É freqüente que na mídia a palavra criadora, semelhando o que acontece com as crianças pobres, morra de mortalidade infantil antes de ganhar as ruas, o debate, sepultada num canto de página, num suplemento, num desvão editorial qualquer, quem sabe num arquivo de rádio ou de televisão para ser mais tarde recuperada e servir de base a uma tese.
É o que está acontecendo com as controversas quotas dos projetos de lei relativos ao Estatuto da Igualdade Racial e da Lei das Quotas, que o Congresso Nacional vai discutir. Para perplexidade geral, não se pode sequer exigir um requisito elementar: que não sejam os habituais vendilhões, já flagrados no comércio de votos, que venham a discutir problemas de tamanha complexidade.
Na semana passada, Alberto Dines alertava no programa radiofônico do Observatório da Imprensa: ‘É preciso que a mídia não caia na armadilha de converter uma divergência metodológica num confronto extremado que venha a prejudicar os objetivos finais da nova legislação’.
De acordo com Dines, ‘enquanto um grupo defende como primeiro passo a criação das quotas nas universidades para estudantes negros e indígenas, os antagonistas alegam que as quotas poderão tornar definitiva a separação racial’. Assim, ganham espaço aqueles que ‘preferem o sistema de percentuais para estudantes oriundos da escola pública’.
Em tais casos, invocar o óbvio é de uma utilidade extraordinária para fixar claramente o que se pretende com o debate: ‘Um debate não pode ser convertido num confronto entre duas facções’, disse Dines, pois ‘debate é para debater, mostrar argumentos, pró e contra, e a mídia existe exatamente para isso, para iluminar, mostrar os dois lados e, não, para radicalizar os conflitos’.
Ideologia estranha
Homem de letras, interessou-me a pergunta que ele fez ao final de seu comentário:
‘Para começar, sugere-se uma questão mais simples e menos explosiva: afinal quota escreve-se com ‘q’-‘u’ ou com ‘c’-‘o’ como a mídia por preguiça está preferindo?’.
Tento minha contribuição. Entre as reformas que o Brasil precisa, está esta, urgente: uma Constituinte da Língua Portuguesa. Faz tempo que a mídia está grafando tudo como quer, como se a língua portuguesa vivesse estado de anomia.
Ora, a língua portuguesa tem normas! Tendo-as, juristas já absolvem legalmente confessos bandidos, imaginemos que não as tivesse? Talvez seja no Direito que mais se manifeste a necessidade da precisão da língua.
Mas também em outros domínios podemos perceber o quanto as normas são indispensáveis. Na medicina, uma mudança de letra transforma o remédio em veneno. Na culinária, um acento pode transformar um prato saboroso em repulsiva comida.
Que escrevamos ‘cota’ ou ‘quota’, ou que aceitemos ser ‘cota’ variação de ‘quota’, esperançosos de que o contexto esclareça que quem escreveu ‘cota’ quis dizer ‘quota’. Pois ‘cota’ pode ser o lado oposto ao do fio numa arma; pessoa idosa; sobrepeliz; armadura de couro; gibão; fortaleza. E quem escreveu ‘quota’, referiu-se a quota, parcela, parte, porção.
Aqueles que preferem ‘cota’ em vez de ‘quota’ por que não escrevem ‘corum’ em vez de ‘quórum’? Afinal, nos dois casos a questão é de número.
Mas que decisões como esta não sejam frutos de imposições de força de uma minoria interessada no comércio da palavra escrita.
Em geral insubmissos à lógica da grafia – sim, ela tem uma lógica e deve ser arbitrada por quem de direito – grupos que vivem da esperteza também no português têm, entretanto, outras notórias submissões. A maior de todas é ao deus contemporâneo, onisciente e onipotente, o Senhor Mercado, que está em toda a parte.
Em muitas escolas e universidades, inclusive em cursos de Letras de pós-graduação, já vigora uma estranha ideologia, segundo a qual, se o professor reconhece não dominar a norma culta da língua portuguesa, seus alunos estão dispensados de estudá-la.
Norma culta
Faz tempo que o Estado abandonou a escola. As elites refugiaram seus filhos no ensino privado. A decadência do ensino médio não precisa de estatística. Era ali que antigamente era ensinada a língua portuguesa. Foi ali que deram os primeiros passos na palavra escrita os brasileiros que, cultivando a norma culta, brilharam na literatura, na diplomacia, no serviço público, na ciência, na tecnologia etc.
Ou será que alguém acredita que a modalidade da língua portuguesa utilizada em torpedos nos celulares e nas conversas virtuais da internet é recurso suficiente para elaborar um parágrafo semelhante àqueles que admiramos na obra de escritores de nossa preferência, que levaram os recursos de expressão escrita às fronteiras das possibilidades da língua portuguesa? Que deveria ser esta a modalidade em provas discursivas? Que deveria ser esta a modalidade de argumentação em peças judiciais? Que deveria ser esta a modalidade nas sentenças, decretos e leis que alteram concretamente nossos modos de viver e até de morrer?
Nem todos podem escrever como os melhores, assim como não se pode rebaixar o padrão musical para que todos possam ser Beethoven, nem rebaixar o futebol porque nem todos podem ser Pelé.
É preciso garantir que todos possam desenvolver seus dons de expressão num nível mínimo indispensável. O nível máximo não tem fronteiras e na maioria das vezes depende da vontade de quem o quer alcançar.
No caso da norma culta da língua portuguesa, o caminho é a escola! É a relação bunda-cadeira-hora, que valoriza a inteligência, não a esperteza, a burla, o atalho, enfim um conjunto de trapaças que põe em vantagem o esperto e trata o estudioso como bobo.
Palavra escrita
Discorrendo sobre a fama de inteligente que tinha Rui Barbosa, diz San Tiago Dantas:
‘O apreço exagerado pela inteligência, elevada ao primeiro grau na hierarquia dos valores, é característico dos povos ou das classes em luta contra as resistências de um meio social já consolidado. Não ocorre no seio das aristocracias; não ocorre na grande burguesia, nas gerações posteriores à sua estabilização; e é curioso observar que não ocorre no proletariado, cuja ascensão depende de outros recursos de luta. Ocorre, porém, nas burguesias nascentes, onde a inteligência é o meio por excelência de vencer, o valor a que se rendem eventualmente todos os outros e que não consolida privilégios’.
Do jeito que a formulação de alguns problemas vem sendo feita, falta pouco para que a ignorância substitua a inteligência e que seja proclamada a falta de estudos como alternativa mais à mão para a ascensão social, um atalho para o progresso que evite o saber.
O brasileiro precisa aproximar-se dos livros. Os lares não têm livros, as escolas também não. Mas ele precisa muito de livros. Autores essenciais estão lhe fazendo muita falta para a tomada de decisões, a começar pelo voto. E de jornais, revistas, enfim, da palavra escrita.
Por mais que respeitemos todas as diversidades, o acesso à civilização brasileira dá-se pela norma culta da língua portuguesa. Dispensar os falantes do domínio da língua portuguesa nessa fase do desenvolvimento é uma crueldade.
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Escritor, doutor em Letras pela USP, diretor do Curso de Comunicação Social da Universidade Estácio de Sá, Rio de Janeiro