“Vários leitores fizeram reparos a alguns aspectos do trabalho jornalístico do PÚBLICO nos dias que se seguiram ao atentado bombista de Oslo e ao massacre da ilha de Utoya. Nem todos serão razoáveis, mas vale a pena referi-los, pelo que mostram de atenção e exigência face aos padrões de qualidade que os seus autores esperam ver reflectidos no jornal. Sem prejuízo de afirmar que, na minha perspectiva, a cobertura da tragédia norueguesa de 22 de Julho e dos seus desenvolvimentos honrou em geral esses padrões, com destaque para a importância dada a um olhar jornalístico próprio no terreno, assegurado ao longo da semana seguinte pelas reportagens de Joana Gorjão Henriques.
Entre as questões que me foram colocadas, considero especialmente relevante a preocupação manifestada pelo leitor Eusébio Paulino, que, em mensagem do passado dia 6, criticava ‘a forma como o PÚBLICO desde há duas semanas publica todos os dias a imagem’ do assassino, mas não as ‘das vítimas de Oslo ou dos seus familiares’. E manifestava particular ‘espanto’ por ter visto ‘na primeira página do P2’ de 5 de Agosto o que descreveu como ‘uma ‘magnífica’ imagem de Anders Behring Breivik [o autor confesso dos crimes], desta feita com direito a tratamento em photoshop’. Para este leitor, ‘o PÚBLICO dá assim o seu singular contributo para que mentes vulneráveis (nomeadamente jovens) passem da pura contemplação do belo para a idolatria do personagem retratado’, e ‘não espantaria saber que jovens portugueses ‘posterizam’ as belas imagens que o PÚBLICO oferece’.
Há nesta crítica alguns erros de facto e uma ideia que merece reflexão. Não é verdade que, no período referido, o jornal tenha publicado ‘todos os dias’ a imagem do assassino, longe disso. E só uma vez o fez com forte destaque na capa, na edição de 26.07, com aquela que se tornará provavelmente uma fotografia emblemática deste caso, mostrando Breivik numa viatura da polícia, a caminho do tribunal. E também não é verdade que tenha ignorado as imagens das vítimas, bastando referir que duas páginas da edição de 31.07 lhes são integralmente dedicadas. Alguma repetição desnecessária do rosto do criminoso poderá ter acontecido no noticiário publicado na Internet. Mas também aí, recorda a responsável pela edição on line, Simone Duarte, houve a preocupação de ‘homenagear as vítimas’, numa peça ilustrada que foi das mais consultadas ‘durante dias’.
Apesar das inexactidões referidas, creio que a mensagem de Eusébio Paulino coloca uma questão importante: a dos limites que a imprensa responsável, sem nunca esquecer a sua missão informativa, deve colocar à visibilidade (tanto da pessoa como do seu pensamento) de alguém que tem no impacto mediático desejado uma das motivações determinantes de um crime abjecto. De alguém que destrói dezenas de vidas como método de propaganda de ideias não menos abjectas. Parece claro que essa reflexão foi feita na redacção do PÚBLICO, como o atestava, logo na edição de 27.07, um artigo de Jorge Almeida Fernandes, intitulado ‘O homicida à procura de um lugar na História’, que vale a pena reler para entender como o propósito mediático e a busca da imitação são essenciais neste tipo de terrorismo, individual ou organizado, e como o seu maior ou menor sucesso ‘depende do tratamento político e mediático da tragédia’.
Creio que o jornal fez, no essencial, o que devia. Noticiou, procurou entender a natureza do crime e do seu contexto, analisou, ouviu peritos, deu especial atenção ao modo como a sociedade norueguesa reagiu ao massacre e às reacções diferenciadas que este suscitou nos meios da extrema-direita ocidental. Não serviu de amplificador ao manifesto ‘ideológico’ do assassino, limitando-se a referir com sobriedade os elementos que considerou úteis para caracterizar o indivíduo, os seus objectivos, métodos e delírios.
É neste quadro que vale a pena pensar se foi uma boa escolha editorial a que indignou o leitor, ao deparar com a capa do P2 de 05.08 ocupada pela imagem estilizada do rosto de um criminoso motivado por ideias nas quais, em maior ou menor grau, se reconhecerão sectores das sociedades contemporâneas influenciados pelo populismo xenófobo, contrário à matriz de valores civilizacionais que são reconhecidamente os deste jornal. Sem pretensões de afirmar certezas num tema que dividirá naturalmente sensibilidades — a começar pelo modo como se encaram noções subjectivas de beleza, e da estética do mal em particular —, creio que o efeito de ‘posterização’ temido pelo leitor constituiu um risco que poderia ter sido evitado.
Um outro leitor escreveu do Algarve para criticar um texto da edição de 24.07, o primeiro em que o PÚBLICO pôde já reconstituir o que se passara durante as horas de horror vividas na pequena ilha de Utoya. Numa peça assinada por Joana Amado, relatavam-se os momentos iniciais do pânico provocado pelo tiroteio: ‘As pessoas (…) não sabiam para onde fugir. Umas subiram às árvores, outras esconderam-se por detrás de pequenas elevações do terreno, muitas correram às voltas como se fossem baratas tontas. E outras atiraram-se à água (…)’. A expressão ‘baratas tontas’ chocou o leitor, que a considerou inapropriada à narração de ‘ acontecimentos tão trágicos’, vendo nela uma forma ‘desumana’ de os relatar, que desrespeitaria a dor dos ‘familiares e amigos das vítimas’. Pode entender-se a reacção e podem sempre esgrimir-se argumentos de gosto, mas considero injusta a crítica, que isola do contexto do relato uma frase que, na sua terrível eficácia descritiva, nos dá a ver com clareza o que se passou. Nada encontro nela que possa ser interpretado como significando menor respeito pelas pessoas envolvidas ou pelos leitores.
Questão diferente levantou Miguel Lopes, que considerou ‘tendencioso e mal fundamentado’ o texto intitulado ‘Podemos culpar Sarkozy, Merkel e Cameron pelo clima que provocou atentados de Oslo?’, assinado por Clara Barata na edição de 31.07. Na perspectiva deste leitor, que acusa a jornalista de ‘[dar] como factos as suas opiniões’, o modo tendencialmente afirmativo como a peça responde à pergunta formulada no título seria um ‘aproveitamento político de uma tragédia’, e a sua conclusão uma ‘extrapolação (…) absurdamente exagerada’.
Vejamos o que se escreveu. No primeiro parágrafo, a autora da peça define melhor a questão proposta no título: a de saber se o massacre na Noruega será ‘uma chamada à responsabilidade dos líderes europeus que (…) se renderam à retórica anti-imigração dos partidos da nova extrema-direita, em ascensão por toda a Europa’. E anuncia logo a conclusão: ‘A resposta aproxima-se a passos largos do ‘sim’’. O texto recolhe as opiniões de dois especialistas estrangeiros, mas é nas passagens directamente atribuíveis à jornalista que é mais claramente sugerida uma ligação entre as declarações de vários governantes europeus de direita ou centro-direita e as convicções do assassino de Oslo. Exemplos: quando afirma que no ‘manifesto’ de Breivik ‘[se] encontram ideias que soam a loucura, mas também outras que não andam assim tão longe das que temos ouvido na boca dos políticos europeus’, ou quando escreve que governantes como os citados no título ‘fizeram declarações que não terão sido mal vistas pelo terrorista norueguês’.
Não discuto a pertinência do tema, que é o da avaliação da existência de áreas de contacto entre o discurso de certos líderes da direita europeia (e não só da direita) sobre as questões da imigração e da integração e a ideologia xenófoba e radical de forças extremistas (que por seu lado não deverão ser resumidas às fobias e à lógica retorcida de um assassino impiedoso). E penso que essa pertinência está fundamentada em exemplos da história recente citados pela jornalista. Mas acompanho o leitor na ideia de que este não foi um bom exemplo de trabalho informativo. As conclusões que o artigo sugere teriam cabimento num texto claramente assinalado como de análise — ou de opinião, uma entre outras —, não numa peça paginada como sendo de tipo noticioso. Tendo sido essa a opção, impunha-se aliás uma maior abrangência na recolha de opiniões — e não seria certamente difícil encontrar especialistas credíveis dispostos a argumentar que não faz sentido ‘culpar Sarkozy, Merkel e Cameron pelo clima que provocou atentados de Oslo’. A melhor informação é a que dá o máximo de elementos aos leitores para formarem as suas próprias opiniões.
Registo, a terminar, o que a leitora Maria João Pires escreveu a 01.08 acerca de um comentário à peça acima referida publicado na edição on line: ‘Quando o PÚBLICO anunciou que ia moderar comentários aplaudi. Hoje esperei o dia inteiro que este tivesse sido aprovado por lapso, mas as horas passam e nada de desaparecer’. A leitora tem toda a razão em sentir-se defraudada face às expectativas criadas pela alteração do sistema de gestão dos comentários. É incompreensível que um texto como o que refere — não o transcreverei aqui, mas é uma pura manifestação de ódio xenófobo e um apelo brutal à violência — possa ter sido aprovado e ter permanecido em linha durante mais de uma semana nas páginas do PÚBLICO na rede. A responsável pela edição on line reconhece o erro ‘lamentável’ (‘a equipa que aprova comentários deixou escapar este, que claramente viola todos os nossos critérios de publicação’) e anuncia: ‘Em Setembro faremos um balanço interno destes primeiros meses de moderação de comentários e se for o caso reveremos procedimentos’. Creio que urge, de facto, fazer esse balanço.”