A leitura das manifestações de observadores que observam este Observatório revela que, mesmo neste espaço privilegiado onde se pode, com o devido respeito, discordar ou concordar diretamente em relação a tudo que é publicado, o teor dos comentários quase sempre se restringe a posicionamentos que repetem o embate político entre governo e oposição, painel que essencialmente define a pauta da imprensa nacional. Apenas um número reduzido de participantes contribui com informações que transcendem a mera opinião, e se trata quase sempre de um espectro restrito de opiniões.
É como se a maioria das pessoas, que aqui representam leitores de jornais e revistas e audiência dos meios eletrônicos, estivesse atada a um plano limitado de interpretação do mundo que nos é apresentado pela imprensa. O tom é conservador, no sentido em que o discurso em geral circula viciosamente num mesmo plano.
Esquerda ‘leviana’, direita ‘madura’
De modo geral, se observarmos a sociedade brasileira atual, percebe-se que estamos imersos num caldeirão de conservadorismo, especialmente quando colocamos o foco nas classes médias, ainda os clientes típicos da mídia. Esse conservadorismo é induzido e reforçado pela própria imprensa, que procura estabelecer os limites, a linguagem e os valores dentro dos quais a sociedade busca interpretar suas realidades.
Por outro lado, um rol de honoráveis e qualificados observadores da imprensa insiste em que não há um viés ideológico por trás das escolhas dos editores. Discordo. Há, sim, um debate ideológico no cerne do jornalismo, e jornalismo é, sempre, um exercício de apreensão de realidades, mas estruturado sobre uma tela ideológica. O que precisa ser melhor esclarecido é: de que ideologias estamos falando?
Claramente, os jornais brasileiros constroem essa tela de referenciais e valores com os fios de uma velha e antiquada teia, que define como ‘progressista’ o pensamento de ‘esquerda’ e como ‘conservador’ o pensamento de ‘direita’. Também considera que a ‘esquerda’ é leviana, irrealista, evasiva e irresponsável frente ao suposto ‘realismo’ e ‘maturidade’ do pensamento pragmático de ‘direita’. Esse rol de conceitos define, a priori, como a imprensa vai abordar qualquer decisão ou manifestação de personagens que estão classificados de um lado ou de outro desse campo de batalha.
Rever paradigmas
O erro dessa escolha tem muitos vieses. E talvez nem se possa afirmar que se trata de uma escolha consciente da intelligentsia jornalística. O que se pode afirmar é que a escolha da imprensa por esse espectro inflexível de paradigmas decorre de falta de ambição intelectual. A imprensa, em geral – aqui representada por seus líderes e principais ideólogos –, é intelectualmente covarde pelo fato de se negar a questionar seus próprios paradigmas.
Existe outro fator a limitar e condicionar essa escolha retrógrada: a intelligentsia da imprensa se mantém sempre alguns passos atrás do conhecimento científico, do conhecimento que nos permite compreender melhor o ser humano e suas sociedades. Essa definição acontece pelo simples e irrefutável fato de que, conhecendo e aplicando a realidade demonstrada pela ciência, a imprensa teria que rever seus paradigmas e adotar uma posição de flexibilidade, que a obrigaria a admitir uma diversidade de interpretações da realidade tão ampla que, em pouco tempo, teríamos uma imprensa absolutamente nova. Seu poder, evidentemente, seria diluído. Conscientemente ou não, ela foge dessa possibilidade.
A raiz dos erros
Uma das dificuldades de analisar a imprensa de uma forma sistêmica – ou complexa – decorre da percepção de que, por sua natureza limitada, por haver restringido as possibilidades de interpretação das realidades alguns passos atrás, no campo de batalha das velhas ideologias, essa análise será inevitavelmente limitada pela linguagem viciada e pela visão de mundo estreita (em relação aos fatos que a ciência já esclareceu nas últimas décadas).
Um exemplo? A imprensa sempre interpreta as diferentes realidades de um ponto de vista fixo, inalterável. Ela não se desloca de seu pedestal para observar de perto, por exemplo, os fatos que ocorrem na periferia dos sistemas sociais, políticos ou econômicos. Oferece regularmente a mesma visão para toda espécie de fenômeno ou evento noticiável.
Essa é, provavelmente, a raiz de erros como o caso da Escola Base, ocorrido em março de 1994, quando a imprensa de São Paulo, com exceção do extinto Diário Popular, validou automaticamente uma denúncia infundada de abuso sexual contra crianças e destruiu a reputação de seis cidadãos inocentes.
Evolução da consciência
Esses erros acontecem provavelmente porque, ao abordar temas e fatos heterogêneos utilizando uma visão inflexível, sobram possibilidades de interpretação desses fatos que não serão naturalmente considerados pelo jornalista. Um exemplo? Apresente uma pauta a um jornalista sobre a pirataria na informática. Depois que a reportagem estiver pronta, evidentemente condenando os ‘piratas’ de forma liminar, comente que, sem a pirataria, não existiria a informática como a conhecemos hoje, pelo simples fato de que uma imensa quantidade de produtos, softwares e recursos de toda ordem não teriam tido escala para acontecer comercialmente. Esse cândido comentário seria suficiente para dar um nó na cabeça do jornalista, pois rompe a matriz ‘homológica’ do seu pensamento.
Voltando à questão das ideologias, que é onde tudo começa e através da qual se explica a crise da imprensa, é preciso observar que a ciência – especificamente o cruzamento transdisciplinar da biologia, da psicologia, das neurociências e da física – já produziu, há pelo menos duas décadas, conhecimento suficiente para enterrar essa visão de mundo baseada no conflito ‘esquerda’ versus ‘direita’. Ambos os lados desse campo de batalha lutam, na verdade, no mesmo exército. Ambos combatem a inteligência, resistem à evolução da consciência humana e reagem a qualquer tentativa de transferir o estudo e a busca de soluções dos problemas humanos para o círculo de interpretações exterior a essa arena medieval. Porque eles só são relevantes nesse espaço restrito.
Realidade configurada
O verdadeiro conflito ideológico, aquele que vai definir nossas chances de criar sociedades melhores e sustentáveis, acontece verticalmente, se considerarmos, como metáfora, que o campo de batalha no qual a imprensa se movimenta é um plano circular. O conflito ideológico real se dá quando o pensamento enraizado nesse plano tem que interpretar realidades que se movimentam de maneira imprevisível, em elipses transversais que atravessam esse campo. Se tivesse a coragem intelectual para se despregar desse plano linear, a imprensa desenvolveria a capacidade de interpretar de uma forma mais rica essas realidades, contemplando uma gama mais ampla de sua diversidade.
A sociedade e as realidades que ela cria, bem como o chamado mundo natural, existem e operam em planos tão diversos que ninguém é capaz de observá-los completamente. Ora, já se sabe desde Albert Einstein (1879-1955) e seus contemporâneos que a realidade pode se configurar, relativamente, dependendo do observador. Imagine-se uma bola de cristal com milhões de partículas girando continuamente, em velocidade extrema. Cada um desses eventos, identificado individualmente num flagrante hipotético, pode ser considerado partícula ou energia, de acordo com o observador.
Premissas irreais
Mal comparando, a sociedade que a imprensa pretende interpretar se comporta de maneira semelhante. Portanto, cada retrato pintado pela imprensa a partir de um olhar estático é um retrato falso, porque considera apenas uma das inúmeras possibilidades. Ao tentar impor essa visão linear à totalidade social, a imprensa está vendendo a fração pelo todo, está retratando uma cena tridimensional sem visão de perspectiva.
No caso das sociedades, objeto central das ocupações da imprensa, bastaria recorrer à proposta do zoólogo evolucionista britânico Richard Dawkins, segundo a qual a consciência dos indivíduos evolui em ondas, por estágios que ele chama de ‘memes’. Claro que, como toda tentativa de definir complexidades como o processo evolucionário humano, a tese de Dawkins esbarra em muitas polêmicas. Mas, em geral, a psicologia do desenvolvimento aceita essa expressão como plataforma para a análise da evolução das consciências.
Ora, se vivemos a realidade da globalização, na qual cada indivíduo é permanentemente exposto à diversidade planetária e, ao mesmo tempo, cumpre seu papel de observador e protagonista dessa mesma diversidade, estamos claramente lidando com o cruzamento e convivência constante de ‘memes’ muito diferentes entre si, ou seja, de estágios extremamente diversos de consciência. Além, é claro, de tudo que advém das realidades criadas por cada um desses ‘memes’, ou seja, as crenças e valores, o grau de individualidade ou de interatividade, a propensão ao egoísmo ou ao comunitarismo, o que é tido como ilusão – que poderíamos definir como a projeção de possibilidades baseadas em premissas irreais – ou como utopia (vista como a projeção de possibilidades baseadas em premissas reais, cientificamente comprovadas).
Referência melancólica
A imprensa não enxerga esse contexto de múltiplos planos se entrecruzando. Certamente é por essa razão que não consegue explicar satisfatoriamente fenômenos como o terrorismo contemporâneo, colocando tudo sob o velho prisma de uma visão ideológica antiquada e classificando todo fenômeno ‘ininteligível’ como resultado da irracionalidade de seus protagonistas.
Ao se agarrar desesperadamente ao campo linear e plano de uma batalha ideológica que já não contempla a diversidade do mundo, a imprensa contribui para restringir as chances de evolução das consciências. O leitor que, ao comentar um artigo deste Observatório, interpreta toda crítica ao governo federal como um ‘ataque das burguesias aos interesses do povo’ está claramente algemado a esse nível limitado de interpretação da realidade. Da mesma forma, aqueles que reagem como cães raivosos a qualquer observação favorável ao atual governo, ou à distribuição equânime das responsabilidades pelas mazelas nacionais aos protagonistas da política que hoje estão na oposição, é também escravo desse círculo de desinteligência.
Para chegarmos a algum lugar, como nação e como indivíduos, precisamos entender aquilo que limita nossa capacidade de interpretar o mundo. Se a imprensa não ajuda, existem livros, filmes, peças de teatro, músicas e aquelas pessoas com as quais trocamos amenidades todos os dias. Se a imprensa um dia despertar para o imenso mercado que floresce com as novas consciências, haverá um lugar para ela no futuro. Caso contrário, ela vai se tornar uma melancólica referência do passado.
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Jornalista