O vice-presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Carlos Ayres Britto, afirma que a censura prévia à imprensa desrespeita totalmente a Constituição. Para ele, o direito à liberdade de imprensa deve prevalecer sobre direitos como intimidade e vida privada.
“Quem quer que seja pode dizer o que quer que seja. A imprensa tem de ter precedência. Se ela não tiver precedência, o que vai acontecer? Censura prévia”, afirma o ministro do STF.
“Quando a sociedade é autoritária ou não civilizada em termos democráticos, sacrifica o bloco do direito à informação em prol do bloco do direito à intimidade”, acrescenta Ayres Britto, para concluir: “Se você quiser conferir precedência à honra, à intimidade, não há liberdade de imprensa”.
Relator no Supremo da ação que resultou na derrubada da Lei de Imprensa, em abril de 2009, Ayres Britto reconhece que há setores do Judiciário que ainda impõem a censura prévia. No entanto, ele acredita que isso vai mudar: “É da natureza humana esse apego a fórmulas passadas porque não são raras as pessoas que experimentam extrema dificuldade para enterrar ideias mortas. Elas vão buscar formol em quantidade nas prateleiras do seu espírito conservador”. A seguir, a entrevista concedida por ele à reportagem do Estado na última segunda-feira [25/7] na sede do STF em Brasília.
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O STF derrubou a Lei de Imprensa em 2009. Quais foram os pontos principais da decisão?
Carlos Ayres Britto – O STF não deixou pedra sobre pedra da Lei de Imprensa. Não podia salvar nada. Tudo tinha de cair de uma só vez. O Supremo disse que a lei como um todo não foi recebida pela Constituição de 1988. Dissemos que havia incompatibilidade material insuperável entre a Lei de Imprensa e a Constituição. Porque há um entrelace de comandos na Lei de Imprensa que contamina todos os seus dispositivos. Há um tipo de relação de imprensa que não pode ser objeto de lei. O que diga respeito ao conteúdo da liberdade e à duração do exercício da liberdade não pode ser objeto de lei. É uma relação central ou elementarmente de imprensa. Só as relações laterais ou perifericamente de imprensa podem ser objeto de lei, como indenização, direito de resposta, regulação de faixa etária para audiência de certos espetáculos públicos e programas de rádio e TV.
Frequentemente ocorrem choques entre o direito à liberdade de imprensa e o direito das pessoas à intimidade. Como resolver?
C.A.B. – A Constituição tem dois blocos de relações jurídicas fundamentais, de liberdades fundamentais. O primeiro bloco estabelece o direito à manifestação do pensamento, à liberdade de expressão (artística, intelectual, científica e comunicacional) e o direito à informação. É o direito de você informar, o direito de se informar e o direito de ser informado. O segundo bloco é constituído pelo direito à intimidade, à vida privada, à honra e à imagem.
Quando ocorre um choque entre esses direitos, qual deve prevalecer?
C.A.B. – O que acontece historicamente com esses dois blocos? Eles se encontram, se atritam, se antagonizam. Esses dois blocos têm a vocação para a fricção. Quando a sociedade é autoritária ou não civilizada em termos democráticos, essa sociedade sacrifica o bloco do direito à informação em prol do bloco do direito à intimidade. A consequência disso é a censura prévia. Se você disser que o segundo bloco (do direito à intimidade) tem precedência, matou a imprensa. Não tem como. Se você disser que o primeiro bloco (direito à liberdade de imprensa) tem precedência, o responsável por eventual abuso ou notícia inverídica vai responder (na Justiça, por exemplo, a uma ação de indenização). Não é pelo temor do abuso que se vai proibir o uso. É inevitável que aqui ou ali um jornalista incorra em abuso ou erro. Mas não há liberdade de imprensa pela metade. Pela metade, é um arremedo. É dar com uma mão e tomar com a outra.
O sr. defende que a liberdade de imprensa é absoluta e plena.
C.A.B. – Alguns ministros disseram para mim: não há direitos absolutos. Eu respondi: essa história de que não há direito absoluto é um mantra. Eu listei vários direitos absolutos. O direito de um brasileiro nato não ser extraditado é um direito absoluto.
Então, a censura prévia da imprensa é inconstitucional?
C.A.B. – É inconstitucional. Quem quer que seja pode dizer o que quer que seja. A imprensa tem de ter precedência. Se ela não tiver precedência, o que vai acontecer? Censura prévia. Eu fiz um estudo sobre os que estudaram a liberdade de imprensa, como John Milton, Tocqueville, Rui Barbosa, Thomas Jefferson. A conclusão a que se chega é: ou você diz que há dois blocos e a precedência é da liberdade de imprensa ou não há liberdade de imprensa. Se você quiser conferir precedência à honra, à intimidade, não há liberdade de imprensa.
Como acabar com esses casos de censura prévia à imprensa?
C.A.B. – De certa forma é compreensível que a nova ordem constitucional em matéria de liberdade de imprensa seja aqui e ali negada por alguns julgadores mais aferrados à cultura antiga. É da natureza humana esse apego a fórmulas passadas porque não são raras as pessoas que experimentam extrema dificuldade para enterrar ideias mortas. Elas vão buscar formol em quantidade nas prateleiras do seu espírito conservador. É natural isso. Porém, com o tempo, a nova ordem constitucional vai removendo obstáculos e se implantando em definitivo. Até porque comprovadamente liberdade de imprensa e democracia se enlaçam umbilicalmente. Cortar esse cordão umbilical é matar as duas: a imprensa e a democracia.
O sr. considera necessária a edição de uma lei para regulamentar pontos específicos, como o direito de resposta?
C.A.B. – Enquanto não houver lei a Constituição opera por si e contém parâmetros para orientar o juiz nos casos concretos. O que está acontecendo com a imprensa – infelizmente, depois que ganhou a sua plena liberdade – é a síndrome da insustentável leveza do ser, relatada no livro de Milan Kundera. No livro de Kundera, o que a mulher queria era se livrar do homem, mas ela temia pela reação dele. Ela conseguiu a liberdade. E qual a consequência? Ela estava mal, incomodada por estar bem. Quando você se livra dos problemas você paradoxalmente começa a se sentir mal. O que é insustentável é a leveza. Você se habituou ao masoquismo, gostou de sofrer. A imprensa vive nesse momento de transição, entre a decisão do Supremo e a formação de uma nova cultura jurisprudencial. A imprensa está vivendo um momento de inquietação que corresponde à síndrome da insustentável leveza do ser. A imprensa, ao invés de curtir a liberdade, está aturdida com a liberdade. As coisas vão se ajustar. É no tranco da carroça que as abóboras se ajeitam. Estamos formando uma nova cultura em termos de liberdade de imprensa. Mas a nova cultura deve caminhar no rumo que o Supremo traçou. Os obstáculos eventuais serão removidos à luz da decisão do Supremo.
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[Mariângela Gallucci é jornalista do Estado de S.Paulo]