O acalorado debate em torno da obrigatoriedade do diploma de jornalismo no Brasil ganha novo fôlego com o recurso do Ministério Público Federal. Mais uma vez, os ânimos se exaltam. Agora a questão entra na reta final com o encaminhamento ao Supremo Tribunal Federal, que dará o julgamento decisivo para saber se é constitucional ou não.
Desde a liminar da juíza federal Carla Abrantkoski Rister, em 2001, as argumentações observadas sobre o assunto até o momento demonstraram pouca análise sobre a realidade histórica e social brasileira, e, em muitos caos, houve uma espécie de bravata emocional – corporativista ou liberalista – simplória e frágil.
Como o presente artigo pretende oferecer uma visão mais fundamentada em favor do diploma de jornalismo no Brasil, destacamos as argumentações do jornalista Marício Tuffani, apresentadas no texto ‘Regulamentação deve atender ao desenvolvimento humano’ , que, certamente, foi um dos mais bem elaborados contra a obrigatoriedade do diploma.
Ao mesmo tempo, nos propomos a analisar as colocações do Procurador Regional dos Direitos do Cidadão em São Paulo, André de Carvalho Ramos, o último recurso do MPF e a decisão unânime da 4ª Turma do Tribunal Regional Federal da 3ª Região.
Um pouco de História
A consciência histórica sobre a origem do objeto e um olhar mais apurado sobre o seu desenvolvimento e realidade social que o cerca é um passo fundamental para elaborarmos uma análise crítica contundente dentro das ciências humanas e sociais. Dessa forma, achamos necessário lançarmos um breve olhar sobre a realidade da imprensa brasileira ainda no início da nação. Não se trata, portanto, de um aprofundamento demorado e detalhista. Apenas objetiva um entendimento mais acurado sobre o desenvolvimento do objeto.
Desde a conturbada independência, o Brasil é marcado pela existência da disputa de várias facções políticas em torno do poder. Não havia uma preocupação patriótica, mas apenas uma luta por interesses particulares. De acordo com Marcello Otávio Neri de Campos Basile, doutor em História Social, durante o Período Regencial, por exemplo, o confronto se dava entre três grupos: os Liberais Exaltados, os Liberais Moderados e os Restauradores. Todos usavam a Imprensa como principal meio para desmoralizar os adversário e esconder interesses escusos.
‘ Todas as três facções valeram-se de associações políticas e da Imprensa como instâncias de ação no espaço público (…) Neste contexto de disputas políticas tão acirradas, cada facção procurava, por intermédio de seus periódicos, atacar e desmoralizar seus adversários e, ao mesmo tempo, formar também uma opinião pública afinada com seus ideais, a qual lhes desse apoio e legitimasse suas idéias, práticas e aspirações políticas’ (1).
Tudo valia nesses jornais. Eles não tinham nenhum compromisso em buscar a verdade e não se preocupavam em atender à opinião pública. O interesse público, portanto, não existia. O que interessava mesmo era montar calúnias bem elaboradas, apelar ao denuncismo barato, fazer valer apenas os interesses próprios e esconder tudo o que poderia denegri-los na sociedade. Enfim, no final das contas, os jornais eram veículos de acusações tolas, medíocres e infundadas. Verdadeiros informativos oficiais de relações públicas criminosos.
A atualidade
Este sistema vicioso não é inerente apenas ao Período Regencial. Continuou após a proclamação da República, entrou na Era Vargas e os seus resquícios podem ser sentidos até os dias atuais, principalmente no interior do Brasil. Recentemente, por exemplo, o jornal Folha de S.Paulo denunciou na reportagem ‘ Governo Lula distribui TVs e rádios educativas a políticos’ , a prática desonesta de distribuição de concessões de rádio e TV para políticos.
Será que nesses veículos de concessões duvidosas não acontece o que foi evidenciado no Período Regencial, onde denuncismos e interesses particulares eram postos sem o direito de resposta do acusado ou caluniado? Será que tal prática não é uma herança histórica social e cultural brasileira? Como evitar esse ciclo vicioso na Imprensa nacional e garantir um equilíbrio virtuoso de forças para acusador e acusado, e ao mesmo tempo defender a democracia?
Vejamos, como exemplo, o próprio modelo de justiça comum que adotamos. Por que somos obrigados a ter um advogado para nos defendermos? Não seria essa prática ilegal? De maneira nenhuma. A figura do advogado é obrigatória justamente para manter o equilíbrio de forças entre o acusador e o acusado. Não importa se ele seja rico ou pobre. O que importa é que, perante o juiz, ambos estejam providos do mesmo direito e espaço sem nenhum prejuízo. É justamente por isso que se diz ‘ a justiça é cega’ . Ou seja, todos são iguais perante a lei. Assim, negar o valor dos advogados seria um verdadeiro retrocesso.
Da mesma forma deve ser a atuação do jornalista profissional nos veículos de comunicação. É seu dever defender a própria democracia e a liberdade de expressão. Dar equilíbrio às diversas vozes da sociedade de maneira equilibrada; evitar denuncismos e respeitar as diversas opiniões, sem esquecer de vigiar constantemente o poder. Para que isso aconteça, é importante que este profissional se dedique apenas a este ofício e esteja desligado de qualquer outra organização profissional ou grupo político particular, e tenha como maior preocupação o interesse público.
Ao mesmo tempo, é igualmente importante que o jornalista profissional adquira uma capacidade crítica sobre seu próprio ofício; desenvolva pesquisas científicas específicas que o auxiliem em sua atuação diária; e analise os efeitos de seu trabalho sobre o público no médio e longo prazo. O que por si só já demonstra uma clara necessidade de formação específica, onde o foco principal do curso será a sua atuação dentro da sociedade.
Contudo, esse modelo não será alcançado de forma satisfatória sem uma regulamentação séria. E isso diz respeito tanto a uma formação profissional específica e independente, quanto à propriedade dos veículos de comunicação. O que inclui regras claras e rígidas sobre a distribuição de concessões de Rádio e TV. Isto porque a formação profissional e independente dos jornalistas vai contra os interesses dos políticos que são presenteados por essas concessões.
É no mínimo interessante a argumentação do Jornalista Wilson Araújo, mestre em Educação da Universidade Federal do Maranhão, sobre o que pode realmente estar por trás da luta em acabar com a obrigatoriedade do diploma no Brasil, que é tão defendida pela Associação Nacional dos Jornais (ANJ).
‘ Sem diploma, fica mais fácil às empresas de comunicação recrutar qualquer profissional acrítico e afinado ideologicamente aos donos da mídia. Numa estratégia elaborada, a aniquilação do diploma deixa sem justificativa a existência dos cursos universitários (…) é imprescindível implodir quaisquer núcleos de pensamento que venham questioná-lo’ . (2)
Já sabemos, pela histórica distribuição vergonhosa das concessões de Rádio e TV, quem são os donos da mídia no Brasil. A pequena análise de nossa realidade social histórica demonstra a necessidade de uma regulamentação rígida e eficaz sobre a propriedade dos meios de comunicação e da necessidade de cursos que desenvolvam pesquisas específicas sobre o fazer jornalístico. Diante deste cenário, vejamos dois trechos do artigo ‘ Para que serve diploma’ , de autoria do jornalista Muniz Sodré, professor titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro:
‘ O diploma universitário acaba impondo-se como um patamar necessário para o equilíbrio ético e cognitivo da atuação profissional. Assim é que, uma vez socialmente validada a profissão, o grupo técnico cria bases de pesquisa científica, ao mesmo tempo em que procura elaborar uma moralidade profissional –– um código deontológico (deontos significa dever, em grego) –, para ajustá-la à ética social imediata’ (…) ‘ Jornalismo não é uma técnica e um saber estáticos, dados para sempre. É fundamental reelaborá-lo, estudando e pesquisando, com espírito público e sabedoria’ . (3)
Ainda sobre a realidade brasileira, não podemos menosprezar a experiência de vida do jornalista Nilson Lage, professor titular da Universidade Federal de Santa Catarina, sobre a época em que não existia a obrigatoriedade do diploma em jornalismo.
‘ Do ponto de vista formal, havia uma multidão de jornalistas, com carteiras funcionais de sindicatos (o verdadeiro e os fantasmas), de associações existentes e inexistentes, de veículos reais ou fictícios, do ‘cursos de jornalismo’ que se limitavam a breves ciclos de palestras de políticos e figurões. Ser ou ter sido jornalista significava, para empresários, acadêmicos e profissionais liberais, um título acrescentado a seus currículos; para estelionatários, bicheiros, proxenetas e marginais de todo tipo, o direito, principalmente, à prisão especial (quem já viu um xadrez de delegacia brasileira sabe o quanto isso é importante); para pequenos vigaristas e espertalhões, o poder de dar carteiradas em boates, bares, nos casos de intervenção eventual do policiamento ostensivo etc’ . (4)
Questão chave
Chegamos a um ponto-chave neste artigo. Pois acabamos de entrar em divergência com as argumentações de Maurício Tuffani, que chega afirmar ser ‘ impossível’ alegar a necessidade de uma formação específica em jornalismo. Vejamos uma de suas afirmações:
‘ Nossa conclusão é a de que não há razoabilidade nessa exigência para o exercício da profissão. Em outras palavras, cursar uma escola de jornalismo não é apenas desnecessário para que uma pessoa esteja qualificada para exercer plenamente essa profissão, mas também não assegura essa qualificação. Dizendo de acordo com os termos da lógica, nosso argumento central é que esse requisito não é condição necessária nem condição suficiente para qualificar alguém para o exercício do jornalismo’ .(5)
Após estas afirmações, Tuffani diz ainda que em hipótese nenhuma pretende desmerecer os cursos específicos em jornalismo, o que consideramos uma contradição do articulista, já que antes ele afirmou que ‘ não é apenas desnecessário para que uma pessoa esteja qualificada para exercer plenamente essa profissão, mas também não assegura essa qualificação’ . Entendemos que tal entendimento desmerece sim os cursos de jornalismo.
Contudo, apesar dele ser contrário à obrigatoriedade do diploma, ressalta que é favorável a regulamentação da profissão, assim como acontece em países europeus. No entanto, basta fazermos um breve levantamento histórico para descobrirmos que o Brasil já esteve nesta situação, antes da obrigatoriedade. O que pouco se discute é que a regulamentação profissional do jornalismo brasileiro é de 1938, situação que continuava a prejudicar a qualidade da Imprensa nacional. Vejamos, mais uma vez, o testemunho de vida jornalista Nilson Lage:
‘ Outros estímulos à proliferação desses ‘jornalistas’ dependiam de registro no Ministério do Trabalho (a regulamentação profissional é de 1938), mas os funcionários não podiam negar esse reconhecimento legal desde que o requerente tivesse trabalhado, ainda que por pouco tempo, em um veículo (diário, semanário, mensário, anuário ou devezenquandário); que alguma empresa (para perto de uma dúzia de jornais circulando, os registros de veículos no Rio de Janeiro estava na ordem de centenas) declarasse que ele trabalhou; ou, enfim, gozasse da proteção de um bom padrinho’ (4).
Não basta, portanto, querer copiar os modelos adotados nos países europeus. É importante reconhecer a história social brasileira e elaborar mecanismos que sejam adequados à realidade local. Como escreveu o jornalista Muniz Sodré, do mesmo artigo já citado acima:
‘ O exemplo estrangeiro ou o modelo primeiro-mundista não servem automaticamente ao caso brasileiro. São diferentes os padrões institucionais e o compromisso organizacional com o bem público’ (3).
A necessidade do curso específico de jornalismo
Sem dúvida, a universidade é um símbolo histórico da evolução da humanidade. Foi através dela que a ciência se desenvolveu, ganhou força e passou a ser um meio inquestionável para promover melhorias à sociedade. Em nosso caso particular, é certo que o curso superior em jornalismo fomenta a pesquisa científica específica na área. Ela existe para que sejam analisados práticas e vícios que impedem a boa comunicação. Vejam como exemplo a hipótese do ‘ Agenda Setting’ e a hipótese do ‘ Newsmaking’ .
Para que fique mais claro, oferecemos uma pequena exposição desses conhecimentos específicos de comunicação. Tomamos como fonte a clara exposição feita pelo professor Antônio Hohlfeldt, doutor em Comunicação da PUC do Rio Grande do Sul, no livro Teorias da Comunicação: conceitos, escolas e tendências. Iniciemos pela hipótese do ‘ Agenda Setting’ . Este estudo analisa vários pressupostos:
a) O fluxo contínuo de informação: a avalanche informacional que nos leva ao processo de entropia.
b) A influência sobre o receptor não no curto prazo, mas sim a médio e longo prazos. O que resulta em aquilatar, com maior precisão, os efeitos provocados pelos meios de comunicação.
c) A capacidade dos medias de influenciar o público, a médio e longo prazo, não no como pensar sobre determinado assunto, mas sobre o quê pensar.
‘ Ou seja, dependendo dos assuntos que venham a ser abordados – agendados – pela mídia, o público termina, a médio e longo prazos, por incluí-los igualmente em suas preocupações. Assim, a agenda de mídia de fato passa a se constituir também na agenda individual e mesmo na agenda social’ , analisa Hohlfeldt (6).
Certamente, tais conhecimentos são muito úteis para um editor ou um repórter analisar, de forma crítica e fundamentada, como anda a cobertura jornalística do veículo em que atua sobre diversos assuntos. A importância aumenta se lembrarmos de pautas como eleições, política em geral e economia.
Outro estudo específico aplicado diretamente sobre a atuação do jornalista, do qual repórteres e editores deveriam ter total conhecimento, é a hipótese do Newsmaking. Vejamos o conceito definido por Hohlfeldt sobre tal pesquisa.
‘ A hipótese do Newsmaking dá especial ênfase à produção de informações, ou melhor, à potencial transformação dos acontecimentos cotidianos em notícia. Deste modo, é especialmente sobre o emissor – no caso o profissional da informação, visto enquanto intermediário entre acontecimento e sua narratividade, que é notícia – que está centrada a atenção destes estudos, que incluem sobremodo o relacionamento entre fontes primeiras e jornalistas, bem como as diferentes etapas da produção informacional, seja ao nível da captação da informação, seja em seu tratamento e edição e, enfim, em sua distribuição’ . (6)
Tais estudos sobre a comunicação – sobre as coberturas jornalísticas e a atuação do jornalista profissional – demonstram apenas uma fagulha da importância de um curso específico obrigatório, que estimula aos profissionais da área a uma análise contínua e específica de seu exercício profissional durante toda a vida.
Além das pesquisas aqui apresentadas, se soma ainda a perspectiva da hipótese da Espiral do Silêncio, dos estudos da Semiótica e diversos outros aplicados sobre a produção dos meios de comunicação. Sem essa base específica, eleva-se o perigo acrítico com a nossa produção diária nos mídias, incorrendo em vícios e práticas imperceptíveis a profissionais não especializados. O que, por si só, já impede uma produção ética e equilibrada.
Notem ainda que todas as pesquisas aqui apresentadas são reconhecidas como hipóteses e não em teorias, sem prejuízo algum. Muito pelo contrário. Isso porque as teorias apresentam paradigmas fechados, acabados e rígidos, o que é muito frágil para as ciências humanas e sociais, que certamente não são exatas. Assim, a concepção de hipótese se encaixa melhor porque representam sistemas abertos e inacabados, admitindo, portanto, o desenvolvimento contínuo, sem invalidar sua perspectiva teórica.
Outros exemplos simples e particulares que mostram a importância e, sim, a necessidade do estudo obrigatório na área de jornalismo são os estudos específicos desenvolvidos pelos jornalistas em nossos cursos de mestrado e doutorado. Pegamos como exemplo a pesquisa desenvolvida pelo jornalista Leão Serva, em sua dissertação de mestrado, que se transformou no livro Jornalismo e Desinformação, que detectou vícios e erros contínuos na produção jornalística. Atentamo-nos na seguinte crítica:
‘ O jornalismo veste como novos muitos fatos que em verdade não o são. Esse foco exclusivo nos fatos novos se deve, de acordo com a lógica do meio, à convicção de que a curiosidade do leitor se dá por novidades, não por textos que descrevem o desenvolvimento de notícias publicadas nos dias anteriores. Procurando apresentar apenas novidades, o jornalismo acentua ou mesmo amplia o desconhecimento do fato noticiado. Ele deve apresentar a notícia como absolutamente inusitada, deve fazer com que o mesmo leitor informado sinta desconhecer o fato descrito, se surpreenda com ele, ainda quando tudo poderia ser previsto com base nas informações anteriores. Fatos paradigmáticos do passado devem ser esquecidos, o acompanhamento do desenrolar de uma história é descontinuado para que o seu desfecho seja novamente tão surpreendente quanto o fato gerador’ . (7)
Esse tipo de análise só se tornou possível através de um jornalista profissional que trabalhou durante anos em um jornal e, depois, voltou à universidade para analisar o seu próprio ofício e desvendar os erros cometidos dentro de uma pós-graduação específica em comunicação. Algo que certamente não seria possível se Leão Serva acreditasse que o jornalismo apenas ‘ se aprende na prática’ .
Isso demonstra que o jornalismo não pode ser reduzido à mera técnica de apuração, redação e edição de notícias. Ou seja, não pode ser simplificado ao mecanismo de construção do lead. A simples aprendizagem da técnica não desenvolve no profissional o que a real pesquisa científica sobre o jornalismo é capaz de suscitar.
Bravatas emocionais
Em meio ao debate em torno da obrigatoriedade do diploma, muito tem se falado do ‘ talento nato’ . Isso é o que nós chamamos, no início desde artigo, de bravata emocional. Não negamos que um indivíduo possa dispor de talento ou vocação, mas isso não é prerrogativa suficiente para minimizar a necessidade da pesquisa científica. O jornalista Francisco José Castilhos Karam, professor titular da Universidade Federal de Santa Catarina, no livro Jornalismo, Ética e Liberdade, fala sobre a incoerência que existe em não reconhecer a necessidade da pesquisa científica.
‘ A resistência à teorização é resultado de uma tradição que considera a experimentação a única referência da realidade, como se a subjetividade humana não pudesse negar o existente para criá-lo em outras bases ou como se isso fosse inútil’ . (8).
Como já dissemos anteriormente, a universidade é um símbolo de desenvolvimento social. O diploma apresenta-se como um instrumento que obriga os cidadãos de bem a conhecerem o que já foi pesquisado e reconhecer os avanços já obtidos numa determinada área. Imaginemos o que seria das ciências (humanas, exatas e biológicas) sem o respeito de aprender o que já foi observado e analisado? O jornalista Eugênio Bucci, no livro Sobre Ética e Imprensa esclarece logicamente que a prática pura jamais irá garantir um desenvolvimento intelectual e eficiente, e que tal crença representa um retrocesso brutal.
‘ Julgar que os conhecimentos éticos tradicionais estão automaticamente assegurados pela prática do dia-a-dia e que são suficientes para as coberturas contemporâneas é tão anacrônico quanto acreditar que os cuidados que um pistoleiro do Velho Oeste dispensava ao seu Colt 45 são suficientes para que generais da OTAN tomem conta de seus mísseis nucleares’ . (9).
Contudo, apesar de possuirmos a obrigatoriedade do diploma de jornalismo, reconhecemos que o estimulo à prática dentro das universidades – incentivado pelos próprios veículos de comunicação e por profissionais antigos que ignoram o avanço científico na área – acaba por gerar uma apatia pelos estudos mais aprofundados na área. Essa situação ainda é agravada pela fascinação que a mídia-espetáculo gera hoje nos jovens. A maioria entre na universidade tendo como maior anseio aprender a edição de vídeos, fazer uma passagem, representar bem diante das câmeras, treinar um ‘ ao vivo’ e, quem sabe, um dia estar ao lado de grandes celebridades ou fazer a cobertura da Copa do Mundo.
Esta situação também é fruto da inoperância dos movimentos sindicais que ainda não atentaram em se aproximar das faculdades. O resultado não poderia ser diferente. Ele se reflete nas redações que, infelizmente, está repleto de profissionais que acabaram por engolir o engodo da prática. O jornalista Eugênio Bucci é um que detectou este sentimento antiintelectual, infundado e surpreendente, dentro das redações.
‘ … chega a ser chocante constatar que a maioria dos jornalistas praticamente não estuda. Ao contrário, dão mostras de um sentimento antiacadêmico e antiintelectual quase sem precedentes. Nenhum deles levaria o filho a um dentista que se orgulhasse de não cursar pós-graduação. Nenhum deles iria se tratar com um cardiologista que não freqüentasse os congressos internacionais de sua área, de preferência apresentando trabalhos. Nenhum contrataria como um advogado curioso inculto; dariam preferência aos que fossem professores titulares de alguma universidade. E, mesmo assim, consideram normal que o público seja informado por profissionais que, em média, pouco lêem e não estudam. Que não estudam sequer o que passa com a comunicação e com o espaço público nas democracias atuais. A persistir nessa toada, a mentalidade média das redações continuará a reproduzir o espetáculo’ . (9).
Acreditamos, portanto, que a necessidade de um curso universitário no jornalismo não está na atual ênfase à prática. Não significa, contudo, que devemos esquecê-la. É claro que também é importante ensinar como é o ambiente, a técnica e o ritmo dos diversos meios de atuação (TV, Rádio, Jornal, Internet e Assessorias), mas isso não pode ser o seu foco principal. Portanto, concordamos com o jornalista Maurício Tuffani, quando este citou as argumentações do jornalista Joaquim Fidalgo, professor na Universidade do Minho, em Portugal. Afinal, a simples prática pode ser adquirida com a repetição diária:
‘ O erro maior de certas correntes de ensino do jornalismo está em reduzi-lo à transmissão e prática de um conjunto de técnicas. Nada é mais fácil do que aprender a escrever correctamente uma notícia, de acordo com as exigências estandardizadas de uma comunicação rápida e eficaz. Aprende-se depressa, pode aprender-se mecanicamente, aperfeiçoa-se com o treino repetido. E então quando há algum talento – que também se educa e desenvolve, é bom frisar –, resolve-se este ‘saber fazer’ em duas penadas’ . (10)
Aqui, vemos claramente que a citação acima não pode ser usada contra a obrigatoriedade do diploma, como tentou o jornalista Maurício Tuffani. Tratou-se apenas de uma leitura apressada de um comentário que condena justamente o incentivo à prática em prejuízo do aprofundamento teórico em jornalismo. Portanto, ressaltamos mais uma vez as argumentações pertinentes do jornalista Eugênio Bucci que, esclarecidamente, elege a universidade como um meio insubstituível para o convívio com as ciências sócias e humanas aplicadas ao jornalismo.
‘ A universidade por mais que tenha em vista o mercado de trabalho, tem sua vocação mais funda no cultivo a reflexão (…) ela pensa a sociedade. Sua melhor contribuição está em formar profissionais não tecnicamente prontos, mas críticos, capazes de pensar por si mesmos (…) Isso, o mercado sozinho, não faz. A universidade é o celeiro da pesquisa e do questionamento intelectual, ela opera num tempo distinto do tempo do mercado, mais lento e mais aberto ao aprofundamento. O que ela tem de melhor a dar aos jornalistas em formação é o convívio com as ciências humanas aplicadas aos temas da imprensa (…) nisso ela é insubstituível’ . (9)
Vemos, portanto, total necessidade do curso superior em jornalismo. Agora, também nos questionamos onde está a ‘ irrefutável constatação’ , citada por Tuffani, de que a formação específica não é uma condição necessária para o exercício da profissão, já que constatamos exatamente o contrário. Como citou o jornalista Eugênio Bucci, também no livro Sobre Ética e Imprensa ‘ A prática jornalística nunca dependeu tanto da reflexão e do estudo como agora’ .
Isso porque é através do desenvolvimento das pesquisas específicas sobre jornalismo e comunicação, que podemos analisar os efeitos de sua prática e detectar vícios e erros que possam prejudicar o equilíbrio democrático das vozes sociais. Como vimos, é justamente o objetivo do ‘ Agenda Setting’ e do ‘ Newsmaking’ .
Ao mesmo tempo, de maneira nenhuma negamos a reformulação dos cursos existentes e a criação de mecanismos que possam gerar maior controle sobre os mesmos em todo o território nacional. O que pode ser possível com a criação de um conselho federal; exames que venham medir o conhecimento dos formandos (como o da OAB) e maior ênfase à pesquisa científica específica.
No mais, acreditamos ainda ser extremamente importante à moralização na distribuição de concessões de rádio e TV; combater o monopólio no setor e promover maior pluralidade na propriedade dos meios. Além de todas as justificativas aqui ressaltadas é bom lembrarmos também que o jornalista formado na prática demonstra uma limitação séria. Afinal, se este pragmático jornalista iniciou sua carreira em um jornal, além de levar bastante tempo para se encaixar ao ritmo da redação do impresso, nada sabe em relação à TV, Rádio, Internet, Assessoria e Instituições. O que demonstra uma óbvia limitação. Um verdadeiro retrocesso anacrônico, tanto intelectual como técnico. Tendo isso em vista, aproveitamos para fazer mais uma citação do professor e jornalista Nilson Lage, agora retirada do livro A reportagem: teoria e técnica de entrevista e pesquisa jornalística.
‘ A responsabilidade envolvida no tráfego de informações, a sofisticação tecnológica e a relevância do direito dos cidadãos à informação, indicam a necessidade de estudos demorados para a prática do jornalismo – estudos que, como acontece com as demais profissões de nível superior, deverão estender-se por toda a vida’ . (11)
Encerramos este trecho do artigo com a refutação da seguinte afirmação de Daniel Cornu, professor universitário e diretor do Centro Franco-Suíço de Formação de Jornalistas, citada no artigo de Tuffani: ‘ os contornos da profissão permanecem ainda bastante imprecisos’ . Após apresentarmos os vários exemplos de pesquisas científicas específicas e a clara comprovação da necessidade de aprofundamento teórico para melhor servir a opinião pública, acreditamos que os contornos estão todos aí e muito bem definidos.
Lembramos ainda que Tuffani alega que a formação específica não é suficiente. A isso, nós refutamos ao dizer que a afirmação de suficiência na pesquisa científica e no campo profissional é muito perigoso e desestimula a análise. Quem se julga suficiente não se aprofunda no estudo e no aperfeiçoamento contínuo, tanto no campo científico, como no profissional.
A obrigatoriedade do Diploma de Jornalismo
Já apresentamos de forma clara e lógica que a necessidade do curso superior de jornalismo mostra-se pertinente, com o desenvolvimento de conhecimento privativo da área de comunicação, que favorece o equilíbrio democrático nos meios de comunicação de massa. Como já dissemos, o diploma é, portanto, apenas um dispositivo que obriga aos cidadãos de bem conhecerem o que já foi analisado, reconhecer os avanços já obtidos e incentivar novas pesquisas que contribuam com o aprimoramento na área.
Contudo, essa obrigatoriedade é questionada porque estaria impedindo a Liberdade de Expressão e, ao mesmo tempo, alega-se que o jornalismo não necessita de estudos específicos ou pesquisas científicas aplicadas na área. É isso que será julgado pelo Supremo Tribunal Federal. O último julgamento sobre o caso foi dado pela 4ª Turma do Tribunal Regional Federal da 3ª Região, que decidiu, por unanimidade, que a obrigatoriedade do diploma de jornalismo é constitucional e não fere a Liberdade de Expressão.
Achamos interessante iniciar com as argumentações do recurso movido pelo Ministério Público Federal (MPF). Segundo o recurso, o Artigo 5º da Constituição Federal não pode servir de base para a obrigatoriedade de um curso superior na área de jornalismo. Vejamos o que diz a Carta Magma.
‘ Art. 5º. (…) XIII – é livre o exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer;’ . (12)
Ou seja, é livre o exercício de qualquer profissão, desde que sejam atendidas as qualificações exigidas pela Lei. No caso do jornalismo, por exemplo, qualquer brasileiro pode exercer a profissão. Ela é livre. Contudo, para que a sociedade não seja prejudicada, é necessário que o indivíduo faça um curso superior específico, para que esteja apto e não prejudique a sociedade.
O recurso do MPF alega que o jornalismo não necessita de conhecimento específico. Vejamos o que ele diz:
‘ A restrição feita pelo artigo 5º, inciso XIII da Constituição Federal, refere-se somente a determinadas profissões, nas quais se exige conhecimentos técnicos específicos para o regular desempenho na atividade, sem acarretar qualquer dano à coletividade, como os profissionais na área da Saúde, por exemplo. Mas o mesmo não deve ocorrer com relação aos jornalistas’ . (13)
Enfim, consideramos que esta argumentação parte de um julgamento que ignora todos os conhecimentos específicos do jornalismo e da comunicação. Depois de tantos exemplos que mostraram a necessidade das pesquisas científicas específicas para a prática do jornalismo, nos tornaríamos repetitivos ao refutar tal afirmação novamente. Além disso, devemos lembrar que o inciso XIII, presente no artigo 5º da Constituição também se refere às profissões técnicas.
Jornalismo não é profissão técnica
Como já vimos, o jornalismo não é uma profissão meramente técnica, pois necessita de estudos aprofundados de comunicação e o contínuo desenvolvimento dos mesmos para que sejam aplicados ao jornalismo. Mas mesmo que fosse apenas uma profissão tecnicista, ainda seria ignorância querer alegar que tais técnicas do jornalismo não proporcionam a construção de textos mais objetivos, claros e concisos, com uma narrativa que parte do mais importante para o menos importante – além dos ensinamentos práticos existentes e sobre TV, Rádio, Internet e Assessorias.
É, portanto, desconhecer obras interessantes como ‘ A Estrutura da Notícia’ (Nilson Lage), ‘ A pragmática do Jornalismo’ (Manuel C. Chaparro), ‘ O texto na TV’ (Vera Ires Paternostro), ‘ Manual de Radiojornalismo da Jovem Pan’ , ‘ O texto da Reportagem Impressa’ (Oswaldo Coimbra), e centenas de outras obras que, para garantir uma análise crítica sobre as mesmas e o aperfeiçoamento contínuo dos ensinos apresentados, já necessitaria de um curso específico.
A frágil argumentação do recurso do MPF ainda continua da seguinte forma:
‘ Deve-se ter em mente que a regulamentação das profissões deve ter como objetivo último a proteção daqueles que são os receptores dos serviços profissionais, os quais devem ter a certeza de receberem serviços de pessoas capacitadas para tanto’ . (13)
Temos a certeza de que o jornalismo é exercido por profissionais capacitados, quando contemplarmos a capacidade crítica de profissionais como o já citado Leão Serva, capaz de detectar vícios e erros na veiculação de notícias nos meios de comunicação de massa, através da pesquisa científica aprofundada e específica.
E, é claro, que estaremos protegendo a população quando realizamos estudos pertinentes que verificam a influencia sobre os receptores da mensagem a médio e longo prazo; quando colocamos em foco a análise sobre a produção de informações e sua potencial transformação dos acontecimentos cotidianos em notícia; os efeitos de entropia da informação; as diferentes etapas da produção informacional; a observação do emissor (nós, jornalistas) em seu relacionamento com as fontes; os mecanismos que levam a hipótese da Espiral do Silêncio; a simbologia presente nas mensagens; o equilíbrio das vozes sociais; a problemática da concentração de vários veículos nas mãos de poucos donos etc.
O recurso ainda tenta concluir:
‘ …tal raciocínio não se aplica à classe dos jornalistas, vez que inexiste, naquele ramo, um Conselho ou uma Ordem Profissional, justamente pelo fato de que tal atividade prescinde de controle ético por um órgão público, o que acaba sendo realizado pelos próprios leitores das matérias jornalísticas e ainda por editores e outros responsáveis pelas empresas jornalísticas’ . (13)
Tal afirmação demonstra como a criação de um Conselho Federal de Jornalismo incomoda. Ele atinge os interesses dos empresários. Como já dissemos, a Associação Nacional dos Jornalistas (ANJ) é uma grande entusiasta pelo fim do diploma. Afinal, um Conselho Federal tem força para entrar nas redações, nas faculdades e criar os Comitês de Redação – úteis para dirimir abusos patronais.
No tocante ao controle, feito pelos próprios leitores, trata-se de uma meia verdade, já que estes desconhecem a ciência específica da área de comunicação e as diversas fases da produção noticiosa. Nem mesmo estão aptos a observarem os problemas detectados pelas diversas pesquisas científicas aplicadas sobre o jornalismo, já citadas neste artigo.
Quanto ao controle feito pelos próprios editores, também já esclarecemos que não será totalmente possível com tantos políticos – embriagados de interesses escusos – dominando todas as concessões de Rádio ou TV. Como também já dissemos anteriormente, há uma clara problemática da concentração de vários veículos nas mãos de poucos donos. O que restringe o mercado de trabalho e acua os profissionais em combater interesses patronais que se sobrepõem ao Interesse Público.
A liberdade de expressão e o diploma
Posteriormente, o relator do recurso do MPF – provavelmente por falta de conhecimento sobre jornalismo – acaba defendendo de forma não intencional que, mesmo com a obrigatoriedade do diploma, há liberdade de expressão nos veículos.
‘ Além disso, é de se ressaltar que o jornalismo encontra-se cada vez mais especializado, de forma que pessoas formadas em outras áreas terminam, muitas vezes, por dedicarem-se à elaboração de artigos e matérias jornalísticas específicas sobre os temas de sua formação acadêmica’ . (13)
A autora do recurso se refere aos Colaboradores. O que é totalmente assegurado pela legislação atual que obriga o diploma de jornalismo. A manifestação da Fenaj sobre este aspecto foi irrepreensível:
‘ Lei de Imprensa – Lei nº 5.250/67, que estabelece critérios para a exploração das comunicações, a fim de preservar a sociedade de abusos da liberdade de imprensa, garantindo reparação civil e criminal das informações distorcidas, da invasão da privacidade, dos efeitos desses atos ilícitos, direito de resposta, dentre outros. Por outro lado, que não se diga que a lei que regulamenta a profissão de jornalista ‘castra’ a informação de assuntos técnicos como ciências médicas, ciências jurídicas ou ciências econômicas, pois previu a figura do COLABORADOR’ . (12)
Em resposta a esta argumentação sincera e esclarecedora da Fenaj, o Juiz, Manoel Álvares, responsável pelo Acórdão da 4ª Turma do Tribunal Regional Federal da 3ª Região, disse:
‘ Como se verifica, a atividade do colaborador está relacionada com a sua especialização, não sendo considerada atividade jornalística. A título de ilustração, o médico que escreve um artigo sobre matéria médica não exerce a atividade jornalística, assim como o advogado que emite parecer acerca de questão jurídica também não, ainda que tais trabalhos sejam publicados em jornais ou revistas’ (12).
Está visão lógica já era observada por vários profissionais do jornalismo brasileiro, que defendem a obrigatoriedade do diploma. No Livro Deu no Jornal: o jornalismo impresso na Era da Internet, o jornalista Álvaro Caldas, professor do Departamento de Comunicação Social da PUC-Rio, diz que a afirmação de que o diploma fere a liberdade e distorce a realidade.
‘ O argumento (…) de que a exigência de contratação de profissionais diplomados esteja cerceando a plena liberdade de expressão na mídia e o direito da sociedade à informação, é falso e distorce a realidade. A garantia de um jornalismo pluralista, independente e crítico, conquista dos regimes democráticos, só tem a ganhar com a formação universitária dos jornalistas. A exigência do diploma não constitui obstáculo para que outras pessoas possam expor seu conhecimento e opinião sobre problemas em que são especialistas, como mostram os artigos que diariamente estão na imprensa assinados por advogados, engenheiros, psicólogos, médicos, sociólogos, historiadores, empresários, religiosos e sindicalistas. Nenhum deles jornalistas’ . (Pág. 38). (14)
No mais, também é óbvio que o jornalista deve dar espaço para que vários especialistas de outras áreas possam opinar sobre um determinado assunto de interesse público. Afinal, é isso que chamamos de equilíbrio democrático das vozes da sociedade. O que força o jornalista em não se portar como um comentador que sabe das coisas, mas como um instrumento que busca servir a democracia e trazer ao espaço público uma grande diversidade de opiniões.
Eugênio Bucci, no livro Sobre Ética e Imprensa descreve muito bem como deve ser o jornalista especializado num determinado assunto.
‘ O jornalista especializado já não é o comentarista que sabe das coisas; é antes de tudo um bom repórter especializado, com boas fontes alternativas, que sabe, isto sim, a quem perguntar. Isso desmistifica na prática o jornalismo como fonte da verdade, e reforça a necessidade de investir no jornalismo como uma máquina de fazer reportagens’ . (9) Grifo nosso.
Além disso, o argumento de que seria melhor se o jornalista fosse formado no assunto que escreve desconhece como o conhecimento hoje está fragmentado e, portanto, não seria possível contemplar todas as áreas de interesse, ou mesmo as principais. Só na área de medicina, por exemplo, existem os cirurgiões, pediatras, neurologistas, cardiologistas, endocrinologistas, otorrinolaringologistas, fisioterapeutas, ginecologistas, urologistas, dermatologistas, nutrólogos, infectologistas, entre outros.
Essa visão míope também não enxerga que a atuação de especialistas em outras áreas prejudica o equilíbrio democrático das vozes no espaço público, até porque, o jornalista formado em ciências jurídicas ou em medicina, por exemplo, se tornaria a própria fonte que ‘ sabe das coisas’ e não teria o conhecimento científico específico que analisa os efeitos da comunicação sobre o público.
Some-se ainda a dificuldade que estes profissionais teriam em investigar reportagens mais intrincadas. Será que um médico denunciaria práticas de um laboratório que patrocina o seu próprio consultório, suas pesquisas, os simpósios e congressos de sua associação ou sociedade médica? Esta situação, portanto, seria a própria cooptação da informação pela fonte-mediadora. É o que aconteceria como no descrito por Eugênio Bucci.
‘ Ser independente da fonte é um desafio clássico e já bastante conhecido. Trata-se de não permitir que a proximidade necessária entre o repórter e sua fonte se transforme na cooptação do repórter pela fonte: sem notar, o primeiro começa a adotar os pontos de vista da segunda, começa a usar o seu linguajar e a desenvolver espontaneamente raciocínios que não são próprios nem do veículo em que ele trabalha nem do público ao qual ele se dirige, mas dela, fonte’ . (9).
O jornalista Nilson Lage também descreveu bem esta situação:
‘ Os empecilhos de natureza ética seriam um obstáculo nos casos, por exemplo, de médicos tratando de procedimentos de outros médicos ou de advogados acompanhando processos. Cada profissão protege-se a seu jeito, seja impedindo a manifestação pública da opinião antes da comunicação aos conselhos profissionais (o caso dos médicos), seja criando rituais exóticos de referência, tais como meritíssimo (juiz), nobre (o colega), egrégio (o tribunal) e a coleção de frases feitas latinas, chamados de brocardos. Nada mais sagrado, para um especialista, do que o jargão do ofício; para ele, dependendo da área, temos refrigeradores, não geladeiras; viaturas, não carros; ventre, não barriga; bovinos, suínos e caprinos não bois; porcos e cabras; frascos ou invólucros, não garrafas. De fato, o indivíduo teria de abandonar os comportamentos e até itens da linguagem exigidos em sua profissão originária para atuar como jornalista’ . (4)
Outra observação lógica é a do jornalista Luiz Guerra, professor da Universidade Federal de Sergipe, em relação à Liberdade de Expressão. Ele diz que, mesmo que o diploma não fosse mais exigido, a seleção do que é de interesse público permaneceria. Ora, qualquer pessoa que conheça a profissão sabe que pode se expressar por qualquer mídia. Quem impede as fontes de se manifestarem não é a exigência do diploma, porque é da essência do jornalismo ouvir infinitos setores sociais, mediante critérios como relevância social, interesse público e outros.
‘ Se hoje, por exemplo, um jornal criado por várias pessoas sem diploma fosse lançado, também teria em seus quadros um número restrito de pessoas trabalhando, excluindo outras. Seria então a capacidade física ou financeira de um veículo aspectos restritivos da liberdade de expressão? Mas, por que a prática jornalística suscita preocupações? Porque é fundamental para a formação da opinião pública. Se não põe em risco a vida, em sentido biológico, de ninguém, pode pôr em risco a honra, os sonhos, a dignidade e outros valores que costumam dar sentido à vida das pessoas. As vítimas do mau jornalismo infelizmente são esquecidas tão rapidamente quanto de uma hora para outra tornam-se expostas à humilhação pública. Sem falar na falta que informações de qualidade fazem à democracia’ . (15)
O diploma é constitucional
Outra argumentação do recurso do MPF diz que a Lei que instituiu a obrigatoriedade do diploma não foi recepcionada pela Constituição de 1988. Não é verdade. Como já vimos, a atuação no jornalismo exige conhecimentos específico e científico sobre a comunicação. Desta forma, como também já vimos, a Constituição prescreve que é livre o acesso a qualquer profissão desde que atendidas as qualificações que a lei estabelecer.
Além disso, em várias Constituições que o Brasil já teve, esse é um item que sempre esteve presente. Vejamos:
‘ A Constituição Federal de 1934 (art. 113, n. 13) já garantia o livre exercício de qualquer profissão, desde que ‘ observadas as condições de capacidade técnica e outras que a lei estabelecer, ditadas pelo interesse público’ .
A Carta de 1937, apesar do cunho ditatorial e restritivo à manifestação livre de pensamentos, inclusive restringindo a atividade de imprensa, assegurou:
‘ Art. 122. (…)
8. A liberdade de escolha de profissão ou do gênero de trabalho, indústria ou comércio, observadas as condições de capacidade e as restrições impostas pelo bem público, nos termos da lei’ .
A Constituição Federal de 1946 resgatou a liberdade de manifestação de pensamentos e do exercício profissional, mantendo, porém, a mesma ressalva:
‘ Art. 141. (…)
§ 14 – É livre o exercício de qualquer profissão, observadas as condições de capacidade que a lei estabelecer’ .
Na mesma linha a Constituição de 1967, mantida inclusive sua redação quando da promulgação da Emenda Constitucional nº 1, de 17 de outubro de 1969, ainda que sob as condições antidemocráticas verificadas à época, sob cuja vigência foi editado o Decreto-Lei n.º 972/69, assim dispondo:
‘ Artigo 153. (…)
§ 23. É livre o exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, observadas as condições de capacidade que a lei estabelecer’ .
A atual Constituição Federal, ao tratar dos Direitos e Deveres Individuais e Coletivos, dispõe:
‘ Art. 5º. (…)
XIII – é livre o exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer;’ .
Da simples leitura dos textos citados, verifica-se que o legislador constituinte manteve, sistematicamente, a possibilidade de norma infraconstitucional regulamentar e exigir qualificações técnicas necessárias para o exercício de determinadas profissões em atendimento aos interesses e necessidades de ordem pública.
Pois bem. O Decreto-Lei n.º 972, de 17 de outubro de 1969, veio regulamentar o exercício da profissão de jornalista, contendo norma de cunho conceitual e restritivo somente quanto ao aspecto de exigência de qualificação para o exercício da profissão e registro perante o órgão competente, assim dispondo:
‘ Art. 1º. O exercício da profissão de jornalista é livre, em todo o território nacional, aos que satisfizerem as condições estabelecidas neste Decreto-Lei’ .
Art. 2º. A profissão de jornalista compreende, privativamente, o exercício habitual e remunerado de qualquer das seguintes atividades:
a) redação, condensação, titulação, interpretação, correção ou coordenação de matéria a ser divulgada, contenha ou não comentário;
b) comentário ou crônica, pelo rádio ou pela televisão;
c) entrevista, inquérito ou reportagem, escrita ou falada;
d) planejamento, organização, direção e eventual execução de serviços técnicos de jornalismo, como os de arquivo, ilustração ou distribuição gráfica de matéria a ser divulgada;
e) planejamento, organização de administração técnica dos serviços de que trata a alínea ‘ a’ ;
f) ensino de técnicas de jornalismo;
g) coleta de notícias ou informações e seu preparo para divulgação;
h) revisão de originais de matéria jornalística, com vistas à correção redacional e a adequação da linguagem;
i) organização e conservação de arquivo jornalístico, e pesquisa dos respectivos dados para a elaboração de notícias;
j) execução da distribuição gráfica de texto, fotografia ou ilustração de caráter jornalístico, para fins de divulgação;
l) execução de desenhos artísticos ou técnicos de caráter jornalístico.
Esses dispositivos iniciais não sofreram restrição por parte do autor, até porque claramente não apresentam qualquer incompatibilidade com a Constituição de 1988.
Merece destaque, desde logo, que a norma ora atacada por que não teria sido recepcionada pela ordem constitucional vigente, foi reiteradamente alterada ou regulamentada: em 1978 (Lei 6.612), em 1979 (Decreto 83.284, que deu nova regulamentação ao Decreto-Lei n. 972/69), em 1985 (Lei 7.360) e, finalmente, em 1986 (Decreto 91.902, que regulamentou a Lei 7.360/85).
O Decreto n.º 83.284, de 13 de março de 1979, trouxe nova regulamentação ao Decreto-Lei n. 972/69 e o fez da forma mais completa possível, pelo que não pode deixar de ser analisado em conjunto com a norma atacada, principalmente em face de duas alegações constantes da inicial, quais sejam a impossibilidade do exercício da profissão sem formação específica para áreas de conhecimentos especializados e a limitação de acesso à informação em regiões e municípios desprovidos dos profissionais com formação superior em jornalismo’ . (12)
Assim, ficou claro que a liberdade de comunicação e/ou expressão não se confunde com a liberdade de profissão, que é garantida a todos, desde que atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer. E o relator concluiu:
‘ Os danos efetivos, de ordem individual ou coletiva, que o exercício da profissão de jornalista por pessoa desqualificada ou de forma irresponsável pode gerar são incalculáveis. Os bens jurídicos que podem ser afetados são da mesma magnitude que tantos outros direitos fundamentais tutelados, como a vida, a liberdade, a saúde e a educação. Os riscos não se afastam nem se diferenciam do exercício irregular da advocacia, da medicina, da veterinária, da odontologia, da engenharia, do magistério e outras tantas profissões’ . (12)
Considerações Finais
Deixamos para o final as argumentações do Procurador Regional dos Direitos do Cidadão em São Paulo, André de Carvalho Ramos, por serem as mais frágeis ao demonstrar desconhecimento do conhecimento específico de comunicação e jornalismo.
De acordo com o Procurador, os jornalistas são profissionais liberais e, por isso, não podem exigir obrigatoriedade de diploma. Ele cita outros exemplos de profissionais liberais. ‘ Enfermeiros, Parteiros, Advogados, Analistas de Sistemas, Escritores, Estatísticos, Relações Públicas, Autores Teatrais’ (sic). E por fim afirma:
Ora, será que, para ser um escritor, ‘ é indispensável o diploma do curso superior específico conferido por estabelecimento de ensino autorizado ou reconhecido’ ? Será que somente se pode criar uma peça de teatro munido de um diploma superior específico registrado? Por certo que não. O raciocínio desenvolvido pela Ré é falacioso, bem dando prenúncio de que também juridicamente não se sustentará. (16)
E quanto ao advogado, enfermeiros, relações públicas, para não citar os médicos? É certo que no rol dos profissionais liberais estão profissões que não exigem curso superior, como o caso de escritor, mas já vimos que o jornalismo exige. Além disso, de acordo com a construção histórica e definição legal, diz-se que liberais são os profissionais, trabalhadores, que podem exercer com liberdade e autonomia profissão decorrente de formação técnica ou superior específica, legalmente reconhecida. O exercício corresponde à aplicação prática do conhecimento técnico em favor de alguém.
Quanto à Convenção Americana sobre Direitos Humanos, é certo que ela foi incorporada em nossa Constituição. Sendo assim, é claro que ela não contradiz o texto da Carta Magma. Em total compatibilidade a nossa Constituição, ela diz que toda pessoa tem direito à liberdade de pensamento e expressão. Esse direito inclui a liberdade de procurar, receber, e difundir informações e idéias de qualquer natureza, sem considerações de fronteiras, verbalmente ou por escrito, ou em forma impressa ou artística, ou por qualquer meio de sua escolha.
Como já vimos, tudo isso já é garantido por nossa Constituição. O que não se pode confundir é a liberdade de expressão com a liberdade profissional, que é livre e sem qualquer tipo de censura a todos que preencherem as qualificações exigidas pela lei. Fica fácil entender, portanto, o porquê da decisão da 4ª Turma do Tribunal Regional Federal da 3ª Região ter sido unânime em favor do diploma. No qual o relator Maunel Álvares, esclareceu:
‘ É certo que, com a edição do Decreto nº 678/92 (DJU de 09.11.92), a Convenção Americana Sobre Direitos Humanos, também conhecida como Pacto de São José da Costa Rica, passou a integrar o sistema jurídico nacional.
Contudo, com a devida vênia, não vislumbro incompatibilidades entre essa norma internacional e os direitos e garantias já assegurados em nossa Constituição Federal relacionados com a liberdade de manifestação do pensamento (art. 5º, IV), com a liberdade de expressão (art. 5º, IX), bem assim com a liberdade de informação (art. 220, § 1º), as quais, repito, não se confundem com liberdade de profissão’ . (12)
E concluiu:
‘ Por todo o exposto, impõe-se a conclusão que todas as normas veiculadas pelo Decreto-Lei nº 972/69 foram integralmente recepcionadas pelo sistema constitucional vigente, sendo legítima a exigência do preenchimento dos requisitos da existência do prévio registro no órgão regional competente e do diploma de curso superior de jornalismo para o livre exercício da profissão de jornalista. Em conseqüência, é de rigor o decreto de total improcedência da presente ação, com a cessação da eficácia da tutela antecipada concedida parcialmente’ .
A 4ª Turma do Tribunal Regional Federal da 3ª Região é douta. Acreditamos, portanto, que se o diploma de jornalismo tivesse algo de inconstitucional, certamente, seria observado. Contudo, a decisão foi unânime em afirmar que o diploma foi amparado pelo Constituição de 1988, não fere a liberdade de expressão e, reconhecidamente, o jornalismo exige conhecimentos científicos e práticos específicos.
Sobre o autor
A todos aqueles que não acreditam na formação dos cursos de jornalismo, me coloco como um exemplo. Sou formado há pouco mais de três anos e o conhecimento e análise crítica do artigo foi, sim, desenvolvida e estimulada durante o curso superior de jornalismo. Não o escrevi por ego ou para a autopromoção. Até porque qualquer outro profissional que se formou junto comigo está apto para escrever o que foi colocado aqui. Apenas senti a necessidade de defender o que acredito ser o melhor para a sociedade e democracia brasileira, que ainda se encontra imersa numa cultura de favoritismos e interesses escusos. Acredito ainda que as argumentações do jornalista Maurício Tuffani tiveram o mesmo objetivo que o meu. No entanto, não posso deixar de publicar algo que esteja tão claro, que valoriza a pesquisa científica específica, protege à democracia e os cidadãos.
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Jornalista e Professor de História