Saturday, 23 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Mídia ferrou-se ao acreditar no oba-oba

Na qualidade de cidadão-torcedor (ou cidadão-sofredor), este Observador acompanha as Copas desde 1950 e, na condição de jornalista (de retaguarda), desde 1958 – portanto 13 Mundiais ao longo de 48 anos. Esta numerologia tem um motivo: lembrar que neste quase meio-século jamais a cobertura jornalística (ou midiática) foi tão mencionada como agora.


A cobertura da débâcle no Maracanã em 1950 também foi muito discutida. Retrospectivamente. Em trabalhos históricos ou acadêmicos. Na ocasião, a imprensa não discutia a imprensa, jornais digladiavam-se (e muito!) por causa da política ou interesses pessoais.


A imprensa nunca estava em questão. Agora está: a mídia entrou na pauta, aprendemos a discutir procedimentos jornalísticos com a mesma naturalidade com que os comentaristas se esgoelam a respeito de um pênalti discutível ou um esquema tático furado.


Só que a discussão começou quando já era tarde: os grandes erros da CBF já haviam sido cometidos, a euforia da mídia eletrônica já fora acionada, o delírio marqueteiro já estava no auge, os cadernos esportivos já estavam carregados de abobrinhas, moranguinhos e o hexa estava no papo, garantido.


Cenas ridículas


Aquela doidivanas suíço-brasileira que invadiu o campo para jogar-se em cima de Ronaldinho ocupou todas as primeiras páginas do dia seguinte ao primeiro treino. Não sobrou espaço para dizer que a seleção precisava de mais seriedade, mais disciplina. E menos badalação. Jogadores igualmente charmosos de outras seleções não se deixariam envolver numa encenação tão ridícula.


Discutir a mídia pressupõe um certo ânimo para romper o corporativismo profissional e eventualmente desagradar os/as coleguinhas. No país dos abraços e dos elogios fáceis, é difícil encontrar quem queira assumir o desagradável papel de crítico. Sobretudo, num ambiente restrito onde todos se conhecem, todos se encontram e todos se festejam. Em jogos locais, mesas-redondas e longas coberturas no exterior.


A deprimente exibição de superstição interpretada pela dupla Pedro Bial-Zagallo na véspera do nosso primeiro jogo só foi comentada no programa Observatório da Imprensa. Não foi Santo Antônio (tão invocado naquela edição do Jornal Nacional) que nos derrubou do pedestal, foi Tierry Henry. Ajudado decisivamente por este tipo de jornalismo-espetáculo, deletério, cuja única função é enganar o público com falsas emoções além de desmobilizar atletas e dirigentes.


O torcedor-sofredor também precisa de concentração, senão para jogar, pelo menos para cobrar e exigir. Quando os jornalistas mais experimentados começaram a mencionar nos seus despachos os excessos da mídia, o oba-oba já estava plenamente instalado. Tarde demais.


Faltou atitude?


Quando o locutor Galvão Bueno começou a reclamar ‘mais atitude’ ainda no primeiro tempo do Brasil-França, ele observava o fim de um processo irreversível, marcado pela saturação de informações irrelevantes, frívolas, acopladas a um ufanismo mundano, capaz liquidar definitivamente o conde Afonso Celso.


Não foram as apresentadoras Fátima Bernardes & Cristiane Pelajo que inventaram aquelas risadas antes mesmo de começar a falar. Os autores da artificiosa empolgação estavam bem intencionados, pretendiam criar na retaguarda um clima capaz de empurrar os quadrados mágicos para formidáveis goleadas e exibições de futebol-arte. Esqueceram de avisar os adversários. Futebol joga-se no campo, a torcida se mexe segundos depois, com delay.


Ninguém fala mais no Bussunda, mas ele avisou. Ao desaparecer tão prematuramente durante a cobertura de uma Copa recém iniciada, o alegre e verdadeiro Cláudio Besserman Viana mandava um recado à legião de inebriados e eufóricos – os fados e as fúrias estavam soltos.


Não houve um único jornalista mandado à Alemanha que não tenha inserido algumas palavras em alemão nas suas matérias. Pegava bem. Ninguém foi ao dicionário para saber como é que se diz Destino no idioma de Goethe – Schicksal, a própria palavra soa agourenta.


O estentórico oba-oba a abafou. Bussunda conseguiu no máximo diminuir o tamanho e duração das risadas das apresentadoras. Até o enterro, depois recomeçou a obrigação de rir.


Quando nossa sentença já estava assinada, alguns jornalistas mais temerários ousaram criticar a orgia de comerciais de TV nos quais os jogadores produziam dribles incríveis. Roberto Pompeu de Toledo na última Veja (Recomendações para a Copa de 2010) estabeleceu uma série de normas capazes de impedir que a rapaziada seja emasculada pelas fábulas de dinheiro que ganham logo que são convocados, antes mesmo de vestir a camisa da seleção.


Quem terá a coragem de armar uma cruzada contra este tipo de depravação do ânimo esportivo se as agências de publicidade e os publicitários amigos vivem exatamente deste desvario publicitário durante as Copas? Quem perguntará ao Banco Santander se aquela campanha milionária com alguns craques recitando toscas mensagens publicitárias teve algum resultado prático, quantos novos clientes foram arregimentados e qual o aumento efetivo da movimentação dos correntistas?


Livre desvario e tragédia na cozinha


No regime da livre iniciativa, os desvarios também são livres. Só que os desvarios publicitários dos grandes anunciantes durante a Copa desfibraram nossos jogadores, tiraram deles a gana de ganhar. Monetizaram os brios.


A cabeçada de Zidane naquele que o ofendeu é mais digna como reação humana do que a dos jogadores que, depois da derrota, resolveram comprar um fabuloso carrão ou foram meter-se em festas.


Nossa Copa foi um desastre, mas nossa cozinha (isto é, as redações dos grandes veículos) não ficou atrás. Os copiosos cadernos esportivos com as caravanas de caronas custaram fortunas e não trouxeram um único leitor/leitora novo/nova. Tiveram o mérito de revelar aos leitores a fragilidade e a precariedade de uma instituição despreocupada com a preservação de sua aparência e atributos.


A transferência de grandes articulistas para os cadernos esportivos desfigurou nossos jornalões, esvaziou-os perigosamente, ajudou governo e oposição a continuar exibindo as respectivas mediocridades. Durante cinco semanas tivemos jornais emagrecidos, abúlicos e anestesiados, incapazes de enxergar nossos verdadeiros inimigos.


A garra jornalística tirou férias, sequer conseguiu acampar nesses suplementos precariamente montados e que 24 horas após o término da Copa – à exceção do Estadão – evaporaram sem deixar saudades. O pior é que seus ‘âncoras’ estavam visivelmente assoberbados: para dividir custos, os melhores profissionais esportivos tiveram que dividir o seu tempo e sua atenção com biscates para outros veículos, blogs etc. E naqueles jornais que recusaram a desfiguração, dava dó ler nomes famosos enchendo lingüiça nas páginas nobres e mostrando uma ilusória proficiência nos cadernos da Copa.


Uma das melhores análises sobre o nosso fracasso foi escrito pelo psicanalista Renato Mezan (Folha, caderno Mais!, domingo, 9/7, p. 3). Custou uma ninharia e foi publicado longe das demais matérias. O acerto da decisão de publicá-lo desta maneira desvenda o desacerto de manter o rito de juntar alhos com bugalhos num caderno pseudo-esportivo.


Nossa mídia caiu na armadilha do oba-oba. Achou que podia enganar seu público com truques improvisados. Enganou apenas os jogadores que entraram em campo imaginando-se os melhores do mundo e saíram completamente desmoralizados. Talvez para sempre.