Saturday, 23 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Um atraso de três séculos

Durante três séculos, a coroa portuguesa foi rigorosa e persistente em seu esforço para impedir que a palavra impressa perturbasse sua colônia da América. O primeiro livro em língua portuguesa publicado no Novo Mundo, o D.O.M Luzeiro Evangélico, não foi escrito no Brasil, mas em “S. Thomé cidade da Índia Oriental no ano de 1708”, pelo franciscano João Bauptista Morelli de Castelnovo, como se lê na capa. Também não foi estampado no Brasil; foi “impresso em México, cidade da Índia Ocidental no ano de 1710”.

O livro não poderia ter sido impresso no Brasil porque a corte de Lisboa proibira a instalação de prelos na colônia. Tinha medo das consequências. Controlava também a entrada de obras impressas, numa tentativa, nem sempre bem-sucedida, de manter o país à margem das novas ideias e das correntes culturais que circulavam na Europa. A metrópole também dificultava a divulgação de informações sobre o Brasil no exterior, para não excitar a voracidade das outras potências.

Depois que Johann Gensfleich zum Gutenberg fundiu letras e caracteres avulsos num molde metálico e imprimiu a Bíblia, em 1456, a imprensa se espalhou rapidamente pela Europa. Em 1466, foi impresso o primeiro livro na Basileia, em 1467 em Roma, em 1468 em Paris, onde enfrentou a resistência dos seis mil copistas da cidade, em 1469 em Veneza e em 1473 em Westminster, na atual cidade de Londres. A tipografia chegou à Espanha em 1472, quando o alemão Johan Parix de Heidelberg imprimiu em Segóvia o Sinodal de Aguilafuente, e em 1487 a Portugal, onde Samuel Gacon estampou o Pentateuco, em hebraico, na cidade de Faro. Em 1500, quando o Brasil foi descoberto, mais de 250 cidades da Europa tinham instalado prelos de impressão; nesse ano, Paris já contava com 181 tipografias.

Anchieta e Vieira tiveram que ser impressos em Portugal

Mas foram necessários três séculos e meio, já no começo do 19, para que as artes gráficas pudessem ser exercidas, sob rigoroso controle do Estado, no Brasil, um dos últimos países do mundo a permitir a instalação de uma tipografia.

Como disse Alfredo de Carvalho: “Em todo o transcurso do período colonial, não houve no Brasil, talvez, manifestação alguma de progresso a que a metrópole deixasse de corresponder com medidas proibitivas, ou providências vexatórias, ditadas por uma política suspicaz que antevia na prosperidade da vasta possessão americana a certeza da sua independência.”

Para mostrar o atraso cultural na época colonial, Isabel Lustosa escreveu que o Brasil era um dos poucos países do mundo, excetuados os da África e da Ásia, que não produziam palavra impressa. Mas, na verdade, até as colônias portuguesas na África e na Ásia contavam com tipografias, já no século 16 e começo do 17, instaladas pelos padres jesuítas. A exceção foi o Brasil.

Os livros escritos no Brasil por autores como Gabriel Soares de Sousa e Antonil ou os padres José de Anchieta e Antonio Vieira tiveram que ser impressos em Portugal e receberam escassa divulgação. Numerosas obras da época da colônia esperaram vários séculos para ser estampadas, depois que foram encontradas nos arquivos portugueses por historiadores brasileiros.

O primeiro tipógrafo do Novo Mundo

Gregório de Matos teve sua poesia impressa somente em 1904. A Carta de Pero Vaz de Caminha foi encontrada na Torre do Tombo, em Lisboa, em 1773, “depois de quase três séculos perdida em montes de papéis empoeirados”, como diz Carlos Rizzini, e só impressa em 1817 no Rio de Janeiro. A Carta do Mestre João, o médico e astrônomo espanhol João Faras ou João Emeneslau, que acompanhou Cabral em sua viagem, escrita em espanhol, com algumas palavras em português em 1500 e na qual foi identificada pela primeira vez a constelação Cruzeiro do Sul, foi descoberta pelo historiador brasileiro Francisco Adolfo de Varnhagen, também na Torre do Tombo, e publicada em 1843. O Diário da navegação da armada que foi à terra do Brasil em 1530, de Pero Lopes de Sousa, irmão de Martim Affonso de Sousa, somente foi achado em 1839 na Biblioteca Nacional da Ajuda de Lisboa, também por Varnhagen. Não é improvável que outros documentos importantes não tenham sido encontrados.

Já no século 16 começaram a ser instaladas tipografias na América espanhola. As primeiras obras tiveram cunho religioso, com o objetivo de catequizar os índios, e muitos dos livros foram escritos em línguas indígenas. Wilson Martins afirma que “é quase possível afirmar que a América foi descoberta pela imprensa” e que “a imprensa chega à América no mesmo momento em que começa a se espalhar pela Europa e que, nesse particular, o México não se encontra atrasado em relação à maior parte dos países europeus”.

As primeiras tipografias na América foram instaladas nas sedes dos vice-reinados de Nueva España (México) e Nueva Castilla (Peru). Há referências a um prelo na Cidade do México, instalado por Esteban Martín, que teria estampado em 1533 a Escala Espiritual para Llegar al Cielo, de São João Clímaco, e em 1537 o livro Doctrina. Mas existem divergências a respeito das datas e não restam vestígios desses impressos. Johan (Juan) Cromberger, alemão instalado em Sevilha, obteve uma licença de exclusividade para impressão no México, onde publicou a Breve y Más Compendiosa Doctrina em 1539, do qual não resta nenhum exemplar. No ano seguinte, Juan Pablos (Giovanni Paoli), italiano de Brescia, representante de Cromberger no México e depois detentor de um “privilégio” de impressão, estampou o Manual de Adultos, do qual somente se conservam algumas folhas. Alguns autores consideram Juan Pablos o primeiro tipógrafo do Novo Mundo.

O liberalismo no comércio de livros

A fundação da universidade no México, em 1551, aumentou a demanda por livros de medicina e ciências. Em 1559, foi instalada uma segunda tipografia. Em 1570, já havia na Cidade do México quatro prelos e uma loja de livros, e em 1600, oito tipografias, que produziram 240 títulos conhecidos. Um prelo foi instalado em Puebla de Los Angeles, a segunda cidade do México, em meados do século 17.

O italiano Antonio Ricciardi, que fora tipógrafo no México, levou um prelo ao Peru em 1583 e no ano seguinte imprimiu a Pragmática e a Doctrina Christiana y Catecismo para Instrucción de los Indios, em espanhol, quíchua e aimará; são os primeiros incunábulos produzidos na América do Sul. Também foi estampada no Peru a Pragmática sobre los Diez Dias del Año, que trata da implantação do calendário gregoriano, em 1584. Os jesuítas instalaram às margens do lago Titicaca um prelo temporário para imprimir obras em aimará e catequizar os índios.

Nos séculos 17 e 18, a arte gráfica foi avançando para outras regiões da América. Em 1640, chegou a Puebla de Los Angeles, à Guatemala em 1660, a Oaxaca (México), em 1720, a Havana, em 1724, a Santafé de Bogotá, em 1738, e a diversas outras cidades. No Cone Sul, a primeira cidade a ter uma tipografia foi Córdoba, em 1764; a Santiago de Chile chegou em 1776 e a Buenos Aires, em 1780. Nas colônias espanholas que depois foram incorporadas pelos Estados Unidos foi instalada uma tipografia em Nova Orleans, em 1764, e outra em San Agustín, na Flórida, em 1783.

Além de contar com tipografias, as colônias espanholas da América Latina importavam livremente obras impressas da Espanha e de outros países europeus, pagando impostos muito baixos ou com total isenção. Laurence Hallewell comenta que esse liberalismo no comércio de livros não era acompanhado no resto da Europa. O resultado foi que tanto a Espanha como suas colônias na América foram inundadas com impressos de outros países, especialmente dos Países Baixos (Antuérpia) e França (Lyon).

Uma iniciativa “precoce”

Nas colônias inglesas na América, o primeiro prelo foi instalado em Massachusetts, em 1638, em Harvard, onde dois anos mais tarde foi impresso The Whole Book of Salmes. No Canadá, os ingleses montaram uma tipografia em Halifax, Nova Scotia.

Nelson Werneck Sodré tentou explicar a diferença de comportamento da Espanha e Portugal em relação à palavra escrita em suas colônias. Segundo ele, “onde o invasor encontrou uma cultura avançada, teve de implantar os instrumentos de sua própria cultura, para a duradoura tarefa, tornada permanente em seguida, de substituir por ela a cultura encontrada. Essa necessidade não ocorreu no Brasil, que não conheceu, por isso, nem a universidade nem a imprensa, no período colonial. Na zona espanhola, uma e outra surgiram logo. (…) A dualidade de culturas, nela, representava sérios riscos ao domínio. Aqui, não tinha existência prática, não representava risco algum”.

Para ele, o aparecimento “precoce” da imprensa e das universidades na América espanhola “esteve longe de caracterizar uma posição de tolerância. Foi, pelo contrário, sintoma de intransigência cultural, de esmagamento, de destruição”.

O argumento de Sodré, amplamente difundido e aceito, que foi incorporado sem comentários nas obras de outros autores, levanta algumas questões. Muitas das obras publicadas nas colônias espanholas eram gramáticas e dicionários das línguas indígenas, para catequese e ensino; também foram estampados livros escritos nessas línguas. Parece evidente que essa iniciativa de passar as línguas indígenas, de uma etapa de transmissão oral para um estágio de cultura escrita, levaria à sua preservação, não à sua destruição.

Sérgio Buarque de Holanda tem uma interpretação diferente. Afirma, em Raízes do Brasil, que durante a colonização espanhola foram instaladas “nada menos de 23 universidades”, que formaram umas 150 mil pessoas. Não parece concordar em que fosse uma iniciativa “precoce”.

“Ideias que pudessem pôr em risco a estabilidade”

Ao contrário do que afirma Sodré, a imprensa não chegou unicamente a regiões com culturas avançadas. Diversas tipografias foram instaladas em regiões onde o estágio cultural era semelhante ao dos indígenas da colônia portuguesa. Na região das Missões, os próprios índios guaranis construíram um prelo, fundiram tipos e imprimiram livros. Além disso, muitas das obras nas colônias espanholas, como livros de ciências e medicina, foram impressas para atender a demanda dos estudantes das universidades criadas, para leitura dos colonizadores procedentes da metrópole, dos seus descendentes e dos índios aculturados. Buarque de Holanda menciona que somente na Cidade do México, na época colonial, foram impressas cerca de 9 mil obras: 251 no século 16, 1.838 no 17 e 6.890 no 18. Parece improvável que esses livros tivessem o objetivo de esmagar ou destruir.

Pode depreender-se da argumentação de Sodré que talvez tivesse sido melhor que essas universidades “precoces”, como ele escreve, não tivessem sido fundadas, que as 150 mil pessoas não tivessem pisado uma universidade e que milhares de livros nunca tivessem sido impressos. Sodré, talvez sem o perceber, parece justificar o fato de Portugal ter impedido a instalação de prelos no Brasil colonial.

José Marques de Melo escreve que no Brasil, na época colonial, não havia tipografias porque não eram necessárias. Com essa afirmação parece concordar em que Portugal agiu corretamente ao proibir que no Brasil “se imprimam papéis no tempo presente”, como dizia a carta régia.

Se, nos primeiros anos da colonização, a tipografia fosse talvez dispensável, certamente tornou-se necessária com o aumento da população e o desenvolvimento econômico. Os holandeses, no curto período em que estiveram no Brasil, sentiram necessidade de instalar uma tipografia em Pernambuco. Os padres jesuítas das Missões reivindicaram a instalação de um prelo já no início do século 17.

Como escreveu Buarque da Holanda: “Os entraves que ao desenvolvimento da cultura intelectual no Brasil opunha a administração lusitana faziam parte do firme propósito de impedir a circulação de ideias novas que pudessem pôr em risco a estabilidade de seu domínio.”

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[Matías M. Molina é autor do livro Os Melhores Jornais do Mundo, em segunda edição]