A construção da imagem de língua e de falantes nos veículos de comunicação é algo que diz respeito à sociedade já que a língua permeia todas as relações e pode ser usada como fator de preconceito. A revista Veja acredita que os brasileiros fazem um ‘bom’ uso ou um ‘mau’ uso da Língua Portuguesa (LP)? Baseada em quais parâmetros constrói a imagem de seu ensino nas escolas? Para encontrar as respostas, nessa revista de circulação nacional, buscaram-se textos que discutem questões afetas ao uso da LP pelos brasileiros.
Baseado nas teorias lingüísticas vigentes, os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs) evidenciam a lingüística ‘travestida’ pelo linguajar da equipe técnica do Ministério da Educação e Cultura (MEC). Neles, encontra-se o objetivo do ensino de Língua Portuguesa: espera-se que os alunos, ao longo dos oito anos do ensino fundamental, adquiram progressivamente uma competência em relação à linguagem que lhes possibilite resolver problemas da vida cotidiana, ter acesso aos bens culturais e alcançar a participação plena no mundo letrado. Enfim, proporcionar-lhes a chamada competência comunicativa (CC).
Esse objetivo pode parecer óbvio, entretanto, não o é. Para comprovar a sua não-obviedade, é preciso resgatar na memória algumas aulas tradicionais, como a descrita por Franchi, quando estava nas 7ª e 8ª séries (apud GERALDI, 1996, p.106-7, grifo nosso):
Propunha-se como objetivo fundamental dos estudos gramaticais e da redação, levar-nos, seus alunos, o mais próximo possível do estilo dos ‘mestres’. Um dos seus exercícios favoritos era o de ‘desmanchar’ pequenos textos do Eça e propô-los à reconstrução dos alunos. O campeão, premiado com a melhor avaliação e com a melhor posição na sala de aula (onde havia a ‘cabeça’ da fila, para o melhor, e o ‘rabo’, para o pior), era quem mais se aproximasse, ao refazer o texto, da versão original.
O relato, provavelmente familiar a muitos, traz à tona a questão da CC. O aluno realiza a tal atividade, mas posteriormente, em uma situação real de comunicação, encontra dificuldades em produzir ‘seu’ texto. A escola deve, para atender a esse objetivo de competência em relação à linguagem, formar alunos que sejam escritores competentes, que, de acordo com os PCNs (1997, p.47), são aqueles capazes de elaborar textos coerentes, coesos e eficazes; de reconhecer os objetivos de seu texto e selecionar o gênero de acordo com esses objetivos; de olhar para o próprio texto como um objeto e verificar se está confuso, ambíguo, redundante, obscuro ou incompleto; de revisá-lo e reescrevê-lo até considerá-lo satisfatório para o momento. Como bem lembra Travaglia (2002), o principal objetivo é que o aluno adquira a CC, que nada mais é que a capacidade do usuário de empregar adequadamente a língua nas diversas situações de comunicação.
Para a gramática a proposta dos PCNs (1998) sugere um direcionamento do ensino a partir da reflexão dos alunos, para se chegar ao conhecimento da metalinguagem, e não descrever incansavelmente as estruturas disponíveis, saturando os alunos de terminologias; prática que se revelou improdutiva.
Apesar de a escola ter embasado seu ensino na gramática tradicional (GT), as revistas e jornais têm trazido em suas páginas que os brasileiros precisam de aulas do idioma que é sua Língua Materna (LM). De que forma teria surgido o descompasso entre o que tradicionalmente se ensinou e o que é concretizado (na visão da mídia um português de baixo nível)? Há os que defendem o ensino não exclusivo de metalinguagem e os que acreditam que ela é a única forma de ter-se um domínio efetivo da língua. Os gramáticos acusam os lingüistas de uma permissão de ‘vale tudo’, que nega o direito do indivíduo de dominar um padrão lingüístico de prestígio que lhe traria benefícios, entre eles, a ascensão social. Afirma Possenti (1996):
…talvez deva repetir que adoto sem qualquer dúvida o princípio (quase evidente) de que o objetivo da escola é ensinar o português padrão, ou talvez mais exatamente, o de criar condições para que ele seja aprendido. Qualquer outra hipótese é um equívoco político e pedagógico (p.17).
E acrescenta ‘O equívoco, aqui, parece-me, é o de não perceber que os menos favorecidos socialmente só têm a ganhar com o domínio de outra forma de falar e escrever’ (p.18). Portanto, Possenti, recoloca a questão em seu devido lugar.
Concepções de língua e norma culta
Discutir as concepções midiáticas de língua e linguagem obriga a retomar as concepções comumente adotadas em divergentes linhas de estudo e que contribuíram na definição dos conteúdos e dos métodos a serem adotados na escola. São elas: concepção tradicional de língua, concepção estrutural e concepção interacionista (KOCH, 2003). A primeira considera a linguagem expressão do pensamento, logo, se as pessoas não se expressam bem é porque não pensam, ou não pensam bem, não conseguem organizar as idéias, segundo uma lógica. ‘A enunciação é um ato monológico, individual, que não é afetado pelo outro nem pelas circunstâncias que constituem a situação social em que a enunciação acontece’ (TRAVAGLIA, 2002, p.21). Na segunda, a linguagem é instrumento de comunicação e ‘a língua é uma estrutura disponível ao uso dos falantes, mas sobre a qual possuem reduzida atuação’ (KOCH, 2003). Nessa perspectiva, ‘a língua é vista como um código, ou seja, como um conjunto de signos que se combinam segundo regras, e que é capaz de transmitir uma mensagem, informações de um emissor a um receptor’ (TRAVAGLIA, 2002, p.22). A terceira considera a língua um lugar de interação de sujeitos ativos (KOCH, 2003). Neste a análise, optou-se por entender a língua dentro da terceira concepção, uma vez que as primeiras são possíveis, mas, indubitavelmente, redutoras dos fenômenos que constituem o ato de comunicação.
Já a questão da norma culta, recorrente na mídia, é bastante polêmica, porque, se antes, ela era um conjunto de regras que deveriam ser respeitadas sem discussão; se não havia questionamentos sobre a sua validade como modelo a ser seguido, eles surgiram com as descobertas e os avanços da Lingüística, que vem pôr em discussão inúmeros conceitos gramaticais, com tradição de mais de dois mil (2000) anos. Percebeu-se, assim, a relatividade do termo ‘norma’ acrescido do adjetivo culta: ‘Só o século XX vai balançar o prestígio da norma normativo-prescritiva. Remonta a vinte e três séculos o instalar-se de uma tradição de reflexão sobre as línguas que, ao mesmo tempo, busca a descrição e a correção lingüística’ (SILVA, 2002, p.15).
Mídia: Veja
O corpus deste trabalho é constituído de matérias de revista, veículo midiático de características muito próprias em relação aos outros disponíveis, como televisão e jornal, o que a obriga a constituir um diferencial:
O fato seco, o ‘aconteceu’, vai ao ar, pela televisão, na noite anterior – e, quando o fato é realmente importante, vai ao ar mais de uma vez na mesma noite. O rádio consegue, muitas vezes, anunciar o ‘aconteceu’ antes mesmo do anoitecer. Essa constatação não desobriga o jornal de reproduzir o fato seco, o mero ‘aconteceu’, mas, se ele se limitar a isso, estará sendo simplesmente um veículo amanhecido e sem graça, na medida em que seu ‘aconteceu’ não pode ser acompanhado de sons e imagens, embora possa ser mais rico em detalhes (ROSSI, 2000, p.38, grifo nosso).
A fala de Rossi refere-se aos jornais, no caso da revista há outra peculiaridade: a notícia já foi veiculada no rádio, na televisão e esmiuçada nos jornais, o que a obriga a também apresentar um diferencial de aprofundamento em relação a estes últimos.
Tradicionalmente, a revista Veja desfruta de prestígio entre seus leitores e para entender o porquê de certas posturas adotadas, pretende-se, primeiramente, entendê-la como um veículo de características peculiares ao jornalismo, o que determinará o resultado de tudo o que é trazido ao leitor.
É preciso lembrar também que a LP está inserida num contexto mais abrangente chamado educação e que este, de importância irrefutável, não consegue firmar-se na agenda setting dos veículos de informação no Brasil, como diz a Folha de S.Paulo em seu manual (MRF), o que certamente se enquadra também no caso da Veja ‘Existe um consenso, por exemplo, de que educação e saúde configuram o nó no desenvolvimento do país, mas a imprensa ainda não conseguiu articular enfoques que coloquem esses temas na ordem do dia (MRF, 2001, p.18, grifo nosso)’. O espaço, dessa forma, concedido a tais temas torna-se lamentavelmente menor em relação aos espaços dedicados a temas como política, ciência, atualidades, entre outros. Há carência, portanto, de um debate sólido e consolidador das experiências educacionais que se estende à discussão sobre o ensino da LP.
A revista Veja é a publicação semanal de maior prestígio no Brasil. Hernandes (2001) confirma as palavras da revista sobre ela mesma. Em números atuais, por ela mesma, na Carta ao leitor de 16 de julho de 2003:
Veja é a maior e a mais influente revista do Brasil. Com cerca de 1 milhão de assinantes e mais de 200 000 exemplares vendidos em bancas todas as semanas, firmou-se também como a quarta maior revista de informação do mundo em circulação (p. 9).
Existem, de acordo com Hernandes (2001), as pautas quentes e as pautas frias. O corpus selecionado para este trabalho é todo constituído de pautas frias, que tratam de assuntos que já tiveram um desfecho e não perdem facilmente a atualidade, uma vez que as quentes são as informações consideradas ‘furos’ de reportagem. Pautas quentes seriam, por exemplo, o acidente de helicóptero em que morreu a modelo Fernanda Vogel, o seqüestro do empresário Sílvio Santos, o atentado de 11 de setembro.
Limitações e desafios do jornalismo
As limitações impostas aos profissionais do jornalismo merecem ser levadas em conta e, uma das limitações mais incômodas, é a fragmentação das informações resultante da falta de espaço para um maior desenvolvimento das idéias. Muitas vezes, é feita a opção por uma visão panorâmica de um fenômeno que resulta em uma espécie de colcha de retalhos, cheia de informações, mas sem a profundidade que o tema poderia merecer.
Rossi (2000) aponta três limitações no exercício do jornalismo. A primeira limitação seria a pauta elaborada em função do que vem sendo publicado nos jornais, em uma espécie de auto-alimentação, e este seria o resultado de tal prática: ‘Em conseqüência, a pauta reflete apenas parcialmente o que está acontecendo ou quais assuntos preocupam, efetivamente, o público geral; ela acaba refletindo muito mais o que os jornais estão publicando e a televisão está mostrando (p.18)’.
A segunda limitação apontada seria a de que a pauta refletiria apenas a idealização das pessoas que trabalham nas redações e ‘não daquelas que estão em contato direto com os fatos ou as pessoas geradoras das notícias’ (p.19).
E a terceira seria a de que a pauta determina o trabalho e cerceia a liberdade do jornalista na elaboração de sua matéria ao ser discutida por um grupo reduzido de profissionais, em círculo fechado.
A elaboração de uma matéria, portanto, obedece a um processo hierárquico denominado verticalização, assim, o conteúdo expresso nas matérias sobre a LP deve ser entendido como uma postura do corpo editorial e não a visão pessoal do jornalista.
Rossi (2000, p.70-1) cita outras dificuldades que desafiam a prática jornalística: a generalidade e a especificidade exigidas pela profissão. Ele define o jornalista como um profissional que sabe de tudo um pouco e deve ser capaz de escrever sobre assuntos tão díspares quanto guerra, saúde, economia, urbanismo, energia nuclear ou LP.
Língua Portuguesa nas páginas de Veja
A revista Veja não apresenta coluna semanal ou mensal sobre o tema LP. Nota-se, um período relativamente grande entre uma reportagem e outra. Dentro do período de 1997 e 2002, foram encontradas treze reportagens sobre a LP. A baixa ocorrência pode ser explicada pelo fato de o tema não ser considerado notícia, por não figurar na agenda setting. Matérias encontradas:
1) Língua Enrolada – entrevista das Páginas Amarelas feita com o professor Pasquale, em 1997.
2) Nossa Língua Portuguesa – comenta um dicionário elaborado pela Academia Brasileira de Letras e suas incoerências.
3) Tupi or not tupi – reportagem que aborda a história, o ensino e a tentativa de resgate do Tupi.
4) Pequenos grampos, grandes negócios – sobre os destaques do ano de 98, entre eles, o professor Pasquale.
5) Fuja do ‘a nível de’ – nota que se propõe a dar dicas ao leitor.
6) Errar é divino – análise da questão do erro sob a ótica literária.
7) Nobre como Camões – de curiosidade histórica, pois traz a informação de que o português da população rural é, na verdade, resultado do português arcaico.
8) O Fim do Português – entrevista das Páginas Amarelas feita com Steven Fischer .
9) O Bom senso está on sale –foi produzida no auge da polêmica do projeto de lei de Aldo Rebelo.
10) Todo mundo fala assim – reportagem sobre o lançamento da Gramática de Usos.
11) O poder da Palavra – matéria de capa sobre lançamento do dicionário Houaiss.
12) Falar e escrever, eis a questão – capa.
13) Todo apoio ao MST – de autoria de Diogo Mainardi com declarações reveladoras de sua concepção de língua.
O que foi encontrado nas matérias
No primeiro texto, Língua Enrolada, prevalece a visão do gramático, no caso, do professor Pasquale. Infelizmente, a imagem de falante criada por suas declarações é a pior possível: A nenhuma pessoa é atribuído um ‘bom uso’ da língua, somos uma nação de maculadores da LP, desde os presidentes, passando pelos professores até chegar na população. Problemas de toda ordem são apontados.
No texto, Nossa Língua Portuguesa? prevalece a visão do lingüista, sem recair na prescrição, já que a matéria enfatiza a importância do uso e da freqüência de uma palavra na língua para ser admissível seu registro em dicionário.
Tupi or nor tupi explica o tupi como língua viva, assim como os recursos de que dispunha ou não, sem esquecer de sua natureza ágrafa. Todas essas características foram bem explicadas ao leitor que pode ter uma idéia adequada do processamento dos fenômenos lingüísticos.
Em Pequenos Grampos, grandes negócios, não houve espaço para prescritivismo, embora prevaleça a concepção de língua como expressão do pensamento por fazer uso da noção ‘erro’ como algo absoluto.
Fuja do ‘a nível de’, como discutido na análise, mostra a mistura das três concepções de linguagem, uma evidência de que o corpo editorial ‘flutua’ entre elas sem ter uma clara consciência de cada uma.
Errar é divino discute a norma culta e a necessidade – ou dever – de obedecê-la, ou não, dependendo dos efeitos de sentidos desejados. Mostra ao leitor a existência de perspectivas de língua/linguagem diferentes da GT. Embora trate com profundidade a temática, sugere ao mortal, enfim, a pessoa comum, que não há opção a não ser obedecer às regras.
Nobre como Camões deixa transparecer a concepção de língua dos lingüistas, reconhece as variações geográficas encontradas no Brasil e a noção de ‘erro’ como algo não absoluto.
Na entrevista O Fim do português prevalece a visão do lingüista Fischer, sem muita refutação por parte do jornalista, porém, observa-se que o entrevistador foi mais preparado para questionar, munido de dados e argumentos (atitude não tomada na entrevista de Pasquale), embora recaia em perguntas que o denunciam como leigo.
Em o Bom senso está on sale, mais uma vez a concepção de língua como lugar de interação prevalece. A revista usa armas de persuasão para desqualificar o projeto de Rebelo, chamando-o de proposta xenófoba associada à mentalidades autoritárias, ao nazismo, fascismo, ditadura e comunismo. Dessa forma, é a visão do lingüista subjacente ao texto.
Todo mundo fala assim recebe um tratamento adequado quando se propõe a explicar o projeto de confecção das gramáticas em questão. Desastre ocorre quando tenta opinar sobre ele e quando busca o parecer de Bechara. Contribui para criar a imagem do brasileiro como falante que desrespeita as regras do próprio idioma. Basta atentar para as escolhas lexicais: desvio, respeito, habeas-corpus, pecado, entre outros.
O Poder da palavra trata da saga dos dicionários e em tal propósito faz uso de concepções de língua coincidentes com as dos lingüistas, ou seja, entende a língua como lugar de interação. Mostra os fenômenos aos quais as palavras estão sujeitas, sem recorrer ao prescritivismo. As concepções de Webster mencionadas são o melhor exemplo da concepção de língua subjacente a esse texto.
Falar e escrever, eis a questão tem a pior abordagem de todas. Embora toque em problemas graves no ensino da LP, caso da redação, a matéria contribui em muito para criar uma imagem de usuários despreparados para falar e escrever na sua própria LM. A língua como expressão do pensamento é evidenciada em: ‘os brasileiros que tentam melhorar seu português estão também aprendendo a pensar melhor’. O conteúdo é todo permeado de prescritivismo e regras de bom uso. Critica-se uma ‘corrente relativista’ que, embora não denominada, supõe-se ser composta por lingüistas, refletindo, mais uma vez, a confusão teórica na qual a revista está embebida, porque diversas vezes usa concepções emprestadas da Lingüística. Seu ponto positivo é iniciar na mídia a importância do texto, assim como, sua adequação à situação comunicativa. Enfim, recai no senso comum.
Todo apoio ao MST, lamentavelmente, é outra que constrói uma péssima imagem de falantes de LP, de professores e escola. De acordo com seu autor, ‘está tudo nivelado por baixo’ e a prova são os encartes do professor Pasquale, que conferem a impressão de que nenhum brasileiro terminou a sétima série. Crítica, aliás, destoante da autoridade conferida pela revista ao mesmo professor.
Esta variação de visões, ora lingüística, ora gramatical, comprova a oscilação teórica à qual a revista está sujeita ao tratar do tema LP, sobre o qual, como diz Rajagopalan (2003, p. 8) ‘todo mundo acha que sabe – e sempre soube – muitas coisas […]’.
Os parâmetros usados para estabelecer a imagem de péssimo usuário da LP são sempre baseados na GT, como revelam estas palavras, comumente empregadas: normas gramaticais, crase, sintaxe dominante, escrita, erros gramaticais, colocação pronominal, expressar-se melhor… Com base nos parâmetros gramaticais, o brasileiro é um usuário que não sabe gramática, escreve mal e fala pior ainda.
Dessa forma, de acordo com a revista, a escola falha por não proporcionar a CC, objetivo das primeiras oito séries, porque mesmo profissionais que cursaram ensino superior não conseguem escrever adequadamente, a fim de atender suas necessidades cotidianas de comunicação. A competência textual passa a ser cobrada na revista, por ser cada vez mais exigida nas empresas. Na entrevista O fim do português, quando é perguntado ao lingüista sobre os e-mails: ‘Por que várias empresas proibiram seus funcionários de se comunicar usando e-mails?’; e na matéria Falar e escrever, eis a questão, quando comenta que a necessidade da escrita no trabalho fez surgir ‘adestrador’ de funcionários de empresas. A importância da competência na oralidade foi mencionada no texto Fuja do ‘a nível de’: ‘Num almoço de negócios ou numa entrevista de contratação, por exemplo, a maneira de se expressar é um cartão de visita. […] o candidato que comete erros graves de português pode até perder a vaga’.
Nas reportagens, percebe-se uma oscilação freqüente entre as concepções de língua/linguagem adotadas nas treze matérias, o que permite afirmar que o corpo editorial não tem uma postura objetiva sobre os fenômenos da linguagem e nem mesmo jornalistas especialistas para tratar do tema, a fim de manter uma mesma visão sobre os fenômenos idênticos. Quanto à autoria, convém atentar ao fato de que os jornalistas designados não se repetem, exceção para João Gabriel Lima, fato que pode explicar a oscilação de concepções:
Língua Enrolada (1997) – Mario Sabino;
Nossa Língua Portuguesa? (1998) – sem assinatura;
Tupi or not tupi (1998) – Bruno Paes Manso;
Pequenos Grampos, grandes negócios (1998) – sem assinatura;
Fuja do ‘a nível de’ (1999) – sem assinatura;
Errar é divino (1999) – Ivan Teixeira;
Nobre como Camões (1999)– Angélica Santa Cruz;
O fim do português (2000) – Eduardo Salgado;
O Bom senso está on sale (2000) – João Gabriel de Lima;
Todo mundo fala assim (2001)– Leonardo Coutinho;
O poder da palavra (2001)– Sílvio Ferraz;
Falar e escrever, eis a questão (2001) – João Gabriel de Lima;
Todo apoio ao MST (2002) – Diogo Mainardi;
De acordo com a revista, são responsáveis pelas falhas do ensino ineficaz de LP: professores, alunos, escola, metodologia de ensino. Em matérias diferentes a culpa é a todos esses fatores atribuída. Em Língua Enrolada e Falar e escrever, eis a questão, por meio da fala de Pasquale, os professores são tidos como competentes em pequeno número para atender à demanda no Brasil. A metodologia é criticada em Falar e escrever, eis a questão, quando se afirma que as aulas de redação são desvinculadas das reais necessidades dos alunos. Na mesma matéria, critica-se a escola, ruim, que não ensina gramática e a boa, que ensina gramática, mas não ensina a escrever com clareza e adequação.
Os problemas quanto à LP são resultado de um ensino que ‘falhou’, uma vez que, como é apontado, não proporciona a CC e, surpreendentemente, a revista sugere o mesmo velho caminho – ensino da GT – como solução. Dentre as matérias que discutem o papel da escola e os objetivos do ensino da LP, depreendeu-se que: 1) deve-se ensinar gramática e, depois, tudo o mais será alcançado.
Outra característica geral é que as reportagens nunca diferenciam as peculiaridades da fala e da escrita. Assim, qualquer ‘erro’ é condenado, sem considerar seu contexto de comunicação, os quais se repetem e criam uma redundância em relação ao conteúdo dentro da própria revista e em relação ao que a mídia comumente divulga, como a repetição para que se evite ‘a nível de’, gerundismo, constituindo-se numa espécie de auto-alimentação, limitação imposta pela pauta e apontada por Rossi.
Há semelhança de objetivos quando Neves (2002, p.231) afirma que ‘é papel da escola prover aos alunos a formação necessária à ocupação de posições minimamente situadas na escala social’, e quando a revista atrela o ensino-aprendizagem de gramática a uma possibilidade de mobilidade social. A diferença consiste no tom de promessa que tal conhecimento adquire nas páginas da revista ‘O que esses acadêmicos preconizam é que os ignorantes continuem a sê-lo. Que percam oportunidades de emprego e a conseqüente chance de subir na vida por falar errado’ (p.112).
Considerações finais
Eis, sucintamente, o resumo dos resultados: 1) Veja sustenta que o brasileiro faz um péssimo uso do idioma; 2) os parâmetros para estabelecer esta imagem são baseados na Gramática Tradicional; 3) a escola falha por não proporcionar a competência comunicativa e a revista sugere o mesmo velho caminho – ensino da Gramática Tradicional; 4) oscilação entre as concepções de língua/linguagem nas matérias devido à sua autoria; 5) são responsáveis pelas falhas do ensino ineficaz de Língua Portuguesa: professores, alunos, escola, metodologia de ensino; 6) não esclarece ao leitor as diferentes concepções de língua de estudiosos de acordo com a área de atuação; 7) não diferencia as peculiaridades da fala e da escrita; 8) redundância em relação ao conteúdo dentro da própria revista e em relação à mídia em geral, constituindo-se na auto-alimentação (Rossi); 9) a revista cria, ora uma imagem de língua estática, petrificada, imutável, ora uma língua sujeita aos falantes e às mudanças; viva, enfim; 10) não pode ser considerada uma representante do prescritivismo e dos gramáticos tão pouco da inovação dos lingüistas.
Portanto, o material lingüístico analisado permite inferir que, infelizmente, Veja sustenta a crença de que o brasileiro faz um péssimo uso do idioma e que precisa de aulas de sua LM para usá-la corretamente.
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Doutoranda em Estudos da Linguagem (Capes/UEL)