa.
Forças interdependentes
A importância do estudo da forma, na Teoria da Notícia, é expressa pela metáfora de Moillaud (1997:30): ‘O envelope não está indiferente à carta que contém, ele me prepara para esperar um correspondente, para mobilizar esse ou aquele interesse, (…) para acordar o ethos com o qual vou ler a carta. Em resumo, o dispositivo prepara o sentido’.
Segundo o autor, ao escrever, mobiliza-se não apenas o dispositivo alfabético, mas sua colocação no espaço (palavras, frases, segmentos de frases, parágrafos etc.) inerentes à língua: ‘O dispositivo tem uma forma que é sua especificidade, em particular, um modo de estruturação no espaço e no tempo’ (idem: 35). Ainda de acordo com o professor, o dispositivo não é um suporte, mas uma matriz que impõe suas formas aos textos. Contudo, essa relação não é de passividade, mas reside aí uma dinâmica, pois texto e dispositivo são o gerador um do outro.
Ao mencionar a ‘substancial autoridade da forma narrativa’, Shudson (in TRAQUINA, 1999:279) sugere que o poder dos media está não apenas no seu poder de declarar as coisas como sendo verdadeiras, mas no seu poder de fornecer as formas nas quais as declarações aparecem. Assim, as notícias têm uma relação com o mundo real não só no conteúdo, mas na forma; isto é, no modo como o mundo é incorporado em convenções narrativas, as quais são, muitas vezes, ‘inquestionáveis e despercebidas’.
Há seis níveis de influências, segundo Pedro Souza (2000), que interatuam sobre as notícias: ação pessoal, social, ideológica, cultural, do meio físico e tecnológico, e histórica. Dentre essas forças interdependentes, destaca-se, neste trabalho, a ação do meio tecnológico, a qual estabelece que ‘as notícias dependem dos dispositivos tecnológicos que são usados no seu processo de fabrico e do meio físico em que são produzidas’ (idem: 18). Parte-se, portanto, de dois pressupostos: a mútua interferência entre forma e conteúdo explanada por Mouillaud, como também a relação entre essa dinâmica e o meio onde ela ocorre, defendida por Pedro Souza. Para compreender a influência do meio tecnológico sobre a notícia, cumpre destacar a concepção adotada neste trabalho do meio ora em exame: a internet.
Informação peculiar
Primeiramente, cumpre mencionar que o entendimento de internet como mídia noticiosa vai ao encontro da concepção de internet dentro de um modelo sistêmico.
‘(…) a internet, no contexto do ciberespaço, é melhor caracterizada não como um novo medium, mas sim como um sistema que funciona como ambiente de informação, comunicação e ação múltiplo e heterogêneo para outros sistemas. Sua especificidade sistêmica seria a de constituir-se para além de sua existência enquanto artefato técnico ou suporte, pela junção e/ou justaposição de diversos (sub)sistemas, no conjunto do ciberespaço, enquanto rede híbrida’ (PALÁCIOS, 2002).
Essa noção de internet enquanto sistema permite sua utilização simultânea por diferentes subsistemas sociais. Dentro desse raciocínio, entende-se a mídia internet como um desses espaços, ou seja, um subsistema midiático, que co-existe ao lado de outros subsistemas sociais (comercial, lazer, serviço, trabalho e outros). Segundo Palácios, essa idéia permite compreender a internet com uma dinâmica própria de funcionamento e evolução e não apenas como suporte tecnológico.
Contudo, infere-se que tal subsistema midiático por si só qualifica a internet como mídia. Não cabe explorar aqui se essa é sua função primeira, ou se o subsistema midiático é o primordial dentre todos os subsistemas que a internet comporta. Mas defende-se que a internet é também, e não apenas, um meio de comunicação. Tal entendimento permite uma nova compreensão sobre as práticas jornalísticas na rede.
Dentro dessa perspectiva, observa-se que a internet busca elementos das mídias que a precederam, ora potencializando, ora transmutando as características das mídias tradicionais, em busca de sua própria identidade midiática. Nessa perspectiva, a rede influencia e impõe aos demais meios um novo ordenamento dentro da comunicação global.. É mais um veículo que vem se somar aos já existentes. Jornalismo impresso, na TV, no rádio, na internet, ‘(…) em distintos formatos para distintos momentos de utilização e distintos contextos de uso’ (Castells, 2003: 286).
Dessa concepção decorre também a importância de estudar a mídia internet como contexto específico da produção de notícias. Ora, se a internet possui uma dinâmica própria de funcionamento e evolução, o material jornalístico aí desenvolvido também possui especificidades próprias. Isso significa que a notícia digital informa de uma maneira que lhe é peculiar. Ou, como percebe Patino (2001), um know-how jornalístico emerge. ‘A mídia criou seu jornalismo. E, de maneira circular, o jornalismo criou sua mídia’.
Acontecimento único
Antes de adentrar nas especificidades da narrativa na mídia internet, é importante trazer a esse debate um questionamento mais amplo sobre o paradigma da forma narrativa noticiosa, pois se entende que a organização lógica e lingüística da narrativa jornalística envolve posicionamentos ideológicos, os quais, inclusive, estão presentes e permeiam, às vezes sem tanta visibilidade, todo o processo de produção da notícia.
A estrutura da notícia se define, no jornalismo moderno, como ‘o relato de uma série de fatos a partir do fato mais importante ou interessante; e de cada fato, a partir do aspecto mais importante ou interessante’ (LAGE, 2000: 16).
De igual importância paradigmática, o lead é ‘o relato do fato principal de uma notícia’ (idem: 59). Na síntese de Laswell, o lead informa quem fez o que, quando, onde, como e por que, popularizado nas redações jornalísticas como o primeiro parágrafo da notícia.
Essas convenções do relato das notícias são os parâmetros que gerenciam a forma narrativa noticiosa, como consideram inúmeros autores, entre eles Paul Weaver (in Traquina, 1999: 298), que sintetiza: ‘a ‘estória’ do jornal padrão é organizada de acordo com o princípio da ‘pirâmide invertida’. O seu assunto e foco é um acontecimento único, unitário, definido numa ou duas frases (o headline e o parágrafo de lead)’. Ambos indicam o esqueleto do acontecimento.
Leque de relações
Assim, teoricamente, os elementos da narrativa jornalística, ou unidades de informação, são apresentados por ordem decrescente de importância. Adelmo Genro Filho, em ‘O segredo da pirâmide’, questiona o modelo, que, segundo ele, teria aparecido pela primeira vez no The New York Times em 1861 e no Brasil em 1950, substituindo a narração cronológica feita até então no relato jornalístico. Em suas ponderações sobre o tema, ele considera:
‘A tese da ‘pirâmide invertida’ quer ilustrar que a notícia caminha do ‘mais importante’ para o ‘menos importante’. Há algo de verdadeiro nisso. Do ponto de vista meramente descritivo, o lead enquanto apreensão sintética da singularidade ou núcleo singular da informação encara realmente o momento jornalístico mais importante. Não obstante, sob o ângulo epistemológico – que é fundamental – a pirâmide invertida deve ser revertida, quer dizer, recolocada com os pés na terra. Nesse sentido, a notícia caminha não do mais importante para o menos importante (ou vice-versa), mas do singular para o particular, do cume para a base’.
Em sua crítica ao paradigma da pirâmide invertida, o autor defende uma estrutura epistemológica, representada pelo triângulo eqüilátero, que busca ‘um equilíbrio entre a singularidade do fato, a particularidade que o contextualiza e uma certa racionalidade intrínseca que estabelece seu significado universal’.
Adelmo argumenta que sempre que um fato se torna notícia jornalística ele é apreendido pelo ângulo da sua singularidade, mas abre um leque de relações que formam seu contexto particular, sendo que é na totalidade dessas relações que se reproduzem os pressupostos ontológicos e ideológicos que direcionam sua apreensão. O autor sugere ainda variações ao triângulo eqüilátero como padrão estrutural da notícia, conforme a periodicidade do veículo, e pondera que o lead deve funcionar como princípio organizador da singularidade.
Caleidoscópio de formas
Para Bárbara Phillips (in TRAQUINA: 327), a pirâmide invertida é ‘um dispositivo desequilibrado que faz a listagem de unidades de informação na ordem decrescente de sua presumível (grifo nosso) importância’. Sem entrar no mérito do paradigma da pirâmide invertida, mas também sob o ângulo ideológico da temática da narrativa, Ciro Marcondes Filho (2000) afirma que existem duas escolhas técnicas relacionadas ao ato narrativo:
‘Posso construir uma história acoplando segmento a segmento, cada um dotado de uma certa informação, numa seqüência regular. Cada segmento é independente, possui sua própria informação e se alinha junto aos demais num mosaico (grifo nosso) de múltiplas peças. Todos valem praticamente o mesmo. O sentido está na peça isolada e o conhecimento se dá de forma difusa, livre. Mas eu posso proceder de outra forma, associando segmento a segmento através de um fio lógico. Ou seja, a informação de B amplia ou continua a informação de A e será retomada pela informação de C. Neste segundo caso, eu tenho um desenvolvimento. Cada segmento está atrelado logicamente a seus partes (anterior e posterior), constitui uma ordem lógica, o sentido depende do fio condutor. O conhecimento aqui não é difuso, mas linear’ (MARCONDES FILHO, 2000: 45).
Segundo o autor, a maneira de tratar jornalisticamente os fatos de sociedade opera, na maioria dos casos, na primeira forma, porque ‘a imprensa opta pela parcelização em detrimento da estrutura contínua’. Para Marcondes, nega-se ao leitor o fio condutor, porque essa escolha segue a lógica própria da digitalização do conhecimento, ‘assiste-se à imposição da ideologia do flash’.
A forma narrativa em mosaico, mencionada também por outros autores, inibe uma visão mais ampla da realidade, ‘estabelecer relações entre os acontecimentos não é permitido pelo formato jornalístico (…) o resultado, tanto nos media noticiosos escritos como nos eletrônicos é um efeito de mosaico, um caleidoscópio de formas da realidade superficial em contínua mudança’ (PHILLIPS in TRAQUINA, 1999: 328).
Fenômeno em processo
Sobre essa discussão, minha compreensão vai ao encontro do pensamento de Adelmo Genro Filho, quanto este considera que:
A crítica de que o jornalismo, ao separar as notícias e tratá-las de forma descontínua, desintegra e atomiza o real favorecendo a superficialidade da reflexão e a alienação, tornou-se lugar comum que recebe, em cada autor, um verniz teórico diferente (…) a integridade do real não é um dado a priori na percepção, mas se revela através da abstração e do conhecimento. O jornalismo não desintegra e atomiza a realidade, pelo simples motivo que essa realidade não se oferece imediatamente à percepção como algo íntegro e totalizado’ (GENRO FILHO, op cit).
Todas essas considerações aqui expostas devem ser levadas em conta na apreensão do material noticioso na internet, uma vez que o aspecto fragmentário da notícia na rede é sempre enfatizado por todos aqueles que estudam o fenômeno.
O modo que a mídia internet executa sua função narrativa é, assim como a própria rede, um fenômeno em processo. A narrativa na rede está centrada na singularidade da própria dinâmica desse meio, caracterizada pela multilinearidade, volatilidade, multisemiose, interatividade e hipertextualidade.
Notícia matricial
A mídia internet jorra informação em fluxo contínuo e é estruturada pelo link e pelo hipertexto. Em termos técnicos, o hipertexto é um conjunto de nós ligados por conexão a outros nós. Na rede, isso representa um tipo de texto (ou imagem, ou gráfico) que engloba links para outras páginas. O link, de acordo com Palácios (2001), não é apenas um elemento constitutivo do hipertexto digital, mas ‘o elemento chave da narrativa jornalística hipertextual’.
Esse processo de escritura e leitura multilinear, baseado nos hipertextos e nos links, leva-nos a questionar a forma narrativa convencional da notícia. Jakob Nielsen (1996) aborda o tema no artigo Inverted Pyramids in Cyberspace. Ele enfatiza que na web o modelo da pirâmide invertida se torna fundamental. Estudos sobre usuários demonstram que eles não ‘rolam’ o texto e lêem apenas a parte superior ou inicial. Segundo ele, cada página deve estar estruturada como a pirâmide invertida, mas o trabalho como um todo parecerá um conjunto de pirâmides invertidas pairando no ciberespaço, uma vez que os textos devem ser divididos em peças menores e coerentes.
A tela do computador transforma-se, assim, num universo de fragmentações. As notícias-flash, com cortes rápidos e atualização constante, seriam fruto desse fracionamento. Por outro lado, Patino (2001) percebe que, como os sistemas de armazenamento digital da informação permitem a indexação, a internet torna-se ‘não apenas a mídia da instantaneidade, mas também a mídia da memória’. Segundo ele, há dupla temporalidade, a instantânea e a recapitulativa. Essa lógica gera a narrativa do fluxo e a narrativa da indexação, respectivamente.
Em estudo empírico realizado sobre o tema, constatei que a narrativa do fluxo – presente na mídia da instantaneidade – adota o formato clássico da pirâmide invertida. As notícias atualizadas em tempo real não ultrapassam o primeiro nível informativo, composto pela linha de assunto e notícia matricial.
Seqüência de inserções
A mídia da memória, por sua vez, apresenta a macroestrutura narrativa em n camadas ou níveis informativos. Da análise dessa macroestrutura, percebemos que os links trazem porções de hipertextos que aprofundam a notícia matricial, enriquecendo-a em matizes e pormenores. Cada tópico informativo cerca o assunto por possíveis ângulos, complementando-o diversos níveis informativos. A narrativa percorre um caminho multilinear.
Os princípios da transformação e da sucessão do ato narrativo – que estabelecem as relações entre as unidades ou elementos da narrativa, conforme Todorov – são observados na macroestrutura, com a ressalva de que o nível da transformação e sucessão passa de unitário a múltiplo, uma vez que as unidades são apresentadas de forma descontínua.
As unidades podem ser separadas por uma longa seqüência de inserções pertencentes a esferas completamente diferentes umas das outras. A pulverização das unidades rompe a lógica que une os núcleos de uma seqüência linear. Distendidos, os núcleos apresentam espaços intercalares que podem ser acumulados ou preenchidos quase infinitamente. Assim, a complexidade da narrativa na rede integra projeções reticulares, ramifica-se e prolifera-se.
Interatividade e multimodalidade
Com certeza não estamos presenciando o renascimento da escrita, como defendem os entusiastas da internet, mas, por outro lado, não podemos negar as implicações das novas tecnologias sobre os paradigmas do texto noticioso convencional.
A escrita mantém sua gênese. No entanto, as formas de escrever e, por extensão, de contar estórias e narrar acontecimentos na rede, transformam-se devido às potencialmente do meio, que gradualmente vão sendo descobertas. Assim, a narrativa jornalística na rede vem se transmutando e se renovando. Foram aqui descritas a narrativa do fluxo e a narrativa da indexação pertencentes à mídia da instantaneidade e à mídia da memória (2.3).
A internet conduz o trajeto do texto noticioso por novos territórios, onde os conceitos, técnicas e ideologias que envolvem esse processo precisam ser revistos sob o ângulo do uso social e não na tecnologia per si.
A pesquisa ora em andamento no âmbito dos estudos de Pós-Graduação da Faculdade de Comunicação da Universidade de Brasília, sob a orientação da professora doutora Zélia Leal Adghirni, estuda o processo de integração narrativa na rede, ou seja, o mecanismo que mantém os hipertextos correlacionados no processo de produção da notícia e como as informações são amarradas na narrativa a fim de permitir que os a fim de permitir que os leitores extraiam um conhecimento real, isto é, um todo de sentido em sua relação com a realidade.
Sugerem-se futuras investigações que analisem outras características da internet, como a interatividade e a multimodalidade, bem como suas implicações no modo de produção de notícia.
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Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Comunicação/Jornalismo e Sociedade da UnB