Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Mudar a lei muda a cabeça?

A imprensa registrou, discretamente, o novo projeto da deputada Iara Bernardi (PT-SP) que exclui, dos documentos oficiais, os termos homem e mulher, determinando o uso da linguagem inclusiva. Segundo o noticiário, o objetivo da lei é contribuir para a igualdade ‘real’ entre homens e mulheres.

A pergunta que a imprensa não fez – e poderia ter feito – é que diferença vai fazer, para as mulheres, a nova lei. Além disso, perdeu a oportunidade de questionar o uso político que a deputada petista e o presidente da República (que terá de sancionar a lei) vão fazer desse novo preciosismo.

A imprensa deu à nova lei o mesmo tratamento reservado a projetos anteriores da deputada petista: a lei 10.886, de 2004 (que baniu do Código Penal termos como ‘mulher honesta’ e ‘mulher virgem’) e a lei 10.224, de 2001, que criminalizou o assédio sexual. Leis importantes porque mexem diretamente com a Justiça em eventuais processos envolvendo mulheres.

Desta vez, porém, a deputada parece ter entrado num terreno perigoso, o do folclore do politicamente correto. Mas hoje talvez nem sirva de motivação para piadas: elas já foram usadas e gastas quando a lei foi aprovada pelo Senado – o que, aliás, a imprensa esqueceu de registrar. O projeto é antigo, de 2004, mas só agora veio para a ratificação na Câmara dos Deputados.

Registro ligeiro

Tratando a nova lei como mais um ‘tema feminino’, a imprensa falhou em mostrar a verdadeira motivação da deputada. A que desigualdade ela se refere? Seria hora de a imprensa fazer uma boa matéria mostrando a verdadeira situação das mulheres no mercado de trabalho, nas relações domésticas e até perante a lei. E, se descobrisse que a deputada exagera, mostrar isso. Mas como a imprensa sistematicamente ignora assuntos referentes à real situação das mulheres, fica tudo por isso mesmo.

Se não quisesse discutir o assunto sobre o ponto de vista econômico ou sociológico, a mídia poderia, ao menos, convocar estudiosos de linguagem para mostrar se tem razão a deputada ao dizer que ‘a reconstrução da linguagem é inevitável para gerar uma nova consciência na população’.

Será que o fato de nos Estados Unidos os negros serem chamados de afro-americanos acabou com o preconceito? Será que os jogadores de futebol, na Copa deste ano, ao mostrarem uma faixa apelando para o fim do preconceito racial vão mudar a forma como imigrantes são tratados na Europa? Será que o fato de o presidente Lula assinar uma lei determinando que não haja discriminação contra mulheres vai apagar a famosa frase por ele proferida, segundo a qual ‘as mulheres estão muito ousadas’?

Não há dúvida de que é preciso alertar constantemente sobre os preconceitos de que as mulheres ainda são vítimas, e fazer o impossível para mudar a mentalidade da população. Mas seria preciso, em primeiro lugar, engajar a imprensa nessa luta. Enquanto a imprensa continuar achando que mulher só entende de moda, beleza e decoração, as leis, mesmo que bem-intencionadas – como a da deputada petista –, continuarão a ser tratadas como um simples registro. Isso quando não se transformam em motivo de piadas.

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Jornalista