Que os veículos das Organizações Globo distorcem a realidade em favor de seus interesses — ou dos interesses de quem serve — não é novidade. Basta lembrar o escândalo PróConsult, de 1982, por meio do qual a empresa tentou fraudar o resultado das eleições para o governo do Rio de Janeiro dando a Moreira Franco os votos que eram de Leonel Brizola, ou a campanha pelas eleições diretas, em 1984, que teve seu primeiro grande comício noticiado pela Rede Globo como um evento musical em homenagem ao aniversário de São Paulo. Não chega, portanto, a surpreender a matéria da revista Época da semana passada (edição número 300, de 16/02/04) e suas ilações para atingir o governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva e seu braço direito e ministro-chefe da Casa Civil, José Dirceu.
Contextualizando os leitores que ouviram a repercussão mas não tiveram contato com a reportagem original: em uma gravação de 2002, o então presidente da Loteria do Estado do Rio de Janeiro (Loterj), Waldomiro Diniz, encontra-se com o empresário e bicheiro Carlos Augusto Ramos. O encontro é filmado por Carlinhos Cachoeira, como o contraventor é conhecido. As fitas, agora entregues ao Ministério Público, revelam o acerto de um suborno. Em troca de uma propina (R$ 303 mil), Diniz promete alterar um edital para não atrapalhar os negócios de Cachoeira no Estado do Rio de Janeiro. O butim, segundo acusação da revista, seria utilizado para bancar as campanhas eleitorais dos candidatos petistas aos governos do Rio de Janeiro (Benedita da Silva) e do Distrito Federal (Geraldo Magela).
Não se procura aqui apontar culpados pelo escândalo e cobrar as penas – o Ministério Público, a Justiça, a Polícia e o Congresso já estão se encarregando disso. Este artigo restringe-se a atuação da revista Época, cujas distorções começam já pela capa, que traz em letras garrafais a bombástica revelação: ‘Dinheiro sujo: vídeo mostra o homem que cuida dos interesses do Planalto no Congresso negociando com bicheiros o favorecimento numa concorrência em troca de propina e contribuição de campanha’. Erro factual: na verdade, a gravação mostra uma negociação com um bicheiro e não com alguns. O plural é empregado para denotar banalidade ao ato, inferindo que fatos assim são corriqueiros no Planalto.
Uma outra observação, que pode não ser erro, mas induz decisivamente na interpretação dos fatos: deliberadamente, exclui-se da capa o fato de a conversa ter sido gravada em 2002, antes da eleição de Luiz Inácio Lula da Silva. Um observador desatento pode ser induzido a pensar que a cobrança de propina é algo atual, que continua acontecendo no quarto andar do Palácio do Planalto, ‘a apenas 70 passos e uma viagem de elevador do gabinete de Luiz Inácio Lula da Silva’, como detalha a revista.
Um dos preceitos do jornalismo é ser claro, objetivo. Regra que Época ignorou. Ora, se a fita ‘mostra’, como diz a chamada da capa, a negociação de uma caixinha de campanha, é de perguntar-se por que o editor não selecionou para colocar nos balõezinhos da primeira página o trecho em que Diniz menciona os nomes dos beneficiados ou dá detalhes do esquema. O que o vídeo revela, pelo menos ali, é o então presidente da Loterj acertando a sua parte: ‘Quero 1% prá mim’. No recurso emprestado das histórias em quadrinhos para identificá-lo, ele é tratado como subchefe de Assuntos Parlamentares da Presidência da República, cargo que não ocupava na época da gravação das imagens. Ouvi alguém gritar ‘sofisma’ por aí?
Fiquemos então com a possibilidade de o responsável pela primeira página ter cometido um erro de avaliação e aberto a revista com uma parte do diálogo que não justifique o olho. A próxima parada obrigatória é a ‘Carta do Editor’, o editorial da revista. Aqui, com certeza, as ligações entre Diniz e os políticos devem aparecer de maneira mais clara.
Ledo engano, a seção só corrobora a tentativa de complicar o Planalto com base em ilações, suposições, apostas: ‘Com base nestas evidências, não se pode dizer que o dinheiro do bicheiro foi parar nos cofres das campanhas do PT ou no bolso do Diniz‘. Não se pode? Apesar da consciência do erro, senhor Aluízio Falcão Filho, sua revista diz isto. Disse na capa e torna a dizer nas oito páginas internas: o dinheiro da propina foi usado para financiar campanhas eleitorais, duas delas do PT.
E a reportagem baseou-se em quê para envolver Magela e Benedita? Em deduções. Sem nenhum rubor, ou pudor, o próprio editor confessa, dando seqüência à ‘Carta’: ‘Vê-se apenas ele negociando com o contraventor. Mas é fácil imaginar qual foi o fim dessa história’. Imaginar? Então não há provas, evidências? A substancial reportagem é apoiada tão-somente na imaginação dos repórteres, capitaneados pelo ‘puro-sangue’ Andrei Meirelles, dono de dois prêmios Esso, como lembra o editorial? Embora seja muito ousado colocar em xeque uma reportagem feita pelo puro-sangue-Andrei-dono-de-dois-prêmios-Esso, há espaço para temer o texto, ainda mais quando escrito numa revista de um grupo que, há vinte anos, ‘imaginou’ que um dos mais substanciais dos comícios pelas Diretas-Já era parte apenas da programação pelo aniversário de São Paulo – e assim noticiou-o no Jornal Nacional, desde aquele tempo o mais influente do Brasil.
Os problemas da reportagem
À matéria. Depois de iniciar o texto com a reação de Diniz ao ser informado pelo repórter de Época de que o esquema de propina havia sido descoberto (ele ‘ficou com os olhos cheios d’água’), fica-se sabendo que, após tentar negar as imagens, o subchefe confessa: ‘levou dinheiro do bicho para a campanha eleitoral do PT’. Incrível que, apesar das oito páginas da reportagem e de três reproduções dos trechos gravados não há nada que possa comprometer um dos envolvidos: Benedita.
Perceba que não é o vídeo que incrimina o PT, mas a reportagem e a entrevista de Diniz. Sim, ele realmente ‘confessa’ (incrível a utilização desse verbo, já que só se confessam os próprios pecados e não os dos outros) o envolvimento de um petista (então seria um equívoco a capa dizer que o ‘vídeo mostra’; quem mostra é o pingue-pongue, feito a posteriori). O único candidato citado como beneficiário direto na entrevista é Geraldo Magela, que concorria ao governo do Distrito Federal. E não há nada que indique o valor da contribuição, segundo a revista de R$ 100 mil (de onde veio esta quantia? Não é da entrevista, certo? Ou, de novo, o editor suprimiu exatamente a parte mais contundente da história?).
Percebe-se, pelo pingue-pongue (que é cortado abruptamente, diga-se de passagem, num erro imperdoável da paginação), que o acusado tenta negar o que a imagem efetivamente mostra: que ele apela para um suborno para beneficiar a empresa do interlocutor numa concorrência aberta pela Loterj.
Embora Diniz, na entrevista, incrimine os petistas, em todos os trechos do diálogo reproduzidos, e acredita-se que os mais contundentes tenham sido escolhidos para a publicação, há apenas uma menção aos supostos beneficiados pela propina – e ela diz respeito ao ‘pessoal do Garotinho’ (Anthony Garotinho, na época da gravação governador licenciado do Rio, candidato à presidência da República e marido de Rosinha). Benedita também entra, mas não há referência à caixinha de campanha. Magela sequer é citado.
Apesar do ‘pessoal do Garotinho’ ser o único citado textualmente na gravação, a revista minimiza o envolvimento do ex-governador e sua mulher no esquema. Na entrevista a posteriori o repórter ‘esquece-se’ de mencionar a parte do vídeo onde ex-governador e sua turma são citados. Parece que há claro norteamento para que se envolva no escândalo apenas os integrantes do Palácio do Planalto. A intenção é atingir o PT, não os outros partidos – Rosinha foi eleita pelo PSB, mas já está no PMDB.
A gravação em vídeo mostra pouco ou quase nada do que a reportagem tenta provar e definitivamente não compromete nenhum dos petistas mencionados. Então, como deduz-se, a matéria bombástica de Época que está provocando dor de cabeça nos membros do Partido dos Trabalhadores instalados no Planalto baseia-se na memória e nas declarações de um bicheiro corrupto e na imaginação dos jornalistas das Organizações Globo. A fita é apenas o componente falacioso para conferir credibilidade à farsa que se pretende montar. Bem, não é pouco para levantar suspeitas sobre o conteúdo do assunto em questão.
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jornalista