O jornalismo ficou órfão com a morte de Ryszard Kapuscinski, na quarta-feira (24/1), em Varsóvia (Polônia). Pode ser colocado, sem favor algum, entre dos dez maiores repórteres da história do jornalismo, o derradeiro representante da forma romântica de buscar e divulgar as informações. Perto dele os outros grandes do estilo se apequenam, parecem crianças de maternal que tentaram ombrear-se com um catedrático universitário. Chegou bem perto de receber o Prêmio Nobel de Literatura por sua dezena de livros, que são na realidade grande reportagens contando a história de povos e de viagens.
Kapuscinski nasceu em Pinsk, na época Polônia, hoje Bielorússia. Fez sua primeira viagem à Índia em 1956, integrando um grupo de jovens comunistas. Trabalhou durante um tempo num jornal polonês e, quando este foi fechado pelo governo, passou a ser jornalista de agência de notícias – assim poderia escrever o que quisesse, sem censura.
O jornalista Paolo Rumiz, o diário italiano la Repubblica, dá o depoimento de como conheceu Kapuscinski e o que lhe foi dito. O encontro ocorreu em 1999, no aeroporto de Zurique. A primeira surpresa foi a figura do repórter: Paolo esperava encontrar um homem que aparentasse a força de seu trabalho, algo como um Indiana Jones, mas o que viu foi um homenzinho agitado, com passos tortos, um olhar indiferente e aparência frágil.
Para não errar de pessoa teve que consultar a contracapa do livro que trazia debaixo do braço, Viagens com Heródoto, no qual havia a fotografia de Ryszard. Era ele, lá estava o herói que havia desafiado o inverno ártico e a malária do trópicos, que havia assistido a 27 revoluções, atravessado a África e a América do Sul em guerras, vivido o grande gelo da Rússia soviética e o despertar do islamismo.
Lá estava o autor de Ébano, obra-prima sobre a força e a fragilidade do continente africano, que havia escrito Império, um testemunho vivo sobre a queda da União Soviética, que tinha fotografado a deposição do Xá da Pérsia e o advento do aiatolá Khomeini; o repórter que conseguira entrar nos segredos da corte do último imperador da Etiópia, contar histórias de Heródoto, antigas de dois mil anos e compará-las com eventos atuais.
Durante o vôo de Zurique para Milão, Paolo percebeu que o repórter sempre agradecia às aeromoças por qualquer coisa que faziam e este explicou: ‘A nossa profissão depende dos outros, caso não se tenha respeito por eles, as portas se fecharão’. Geneticamente era incapaz de criticar quem quer que fosse. Corria uma historinha na Polônia, que ao lhe ser solicitada a opinião sobre Hitler, respondera: ‘Não era uma boa pessoa’.
Imundices do mundo
Rumiz o encontrou outras três vezes, uma destas em sua casa na área do gueto de Varsóvia, que não mais existia. Morava numa mansarda cheia livros, cada parede de estantes representava um continente. Explicou que não gostava de panoramas: ‘A beleza me distrai. Para escrever faz-se necessário trancar-se numa cela como os monges. Nada de panoramas, devemos ficar sem distrações, sozinhos com a memória: Cervantes escreveu Dom Quixote quando estava encarcerado, não é? Eu me limito a encerrar-me na minha mansarda’.
Não gostava de dar entrevistas. ‘Muitos me pedem para fazê-lo e eu pergunto: sobre o quê? E, então, me dizem: qualquer coisa. Aí eu me zango. Eu não sou um bicho exótico, não quero ser dado como pasto para as pessoas; o público tem o direito de ser informado e eu estou a serviços das pessoas’.
Na hora do almoço encontrou também motivo de externar seu pensamento. ‘Deve-se comer com a gente que se descreve. Passar fome com eles. Identificar-se ao extremo. Partilhar tudo, também na África onde não há nada, onde a natureza é uma tirana que te arrebenta. Este é o segredo da reportagem. Quando estava na África nem telefonava para casa, não queria me tornar um outsider‘.
À chegada de um grupo de estudantes de jornalismo, ele encerrou a conversa com mais uma amostra de sabedoria: ‘Se querem seguir a carreira, vocês não podem ignorar os pobres: representam o 80% da população do planeta. As mais desafortunadas são as crianças. Ricas supernutridas e enjoadas de uma parte e infelizes, da outra. De todas as imundices do mundo, essa é a que mais me ofende’.
Com a morte de Ryszard Kapuscinski, a cada vez mais escassa inteligência mundial perdeu um de seus mais lúcidos representantes.
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Jornalista