Sunday, 24 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

As novas ferramentas e o falso bem-estar

O tema em questão agrega inúmeras vozes que sobre ele já se pronunciaram, ora para a afirmação do estado de deslumbramento ante as inovações incessantes, ora para discursos que não escondem o desconforto diante de uma realidade cuja aceleração determinada por mutações parece maior do que a capacidade de absorvê-las. Aqui, resta a tentativa de escapar da ‘armadilha’ que tanto atrai a ‘lógica binária’.

Evitar o discurso apologético e a visão fantasmática implica transitar numa ‘área móvel’, capaz de tanto permitir ao olhar a identificação das deformações, no tocante à percepção das gozosas conquistas, quanto lançar aceno auspicioso para as inegáveis aberturas e experiências que se encontram disponíveis na vida moderna. A tensão em torno do tema, foi pontuada. há muito, pelos escritos de Umberto Eco, principalmente na obra Apocalípticos e integrados, ainda nos idos da década de 70, no século passado. Da visão redutora também procurou escapar Roland Barthes, sem deixar de fazer alusão às contribuições de Michel Foucault. Adiante, igualmente, não se ausentou Fredric Jameson quanto a refletir sobre as conseqüências trazidas por diferentes formatos culturais, a exemplo do que bem pensou o canadense Derrick de Kerckhove, principalmente na obra A pele da cultura.

As vozes que integram a resistência pela negação tendem ao sepultamento, sob o patrocínio de uma ingênua compreensão atada a um estado de crença na possibilidade de o curso civilizatório dar um passo atrás, retomando bandeiras e lemas desgastados. Por outro lado, as vozes proclamadoras da mera autenticação do ‘império tecnológico’ correm o sério risco de, por conta do ‘olhar míope’, ignorarem o progressivo processo de exclusão de bolsões populacionais que não têm políticas de inserção. Assim, feita a ressalva quanto à deformação que habita os dois recortes, pode-se tentar a articulação de um pensamento com certo grau de distanciamento, o que, de resto, também não assegurará isenção de possíveis equívocos.

Os perigos da ilusão

A ingenuidade costuma ser o mais eficiente procedimento contra a autonomia crítica. Ora, todos sabemos que tecnologia lida com altos investimentos cuja aplicação se justifica na razão direta da garantida alta rentabilidade, o que transforma, a priori, o capital injetado em pesquisas, em certeza de multiplicação de lucros adiante. A modernidade está estruturada nessa dinâmica do ‘lucro’ – nem precisamos mencionar Chomsky, Baudrillard ou Virilio. A lógica de investimentos da tecnologia pressupõe a capacidade de extrair, cada vez mais, poupança de segmentos populacionais que suprem a ausência de outros absolutamente desprovidos de mínimas condições para a auto-suficiência. É uma forma de lógica perversa que parece aceita pelas duas pontas: investidor e consumidor. Quanto a isso, pois, não há nada de novo.

O que efetivamente merece ser objeto de vigilância é a circulação, no espaço público, de discursos que, travestidos de retórica teórica, não passam de peças publicitárias cuja função não é outra senão a de divulgação de novos artefatos tecnológicos e a disseminação de conceitos que, a rigor, se situam no horizonte de expectativas dos setores dominantes. Assim se enquadram as publicações tanto de Pierre Lévy quanto de Domenico Di Masi.

Ambos, sob a proteção de titulações acadêmicas, escondem as reais funções que exercem: Pierre Lévy, ligado diretamente a empresas de tecnologia, de um lado; Domenico Di Masi, na condição de consultor de empresas, de outro. Deles, afora outros nomes de menor repercussão, provém a promessa de redenção da vida prazerosa, seja pela autonomização propiciada pela expansão da rede virtual, seja pela promessa de ampliação de um ‘tempo de lazer’, sob a regência do insólito ‘ócio criativo’. Somente a falta de percepção crítica pode embalar a imaginação, impregnando-a de ingenuidade. As últimas décadas, pelo menos, mostram claros sinais de dificuldades crescentes. Ao contrário, as ferramentas tecnológicas roubam, cada vez mais, o tempo ocioso. Exatamente por elas acelerarem a resolução de tarefas, mais tarefas cabem no mesmo espaço de tempo.

A falácia do ‘ócio criativo’

Quanto à aspiração à vida ociosa, estatísticas, em escala mundial, dão conta da oferta progressivamente inibida de postos de trabalho. A idéia de o ‘mundo virtualizado’ conferir ao indivíduo a condição de trabalhador autônomo, realizando em sua própria casa o que, em tempos outros, faria no local de trabalho, retira-lhe a proteção que, até então, lhe propicia a lei reguladora acerca do número máximo de horas diárias voltadas para o labor.

No novo modelo, preconizado por certa linhagem ‘teórica’, casa e trabalho se tornam espaços indiferenciados e rigorosamente interconectados, sem nenhum ônus social para o empregador, ao qual, em tal quadro, também bastará ter uma ‘empresa virtual’. Em suma, tais discursos não passam de articulações pseudoteóricas que objetivam diluir a compreensão do que seja o ‘falso bem-estar’.

Diferente avaliação, no entanto, merece Michel Serres, que, a despeito de sua aposta nas novas ‘ferramentas’, também chama a atenção para a necessidade de, cada vez mais, o indivíduo desenvolver capacidade seletiva para a ‘filtragem’ (termo usado por Serres) de tudo que pode ser armazenado.

A crença no ‘ócio criativo’ com a qual o ser humano estaria livre para produzir grandes obras e estonteantes invenções não resiste ao próprio percurso civilizatório. Foi o sentido profundo de crise que, na Grécia antiga, inspirou as inesquecíveis tragédias de Ésquilo e Sófocles. Diferente não foi o sentimento de Platão ao conceber A República. Mesmo Epicuro tinha plena consciência de que a vida hedonística não poderia prescindir do longo preparo exigido pelo conhecimento. Fica ridículo imaginar Kant, na formulação de A Crítica da razão pura, e Machado de Assis, nas articuladas sutilezas de Dom Casmurro, entregues ambos ao deleite do ‘ócio criativo’. A convicção é de que nenhum parágrafo seria escrito, o que criaria na história da filosofia e da literatura duas insubstituíveis lacunas.

As tramas do devaneio

O curso da modernidade se pauta numa aventura na qual o ‘sentido’ ora é orientado pela utopia, substituída pelo ‘culto ao devaneio’, ora é desvirtuado pelo efeito da simulação, protagonizado pela tecnologia. É nesse jogo oscilatório que se alarga o espaço para a radicalização da crise. Enquanto a prevalência do ‘devaneio’ direciona para o ‘fanatismo’, a ‘simulação’ costura, passo a passo, o véu que, encobrindo a realidade, promove a ‘falsificação do cogito‘, sob os auspícios do Sistema Midiático Industrial (SIM).

Diferentemente do que, por longo tempo, marcou a cultura ocidental, a hipermodernidade parece caracterizar-se por um modelo no qual o envolvimento dos seres com a vida tende a um progressivo comprometimento com as relações desconexas e não-lineares, o que estimula e reforça o deslizamento do sentido, sob a tutela das novas ‘ferramentas’ que instauram a ‘comunicação tecnificada’. Nesse aspecto, pois, rádio, televisão, computador, celular, formação de redes, interatividades eletrônicas, em combinação com o consumo de ativadores químicos, como droga (e variantes) passam a ser ‘agentes intercessores’ (ou ‘interventores’) que consolidam a dispersão do cogito, acarretando a ‘dissolução da memória’.

O sistema educacional, principalmente nas duas últimas décadas, vem sendo cooptado pela força sedutora de duas fontes outrora alheias à natureza própria de um saber por cuja tutela se fazia responsável a escola: a mídia e a tecnologia. A contaminação exercida por ambas, notadamente na experiência brasileira, tem colaborado para a distorção do que seja o efetivo conhecimento. A primeira, envolvendo a mídia impressa e eletrônica, passou a ditar o padrão de linguagem num patamar de crescente rebaixamento, não indo além dos registros popular e coloquial, o que afeta a aquisição de novo vocabulário. Tal sintoma é inclusive verificável nos materiais didáticos. A segunda dita o grau de ‘modernização’ ao qual se agrega o atestado de maior ou menor eficiência, ou seja, a qualidade de ensino tem sido medida pelo maior ou menor acervo tecnológico com que uma escola se municia.

As redes de invasão

O modelo cultural que se faz presente na hipermodernidade, orientado pela serialização do formato, tende a neutralizar os efeitos subjetivos da experiência, potencializando a multiplicação do perfil com o qual se caracteriza a subjetividade descentrada. Em meio ao assédio permanente de desconexões, truncamentos e ofertas diversificadas, a subjetividade se vê divorciada de retenções capazes de sedimentar sinapses, ou seja, a cognição e a percepção ficam expostas ao devaneio e à realimentação das disjunções, enfraquecendo o sentido da vida como narrativa – e da História como processo.

O desenho, portanto, com o qual se expõe a hipermodernidade conspira contra o sentido da consciência histórica, tema de que tanto tratou Hans-Georg Gadamer, seja em Verdade e método, seja em O problema da consciência histórica. Da segunda obra, extraímos a afirmação: ‘Ter senso histórico significa pensar expressamente o horizonte histórico co-extensivo à vida que vivemos e seguimos vivendo’ (1998, p. 18).

Diante do exposto, com o intuito de erradicar qualquer sintoma derrotista, fica a constatação de que, ao longo do percurso civilizatório, uma vitória da espécie humana está consagrada: a imaginação é uma força indomável. Não foi outro senão esse poder, ainda revestido de mistério, que tem permitido um caminhar para frente, sempre superando obstáculos, aparentemente intransponíveis. Assim é que o olhar crítico sobre as tentativas de mascaramento, patrocinadas pela ordem dominante, não se verga ante a convicção de que a potência de superação, presente na imaginação, sempre haverá de imperar sobre o antigo projeto de dominação ditado pelas forças sistêmicas.

Nos momentos de aguda aflição, sempre tem comparecido o ímpeto indomável da imaginação para, nos diferentes campos (arte, ciência, filosofia, política), abrir caminhos novos, libertando os indivíduos da sensação de asfixia. O problema reside em se saber reconhecer a expressão autêntica com a qual a imaginação fundante do novo se apresenta e, na contrapartida, saber refutar o que é oferecido como ‘novo’ e que, na verdade, não passa de mais uma armadilha. Há, pois, no campo da parceria ciência / tecnologia, uma tensão entre essas duas vertentes: a) vertente libertária ; b) vertente aprisionante. Estas haverão de permanecer em constante conflito. Ao mesmo tempo em que passos fantásticos são dados no ramo da nanotecnologia, outros, absolutamente convidativos à dispersão, na esfera da tecnologia da informação, são postos à disposição de usuários que, tomados pelo ‘fetiche’, a tudo se entregam, sem perceberem que seu tempo sobrante é vorazmente suprimido pela oferta incessante.

A geração mais jovem, sem dúvida, se torna mais suscetível a tais tentações. Celulares, Orkut, You Tube, Blogs, games dos mais variados e e-mails em profusão consomem praticamente todo o tempo disponível, tão necessário à imaginação. Criar, portanto, defesas contra as ‘redes de invasão’ é um imperativo do qual não se deve descuidar qualquer concepção de política educacional. Em relação a esse fato, estamos na estaca zero.

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Ensaísta, doutor em Teoria Literária pela UFRJ e professor titular do curso de Comunicação das Faculdades Integradas Hélio Alonso (Facha, Rio de Janeiro)