Wednesday, 13 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1313

Ela conseguiu ser capa
de revista: quando morreu

Toda a mídia tem falado da morte da modelo por anorexia. Tirando a lamentável perda de alguém tão jovem, vejo muita hipocrisia na cobertura. Até que ponto a imprensa não ajuda na produção dessas pessoas? Vou explicar: às vezes recebo junto com o meu jornal, um encarte de moda. No último, alguns meses atrás, as modelos eram tão magras que mais pareciam estar na sala de espera de uma clínica para atendimento de anorexia. Vocês valorizam esses “modelos de beleza”, “vendem” estes produtos e depois se dizem chocados !Por que não boicotar este tipo de exploração da magreza humana? Amélia Artes, leitora, para o Ombusdman Marcelo Beraba, Folha de S.Paulo, 19/11, pág. A-6


A linda modelo Ana Carolina Reston está nas capas das revistas Veja, IstoÉ e Época. Antes, durante três dias, freqüentou as primeiras páginas dos jornais e as escaladas dos telejornais.


Estilistas e agências de modelos foram escolhidos pela mídia como culpados pela tragédia. E são mesmo culpados: impuseram um padrão de beleza perverso, antinatural e macabro, apenas para atender ao espírito novidadeiro e fútil da indústria da moda. Mas quem multiplicou este estúpido paradigma em sonho coletivo? Quem transforma essas adolescentes em zumbis fixadas apenas em alcançar os 15 minutos de fama, cachês fabulosos e filas de namorados?


Amélia Artes, a leitora da Folha, mora em São Paulo, não é militante política, não está a serviço de facções, não recebeu a tarefa de linchar um jornalista. Estava exercendo o seu dever de sofrer. Tocada pela tragédia, percebeu que estava faltando aquele elo do círculo vicioso que converte a obsessão pela fama num ideal de vida – a mídia.


A anorexia de Ana Carolina mostrou a amnésia da nossa mídia. Não foram os jornais e revistas que inventaram a balela do glamour do mundo fashion. Mas quem martela continuamente esta balela nas capas, reportagens, colunas sociais, empresariais, telejornais e telenovelas é a mídia. Na ânsia de faturar anúncios das coleções da próxima estação e abiscoitar algumas assinaturas no segmento feminino, jornais responsáveis ultimamente aderiram de forma pouco crítica e leviana à febre das fashion weeks, eventos puramente comerciais disfarçados em fatos jornalísticos.


Pagam-se altos cachês às celebridades para se deixarem fotografar nestes eventos, mas o que se oferece àquelas raparigas tontas e magricelas é a promessa de sucesso. Desde que não comam, não tenham prazeres e vivam como robôs fingindo uma felicidade que jamais experimentaram  e dificilmente experimentarão.


Estilistas em geral estão se lixando pelas preocupações morais, também as agências de manequins, mas a imprensa noticiosa não tem o direito de esquecer o “contrato social” com seus leitores. Revistas especializadas em Moda & Beleza têm compromissos diferenciados, operam em faixa própria, meio caminho entre o jornalismo e a promoção comercial. Mas instituições jornalísticas comprometidas com a missão de proteger a sociedade por meio da informação correta não podem adotar ares de doidivanas.


O sonho de Ana Carolina Reston era ser cover-girl, garota da capa. Conseguiu: três na mesma semana! A mídia, desta vez, até que foi generosa. Mas esqueceu sua parte nesta forma charmosa de suicídio.

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