Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Os médicos e o papel social da mídia

O assunto passou quase despercebido; na verdade, pouquíssimos veículos de comunicação, incluindo a internet, deram destaque para o ‘exame do CRM’, que vem a ser uma avaliação dos alunos do último ano dos cursos de medicina do estado de São Paulo realizada pela entidade, de algum modo semelhante ao que a OAB faz com os bacharéis de direito, porém de caráter voluntário.

No domingo (28/1), contudo, Janio de Freitas, em sua coluna na Folha de S. Paulo, destacou o assunto, criticando, inclusive, a falta de divulgação pública do mesmo, e trazendo à consideração basicamente o fato de que cerca de 60% dos alunos que se submeteram ao teste foram analisados e que, segundo os responsáveis pelo exame, conselheiros do Cremesp (Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo, nome oficial do CRM), o pior desempenho se deu em questões relativas ao atendimento de situações de emergência. Destacaram ambos – Cremesp e o colunista – que, por razões próprias do Brasil, são em sua grande maioria os médicos mais jovens que trabalham nas emergências, os pronto-socorros, por exemplo, e apenas isso já seria um indicador da gravidade do problema. E mais: nos últimos dez anos, o número de denúncias ao Cremesp aumentou de maneira assustadora, especialmente dirigidas a médicos formados há pouco tempo. Em resumo, cerca de 40% dos médicos não seriam aptos para trabalhar no mais comum dos empregos e que mais acolhe os jovens, que é a emergência.

Assunto polêmico

Cartas foram enviadas ao ‘Painel do Leitor’ da Folha: em uma dessas cartas houve uma crítica de um cidadão a essa situação, louvando a publicação da coluna de Jânio de Freitas e uma carta minha saiu publicada, editada – por sua extensão,acredito – apenas na versão on-line. No dia seguinte, um editorial do jornal dedicou-se inteiramente ao assunto, levantando a questão da criação sem critérios de novos cursos médicos e cobrou a obrigatoriedade do exame.

Na quarta-feira (31/1), uma carta de um médico fluminense faz considerações sobre as condições de trabalho e de equipamento dos serviços públicos, enquanto outra, de uma estudante de medicina do interior de São Paulo, critica o exame do Cremesp sob a alegação de que vários alunos preferiram boicotar o mesmo por não concordar com seu formato e com o fato da instituição nada fazer para melhorar as já existentes escolas médicas e impedir a abertura de outras.

É evidente que houve um avanço na discussão, mas ainda muito tímido. Como relatei, procurei condensar vários aspectos da questão na carta que enviei ao ‘Painel do Leitor’, mas com o novo projeto gráfico da Folha, que diminuiu o espaço para cartas de leitores (conforme coluna da semana anterior do próprio ombudsman), a minha foi parar na Folha Online, razão pela qual julguei pertinente aprofundar um pouco o assunto aqui no Observatório da Imprensa, até porque, sendo o assunto polêmico e importante, a quantidade de notícias nas áreas política, econômica, internacional e policial certamente deve ter sua parcela na divulgação apequenada desse tema.

Corpo discente elitizado

Pois bem – a OAB realiza o seu exame obrigatório e, sem a aprovação no mesmo, um bacharel em direito não se torna advogado. Os índices de reprovação no exame são assustadores, chegando a 90% em várias ocasiões e os profissionais dessa área e sua entidade criticam também o aparelho formador educacional e a abertura desenfreada de faculdades de direito. Mas em Medicina o exame não é obrigatório e as responsabilidades muitas, evidentemente. Recordemos, então, algumas coisas.

Em geral, uma pessoa que deseje se tornar médico provém de uma categoria sócio-econômica mias elevada: mesmo nos dias de hoje, o curso de Medicina é um dos mais procurados e os vestibulares acirrados; para passar nos mesmos, há a necessidade de cursar bons colégios e cursinhos, na maior parte das vezes privados, e as faculdades de medicina particulares são caras – uma mensalidade pode variar de R$ 1.500,00 a R$ 5.000,00. Se o aluno estudar em uma cidade que não é a sua, devem-se somar os custos de manutenção, por exemplo, em uma república. E mesmo nas universidades públicas há gastos com livros, equipamentos, uniformes etc.; o curso é integral e em sua fase hospitalar começam os plantões – é difícil trabalhar ao mesmo tempo em que se estuda. Há exceções, muito honrosas e dignificantes, mas não há como evitar a colocação de que o corpo discente de uma escola médica é, de modo geral, elitizado. Claro que os melhores alunos acabam nas escolas públicas gratuitas – essa é outra importante discussão, mas que não cabe aqui, no momento.

Causas da desmotivação

Fazer um exame ao final do curso, como o da OAB, nunca agradou aos médicos, a bem da verdade. Tanto assim que a lei federal que criou o sistema CFM/CRMs, de 1957, não inclui entre as obrigações formais das mesmas o ensino médico. Aliás, pela letra da lei, um indivíduo portador de um diploma de escola reconhecida pelo MEC obrigatoriamente tem que conseguir seu registro: os CRMs não podem punir um estudante de medicina, por exemplo.

Até a ocasião da citada lei, e um pouco após sua vigência, o número de escolas médicas no país era menor, a formação mais cuidada, muitos estagiavam no exterior e isso deve ter contribuído para essa cultura da falta da necessidade de outro exame já com o diploma na mão. Ainda mais, com a necessidade cada vez mais premente de se fazer residência médica, a pós-graduação sensu latu – quase que obrigatória nos dias de hoje para se complementar os seis anos de curso médico e para especialização – já obriga, para selecionar os candidatos à mesma, a um verdadeiro novo vestibular, pois há menos vagas em residência do que o número de alunos formados. Por outro lado, uma parcela de mais de 30% dos formandos não faz residência credenciada pelo MEC: vão direto para o mercado de trabalho ou fazem estágios; aqueles que cursam instituições credenciadas pelas sociedades brasileiras de especialidades médicas, vinculadas à Associação Médica Brasileira, fazem uma prova para obter seu título de especialista, o que é automático para quem cursa uma residência credenciada. Isso, em parte, pode causar essa desmotivação em fazer novos exames, como aquele nos moldes da OAB.

Exames para fins curriculares

Uma outra questão diz respeito aos cursos em si: pelo menos até a década de 1970, na grande maioria das faculdades de medicina as coisas sempre foram seguramente difíceis, desde o primeiro ano. Matérias básicas, como Anatomia, Fisiologia, Farmacologia, Patologia etc. sempre foram temidas, com professores rigorosos, muitas provas teóricas e práticas, grandes chances de reprovação e necessidade de recuperação em dependência ou métodos assemelhados. Nas matérias do chamado ciclo clínico as coisas não mudam muito e o aprendizado prático supervisionado, o internato, também sempre foi cansativo e rigoroso. Após todas essas corridas de obstáculo, do vestibular à cerimônia de colação de grau, para que criar um novo exame, posto que seria ainda mais difícil avaliar a formação médica como um todo numa prova apenas teórica? Esse foi um pensamento predominante, e com certa lógica.

Em alguns estados houve grande incentivo, nas suas regionais da Associação Médica Brasileira, para que os recém-formados passassem por exames: embora não obrigatórios, seriam úteis para fins curriculares.

A evolução dos projetos

No final dos anos 1980, o próprio Cremesp fez sua primeira tentativa de exame voluntário: menos elaborado que aquele feito nos moldes atuais, gerou curiosidades – o então presidente do órgão, neurocirurgião (que na vida profissional acaba por ter que se dedicar muito à sua própria especialidade), deu o exemplo, fazendo a prova e sendo aprovado. O então presidente da Associação Paulista de Medicina, conceituado professor de medicina em área clínica, surpreendentemente não passou…

Nessa ocasião, resolveu-se criar uma comissão com membros de várias entidades médicas, denominada Cinaem, que elaborou um complexo programa de avaliação dos cursos, das instalações das faculdades, testes dos estudantes em várias fases da formação, avaliação cognitiva etc. De tão ambicioso, o projeto naufragou: não se conseguiu chegar a diagnósticos precisos, tampouco a elencar medidas práticas. E, recentemente, vem o Cremesp com um novo exame ainda voluntário, mas realizado de maneira mais profissional, digamos, com maior capacidade de avaliação. O que mudou?

A lógica do mercado

A primeira coisa que se deve levar em conta é a proliferação dos cursos de medicina: talvez poucos para o país ainda na década de 1970, mas durante o regime militar houve um incentivo para a criação de novas escolas, em especial privadas – cada cidade queria ter a sua e o controle de qualidade das mesmas praticamente inexistiu. Critérios políticos predominaram sobre os qualificativos. Certamente, vários médicos formados por instituições dessa época não obtinham qualificação adequada, pois muitas dessas escolas mal tinham laboratórios, biblioteca e nem mesmo hospital próprio!

Houve um crescimento lento e vegetativo na década de 1980 de novos cursos, muitos impedidos de atuar devido à ação das entidades da categoria médica, mas em meados dos anos 1990, com a entrada em vigor de uma nova Lei de Diretrizes e Bases da educação, literalmente abriram-se as porteiras: passou a predominar a lógica do mercado.Segundo esse tipo de raciocínio, as más escolas fechariam suas portas por conta própria.

Distribuição e alocação de médicos

Acontece que esse é um erro fatal na área de saúde, em especial Medicina: as normas da economia formal não funcionam direito nesse departamento. Muitos empresários do ensino passaram a criar escolas médicas sem o menor critério, sem preocupações com corpo docente, qualidade e sem nem mesmo um convênio com instituições hospitalares, ambulatoriais e postos de saúde: não é preciso muito para imaginar o tipo de profissional que pode se graduar em escolas desse tipo. Graças novamente à pressão das entidades de classe, o governo federal até o momento proíbe a abertura de novos cursos médicos.

Deve ser esclarecido que não é a reserva de mercado que está em jogo: há empregos para todos, mesmo que a remuneração tenha caído muito. E também há uma péssima distribuição dos médicos no Brasil, concentrada na região Sul-Sudeste, pela maior oferta de posições e oportunidades e melhor remuneração, com a falta de médicos nas áreas mais necessitadas do país, pois até hoje não se conseguiu formular uma política adequada de distribuição e alocação dos médicos de maneira a contemplar a nação como um todo.

Reavaliação periódica

A interpretação de que o ‘mercado’ cuidaria do assunto, além de ser absurdamente perigosa como política, não é o que ocorre desde o início do século 20 nos próprios EUA: lá, houve a chamada reforma Flexner, em 1912, que resumidamente avaliou as escolas médicas dos Estados Unidos e Canadá e condenou a maioria ao fechamento sumário. O número de escolas por lá se mantém mais ou menos o mesmo desde então e o ensino é bastante homogêneo, embora universidades de ‘grife’ acabem por chamar mais atenção e ser o ensino superior basicamente privado. Na Europa, as coisas são semelhantes e com o advento da União Européia os currículos e a qualidade das faculdades de medicina do Velho Continente cada vez mais estão se assemelhando, independentemente do país.

Como resolver o problema? Não há caminhos fáceis, evidentemente, mas peguemos as duas pontas: não abrir mais escolas médicas sem critérios absolutos de necessidade e qualidade, fiscalizar contínua e rigorosamente as mesmas e, na outra ponta, a chamada educação médica continuada, que os médicos continuem sempre a estudar, sendo reavaliados de tempos em tempos, por exemplo, com a já existente necessidade de revalidação dos títulos de especialista depois de alguns anos, sucessivamente.

MEC cruza os braços

Por lei, não cabe aos CRMs se imiscuir na formação médica e há impedimento legal claro que se faça um exame nos moldes da OAB e os reprovados no mesmo não possam obter sua inscrição. Esse não é detalhe desprezível: o lobby médico praticamente não existe e a velha lei de 1957, com premente necessidade de atualização pelos mais variados motivos, teve algumas tentativas de projetos de lei que nunca chegaram ao plenário da Câmara dos Deputados…

Essa é a razão do exame do Cremesp ser voluntário e a iniciativa só pode ser aplaudida. Para que o mesmo se torne obrigatório, como o da OAB, há a necessidade de uma previsão legal – algum tipo de lei complementar, projeto de lei, ou mesmo atualização das leis existentes deve abrigar esse exame, senão, certamente, quem não for aprovado conseguirá seu número de CRM com uma ação judicial…

Mas essa discussão fica mais restrita ao meio médico, ocasionalmente aparecendo alguma coisa na imprensa, como no caso da Folha. Os mais interessados, obviamente, são os cidadãos, a sociedade, os potenciais pacientes! Com uma abordagem mais intensa desse tema pela mídia, uma discussão maior pela população, certamente será mais fácil superar as barreiras legais para conseguir um exame com validade oficial, como propôs o editorial do jornal paulista, mas não se deve esquecer que ou também se dá aos CRMs papel fundamental na aprovação e fiscalização de novas e antigas escolas de medicina, ou o poder público se aparelha adequadamente para fazer valer o rigor exigido, que só pode ser o da qualidade e da meritocracia, e não a politicagem.

No momento, até é possível entender estudantes que não queiram fazer o exame voluntário, pois o CRM ‘nada faz’ pelas escolas atuais – pudera, ele não pode! E quem teria a obrigação de fazê-lo, como o MEC, também cruza os braços!

Mobilização da sociedade

Nunca é demais relembrar: exames não garantem a qualidade do profissional médico. Isso obriga a que haja um padrão mínimo de qualidade nas escolas (e aí vale um princípio similar à ‘tolerância zero’) e mesmo a revisão do atual modelo pedagógico formador: a tal reforma Flexner do início do século passado na América do Norte também foi uma mudança de metodologia de ensino, inspirada no modelo da Universidade de Berlim: os tempos eram outros e hoje se sabe que esse modelo está superado: levou à super-especialização da medicina e, ainda precocemente, tirou o ensino de humanidades e diminuiu o espaço para ética e bioética – mas isso está sendo revertido com vários novos modelos em outros países, alguns deles em uso em poucas escolas brasileiras. Ainda somos ‘flexnerianos’, e tardiamente, pois foi com a reforma universitária de 1968 que esse modelo chegou ao Brasil, muito depois, evidentemente, de já existirem questionamentos a seu respeito no exterior.

Resumindo: a mídia deve aprofundar e discutir cada vez mais essa questão para a sociedade se mobilizar e auxiliar os Conselhos e Associações Médicas a cumprir esse novo papel com amparo legal, assim como exigir dos governantes mais seriedade no trato do assunto.

Poder político e econômico

Para finalizar e ilustrar como a coisa é complicada: em 1997, uma nova escola médica iria fazer seu vestibular em uma cidade de São Paulo onde já funcionava outra desde a década de 1960. Não havia critério objetivo algum que justificasse a criação dessa faculdade. A mesma havia tentado um vestibular no ano anterior e a própria Delegacia Regional do MEC não autorizou. A instituição buscou a Justiça Federal, que negou o vestibular e a coisa transitou em julgado – o assunto estava tecnicamente encerrado.

Na ocasião, eu era diretor do departamento jurídico do Cremesp e vários médicos daquela cidade alertaram que havia anúncios para vestibular daquela mesma escola médica, proibida no ano anterior. Fui designado para acompanhar a questão pelo então presidente do CRM e, juntamente com o então presidente da Associação Paulista de Medicina e com nossos assessores jurídicos, procuramos o Ministério Público Federal daquela cidade: o procurador tentou uma conciliação entre os dirigentes da instituição e as entidades médicas, propondo uma moratória no vestibular até se estudar melhor o assunto. Todos foram solenemente ignorados.

Reunidos, resolvemos entrar com uma ação civil pública – CRM, APM e o IDEC, este, com o raciocínio de que o aluno também poderia ser considerado um consumidor, pois se aquela escola acabasse por não ser permitida a continuar, ele seria lesado. Entramos com um pedido de liminar em mandado de segurança para impedir o vestibular na Justiça Federal daquela cidade, a ser apreciado por outro magistrado que não o que negara o vestibular no ano anterior. Surpreendentemente, ele disse não haver provas nos autos de que haveria vestibular! Até chamadas na televisão avisavam os interessados. Curiosamente, ele era professor de direito na mesma universidade…

Juntamos às pressas aos autos todos os panfletos, anúncios e equivalentes, mas quando ele se reuniu com nossos advogados a tal universidade havia entrado com pedido de autorização para realizar novo vestibular na primeira instância da Justiça Federal…do Distrito Federal! E lá foi concedido o direito de realizar o exame, que se efetivou. Com essa confusão, à nossa ação se somaram, no pólo ativo, o Ministério Público Federal, o Ministério Público Estadual e a própria Advocacia Geral da União. Os processos foram juntados em um único em Brasília, que chegou ao Superior Tribunal de Justiça e… prescreveu! O poder político e econômico é mesmo muito forte.

Que a retomada dessa discussão se amplie para benefício de todos: população, pacientes, alunos e professores de medicina, entidades de classe etc., pois as intenções são obviamente as melhores. Mas sem a devida mobilização – e daí o clamor de Janio de Freitas e do editorial da Folha – nada de muito novo ocorrerá.

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Médico, mestre em neurologia, ex-conselheiro e ex-diretor do CRM do estado de São Paulo