O TREM – em cujo manual de redação está escrito: “Só entreviste quem tem o que dizer”, exotismo na imprensa mineira – puxou papo com Pedro José Martinelli, um dos maiores fotojornalistas do mundo. Paulista de Santo André, já cobriu guerra, morte de papa, eleição de outro, golpe de estado, Olimpíadas, Copas do Mundo e buraco de rua.
Em 1970, integrou expedição à Amazônia, onde sentiu a maior emoção no ofício ao fotografar o primeiro encontro de um índio Panará com o homem branco – na página seguinte, ele escreve sobre essa aventura vivida ao lado dos irmãos Cláudio Villas Bôas e Orlando. Nunca mais se afastou da grande floresta, por ele retratada em livros como Gente x Mato, o mais recente, lançado em 2008 pela editora Jaraqui.
Os olhos e a lente do fotógrafo são mais eficientes que o Sistema de Vigilância da Amazônia (Sivam) e há até um método Martinelli de contar a devastação da Amazônia. “Na década de 1970”, ele narra, “quando eu voava de Brasília para Manaus, marcava o tempo de mata contínua sobrevoada, sem vestígio de gente. Do último ao primeiro vestígio avistado, eu contava 1h50 de voo sobre uma floresta densa, sem risco de estrada ou brilho de telhado de zinco. Recentemente, viajei num dia claro, sem nuvens, e contabilizei apenas quarenta minutos de mato contínuo”.
Quando ele desistir da Amazônia ou a floresta morrer, o que ocorrer primeiro, bem que poderia apontar a máquina para os imensos estragos que as mineradoras fazem no Brasil, especialmente em Buracos Gerais, digo, Minas Gerais. “Sei como é”, diz o fotojornalista, “já rodei por essas minas. E as estradas ao redor dessas minas, então? É um carreiro interminável que parece cinzas de vulcão. Não respeita cidades, nada”.
Entre os prêmios importantes que venceu está o Esso de Jornalismo na categoria Informação Científica, Tecnológica e Ecológica, em 1996. Trabalhou em redações importantes como as do jornal O Globo e da revista Veja. De 1983 a 1994, dirigiu o setor de fotografia da Editora Abril. Desde 1994, atua independentemente.
Fim do fotojornalismo, Brasil e Amazônia são alguns dos assuntos de que fala Pedro Martinelli em entrevista exclusiva aO TREM. Se pudesse dizer algo a todos os brasileiros simultaneamente, bradaria, referindo-se à maioria dos políticos: “Os ladrões estão ganhando o jogo. Pega ladrão, pega ladrão”.
Digamos que inventaram uma máquina pela qual é possível falar e ser escutado simultaneamente por todos os brasileiros. Se fosse usar tal estrovenga para falar uma ou duas verdades urgentes sobre o Brasil, o que todos escutaríamos?
Pedro Martinelli – Diria para o Brasil que os ladrões estão ganhando o jogo e gostaria que essa estrovenga fizesse ecoar pelo Brasil afora, começando por Brasília, como nos países árabes fazem na hora da reza em alto-falantes espalhados pelas ruas, uma frase do tipo: pega ladrão, pega ladrão. E gostaria muito de ouvir da máquina que o Brasil parou de empilhar gente em cima do esgoto e do lixo.
Como crítico do atual jornalismo brasileiro, o que mais o desagrada?
P.M. – A perda de referência dos que estão dentro das redações hoje. Se editores, redatores e fotógrafos fossem ao arquivo e folheassem o Jornal da Tarde dos anos 1970, eles morreriam de vergonha do jornal que fazem hoje. Pior, não têm coragem de pegar o dono do jornal pelos colarinhos e brigar por um bom jornalismo. Estão acomodados.
O fotojornalismo é mesmo ofício em extinção, como declarou recentemente, ou foi só um desabafo seu?
P.M. – Não, nas minhas contas, acabou. A não ser que se considere fotografar saída de boate, e que se considere prato de comida cobertura. Olhe só, o futebol sempre demandou, enviou equipes e teve espaço garantido nos jornais. Este ano, o Brasil foi campeão do mundo de futebol sub-20 e os dois grandes jornais de São Paulo não tinham fotógrafos na Colômbia. Publicaram a mesma foto na primeira página, da Agência AP. Isso acontece quase todo dia, mas ninguém sente diferença nenhuma. Bom, não precisa ir longe: os dois grandes de São Paulo, Estadão e Folha, chegam juntos à minha casa. Acabou o tesão.
Se o jornalismo brasileiro fosse melhor, o Brasil seria melhor?
P.M. – Sem dúvida. Repórter informado na rua, rodando, fuçando, enchendo o saco, questionando, só é ruim para a ladroagem, para a picaretagem que cresce a cada dia. O jornalista de hoje não começa como repórter que precisa aprender a cavoucar a notícia. Vive na redação, na frente de um computador, vira colunista e é especialista no copy e cole, não tem ponto de vista. Quando sai – vai para a Amazônia, por exemplo –, é atacado pelo deslumbramento e vira um banana, não consegue desviar o olhar do óbvio, se encanta com os clichês exóticos e é incapaz de perceber que, durante o tempo que ficou na cidade, teve que pular um metro de esgoto na frente do hotel para pegar o táxi.
Você conhece bem as redações e a selva. Onde há maior perigo?
P.M. – Tenho saudades das redações por onde passei. Foram os melhores momentos da minha vida. Estive cercado por grandes companheiros e tive muita sorte, porque sempre tive colaboração e ajuda dos amigos. Foi a minha grande escola de jornalismo.
Você disse que gosta do Brasil em preto e branco. Por quê?
P.M. – Eu me expliquei mal, pisei na bola. Gostar é uma coisa, mas, quando você trabalha com informação, não dá para abrir mão da cor. Cor é informação e, como jornalista, seria burrice não facilitar a vida do leitor. Para a Amazônia, eu disse que prefiro preto e branco porque ela é monocromática. Quando se navega em um rio de água barrenta e o céu está nublado, entre os dois está a mata, que é uma faixa verde. Essa cena é um breu só. O preto e branco resolve a vida, posso deixá-la mais romântica, por exemplo. A cor é explícita, óbvia, mostra o que o olho de todo mundo vê e eu tenho que expor corretamente para manter as cores originais, se não ela perde o sentido. Com preto e branco, não. Posso interferir, abusar, de acordo com a minha interpretação, acho mais elegante.
Você fotografa a Amazônia desde a década de 1970. Como está a situação: a grande floresta vai mesmo virar deserto ou está mais otimista?
P.M. – Se virasse deserto limpo, tudo bem, mas, pelo que tenho visto nos últimos 40 anos, será bem pior. Será o maior deserto de esgoto a céu aberto do mundo, com os rios entupidos de lixo boiando, como a gente vê com os rios Tietê e Pinheiros, que cruzam a cidade de São Paulo.
Pauta: quando se cansar da Amazônia, que tal fotografar os estragos brutais que as mineradoras fazem no Brasil? Minas Gerais, por exemplo, está sendo toda carcomida, é uma buraqueira só.
P.M. – Sei como é, já rodei por essas minas. E as estradas ao redor dessas minas, então? É um carreiro interminável que parece cinzas de vulcão. Não respeita cidades, nada, com caminhões circulando dia e noite. Em compensação, é o único povo que não perde o contato com o mato, com a roça. O mineiro jamais perdeu de vista o Brasil brasileiro, o resto vive cada vez mais da caricatura de um país.
Conte-nos, por favor, uma boa história, para cima, impactante, vivida por você em sua trajetória fotojornalística.
P.M. – Acho que a melhor história da minha vida é a do contato com índios gigantes, os Kranhacãrore, hoje Panará, feito pelos irmãos Villas Bôas na década de 70.
Esse incrível contato com o índio Panará, na Amazônia, foi a cena mais marcante que viu ao vivo?
P.M. – Foi, sem dúvida, essa é a história da minha vida.
Como lida com esse ferro perfurocortante chamado saudade? Das brincadeiras quando criança, das ruas do bairro onde nasceu, da primeira máquina de fotografar, das andanças com seu pai…
P.M. – A fotografia pessoal que faço, essa de documentação na Amazônia, mexe com tudo isso. Estou sempre fotografando as coisas que me afloram, as saudades, as coisas e objetos da minha infância. Tem luz que vi com meu pai no mato que não esqueço até hoje, e eu não era fotógrafo, mas registrei, quero dizer, fotografei sem câmera, e, quando encontro essa luz, cravo e me lembro do meu pai, vejo o matão daquela época, escuto o pio do macuco, como se estivesse lá com ele.
Dizem que o homem, a partir dos 40 anos, vai aprendendo que são poucas as coisas que realmente importam. Além de estar vivo para fotografar, quais as coisas que realmente importam?
P.M. – Noves fora estar vivo, bater perna e fotografar, eu puxei para minha mãe: quero paz e silêncio. Ah, fogão a lenha e minhas cadelas.
Fale sobre sua paixão pela fotografia.
P.M. – A melhor coisa da vida era pode andar por aí com uma Leica e TRI-X, a combinação perfeita e discreta da fotografia. Fotografar o mundo como cidadão e não fantasiado de fotógrafo. Eliminaram esse ponto de vista e o mundo ficou mais micho, só tem gente com bermuda no meio da canela, tênis desamarrado e boné para trás.
Se tivesse um tique violento e cismasse de dar um chute na bunda de um político brasileiro, quem sentiria nas nádegas o duro couro de seu sapato?
P.M. – É muita gente. Gostaria de dar tiro de sal grosso na bunda deles.
“Nós, fotógrafos, somos batedores de carteiras. Com a foto, tiramos coisas das pessoas. Mas furtamos para dar.” Por gentileza, comente a fotofilosofia do francês Henri Cartier-Bresson.
P.M. – É isso. Acho que viajamos, andamos e trazemos um ponto de vista sobre o lugar onde estivemos. O que está acontecendo hoje é que tem câmeras espalhadas por todo lado e as novidades acabaram. Hoje, a foto sai, não tem mais erro, e todo mundo fotografa tudo. Arrumar um ponto de vista hoje, diferente da montanha de lixo que se apresenta diariamente na mídia impressa e eletrônica, ficou difícil. Se o fotógrafo achar que é a linda câmera digital dele que vai resolver o problema, está morto.
Você cobriu guerra, golpe de Estado, Olimpíadas, Copas do Mundo e eleição de papa. Para os fotógrafos em início de carreira, ainda a mirar buracos de rua e a clicar treinos do Bangu, como chegar lá? Receita Martinelli, por favor.
P.M. – Fotografar buraco de rua é muito mais produtivo porque é serviço, é efetivo, enche o saco dos administradores públicos.
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Primeiro encontro de um índio Panará com o homem branco
Pedro Martinelli
Em fevereiro de 1973, um pequeno avião militar pousou numa precária pista na divisa do Mato Grosso com o Pará. Ao sair do avião, uma deslumbrante parede de mata virgem se levantava aos meus olhos. Caminhei dois dias até alcançar a expedição dos irmãos Villas Bôas. Na minha mochila: uma rede, cobertor, mosquiteiro, uma muda de roupa, havaianas, prato, colher, caneca, canivete, filmes e um pacote com muito dinheiro. Grudadas no meu corpo, duas Nikon F e lentes 35mm, 85mm e uma 85-250mm. A minha missão era fotografar o primeiro e iminente contato com os índios Kranhacãrore, que o avanço da estrada Cuiabá-Santarém tinha tornado inevitável.
Eu já estava nessa empreitada desde agosto de 1970. Passaram-se quase três anos e, dos índios gigantes, ainda tínhamos poucos indícios. À espera do contato, fotografava o cotidiano da expedição, a construção dos campos de pouso, acompanhava as caçadas, subia e descia o rio, pescava. Me sentia no paraíso. Mas o que eu gostava mesmo era de sentar junto à rede do Cláudio e ouvir as intermináveis e deliciosas histórias de outros contatos. Depois, na minha rede, ficava pensando em como seria o “nosso” contato, e imaginava as fotos que faria.
No dia 7 de fevereiro de 1973, aquele gigante de corpo negro saiu do mato como um relâmpago, justo na hora em que a nossa canoa atravessava uma corredeira e o fundo do casco tocava as pedras do meio do rio. Tomei um susto e, meio desequilibrado, disparei. Foi o tempo de fazer uma chapa meio tremida, muito pouco para quem aguardara três anos por aquele momento. Os índios estavam agitados, desapareciam e gritavam no mato, batiam com os facões nos troncos das árvores. Calmamente, Cláudio e Orlando desembarcaram e foram no rumo deles, se aproximando aos poucos, até se tocarem. Pronto, estava feito o contato. Os índios da minha canoa remavam desesperadamente para manter o prumo, quando o gigante saiu do mato pela última vez, olhando para nós. Dessa vez eu fiz uma chapa. E, enquanto eu transportava o filme, ele entrou no mato sumindo para sempre. Quadro cheio.
De volta ao acampamento, antes de atracar no barranco, os índios, que estavam em total euforia, começaram a saltar da canoa, que começou a balançar e virou comigo, as câmeras e os filmes. Desastre. Pensei que tinha perdido tudo. Mas os índios conseguiram tirar os filmes da água. De Cuiabá, enviei-os para o Rio de Janeiro, onde, antes de serem revelados, eles foram colocados em uma banheira com água para amolecer a gelatina. Enquanto isso, no hotel Santa Rosa, eu aguardava ansioso notícias do meu chefe Erno Schneider, d’O Globo. Na época, não havia ligação direta, e ele deixou o seguinte recado com a telefonista do hotel:
“Martinelli, gaste todo o dinheiro que você tem, é primeira página”.
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[Marcos Caldeira Mendonça é editor d’O TREM Itabirano (Itabira, MG)]