Quando os brasileiros puderam ver pela primeira vez o perfil do William Bonner, estavam presenciando o maior debate entre presidenciáveis, o derradeiro, o que levou Lula lá.
A emoção tomava conta dos corações alternativos, estudantis e até de alguns macacos-velhos do jornalismo. Salvando-se alguma exceções, a imprensa pobre, reportariado em geral, era petista ou coisa mais vermelha desde os tempos da faculdade. O povo já ressabiado de todo, crendo em qualquer samba de crioulo doido, já havia decidido apostar as fichas no macaco barbudo; afinal, vinha de baixo, era melhor finalmente confiar em alguém mais próximo do que nos bacanas de sempre. Além disso, as outras opções não chegavam nem perto do persistente Lula, que continuava olhando nos olhos da gente, argumentando sinceramente sobre a podridão das políticas econômicas de sucessivos governos, que acarretavam sempre na concentração de renda e em lucros só para os bancos, deixando a sociedade cada vez mais miserável.
Tudo o que podíamos pensar era que até a Globo havia se curvado em reverência para a esquerda e que até o Bonner era capaz de fazer perguntas vermelhas, como se tivesse estudado a fundo as idéias socialistas, como se acreditasse nelas e nos jovens, e na distribuição de renda e em todas as bobagens justiceiras que atravessam séculos e nunca deixam de ter um ar bestial, jovial, utópico em qualquer lugar do mundo.
Concentração em alta
Mas era ali, era verdade, a utopia da igualdade e da distribuição de renda era um desejo claro na voz do âncora da maior cadeia de televisão do Brasil; a mais engessada, a mais massificada, agora ao lado do povo e das idéias e ações que finalmente beneficiariam os sem-teto, sem-terra, os sem-em-geral. A turma do marketing não precisou fazer promessas mirabolantes e nem joguetes faciais como os dos velhos da velha república. Nós tínhamos o Lula para presidente, nós tínhamos a turma sincera do PT entrando com tudo e contando com o apoio da Globo. Dessa vez não haveria Collor, nem denúncia de última hora; era Lula lá com toda a certeza e não era necessário temer a felicidade que se avizinhava.
Ninguém pensou no pesadelo óbvio. Não era a Globo e nem o Bonner, como funcionário exemplar da emissora, que haviam passado para o lado de cá. Era o Lula lá e nós como fãs de um reality show.
Agora ele está lá no palácio aprendendo a ser rei, lá fazendo discurso a favor da distribuição de renda no mesmo dia em que os bancos anunciam o maior lucro de todos os tempos. Ah, mas que ignorantes somos nós, então não sabemos que lucros são boas notícias para o Brasil?
Sim, para o Brasil da macroeconomia, porque se os bancos estão com lucros altos, e bancos são os grandes concentradores de riqueza, então a concentração de renda está em alta, até porque os alimentos subiram de preço e os salários foram desvalorizados. Para um Brasil que tem um Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) às voltas para atender dívidas de emissoras nababescas, que destina menos de 5% do seus recursos aos 90% mais necessitados, micro e micríssimos empresários, aquele tipo de pessoa que necessita financiamentos via microcrédito, que existem aos montes no Brasil, e tudo o que deseja é montar uma lojinha para consertar bicicleta ou um carrinho de pipoca, só para deixar de ser mais um número na linha de montagem de alguma multinacional.
Desculpas aos radicais
Já dava tempo de sair do jogo se fosse mesmo de esquerda esse governo, mesmo que fosse de semi-esquerda, ainda que fosse de centro-esquerda. E nem os otimistas — eu fui das últimas a desistir — podem crer que essa plataforma rural e econômica dos EUA, essa máquina servil chamada Brasil, vai encontrar autonomia para estabelecer critérios sociais a partir de uma economia diferenciada, só porque está se juntando aos podres poderes de outros países pobres. O poder não corrompe, ele é a própria corrupção, encerra-se em si mesmo e basta-se a si mesmo.
A joint-venture entre o PT e a Globo foi mesmo um golpe de mestres do marketing. Parabéns a eles. A nós, vida de gado honesto com algum legado de algum ladrão menos esperto; vida de gado servil com nenhum legado de antepassados já explorados; vida de gado informal porque como legado herdou princípios e nenhum vintém ou, finalmente, vida de gado trambiqueiro imoral, ilegal, chupim do poder, piolho de rico, aquele que tem as costas geladas e faz o serviço sujo para o bacana se safar.
É uma desesperança imensa lembrar de alguns rostos sinceros, quase bondosos, que vinculamos à estrela que carregamos em nossas camisetas baratas, que grudamos no boné de nossas crianças.
Eu tentei, fiquei cega, muda e surda quanto as vozes universitárias começaram a gritar. Eu desdenhei, chamei a consciência de inveja, não queria acreditar, e até antipatizei com a ala radical. Minhas sinceras desculpas aos radicais. Esse PT que está aí não dá mais para defender.
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Jornalista