Há uma outra Itália no Brasil. Às vezes pode ser vista a olho nu, principalmente em São Paulo e no Rio Grande do Sul. Outras vezes jaz escondida em sobrenomes maternos que não aparecem nos nomes oficiais de numerosos descendentes, já que pelas leis brasileiras o sobrenome que identifica o rebento é o do pai. E é opcional manter o nome da mãe no meio.
A revista CartaCapital (nº 430, de 5/2/2007), na mesma semana em que deu matéria de capa ao ‘jeito brasileiro de fazer política’, resumido nos atos políticos que elegeram o descendente de imigrantes italianos Arlindo Chinaglia para a presidência da Câmara dos Deputados, chamou a atenção dos leitores para um tema decisivo de nossa História: a imigração italiana, especialmente a da região do Vêneto.
A reportagem especial ‘Pátria em fuga’, assinada por Ana Paula Sousa, é na verdade o mais belo comentário que mereceu o livro A grande emigração – o êxodo do sitalianos do Vêneto para o Brasil, de Emílio Franzina. Escrito em 1976, somente agora ganhou uma edição brasileira.
Franzina examina a saga dos italianos que partiram para fare l´America: foram 6 milhões de pessoas que, entre 1871 e 1901, trocaram a terra natal pelo Brasil.
Troca de pátria
A imigração (palavra que indica a chegada) ou a emigração (palavra que indica a partida) é um tema antigo, na vida real como no imaginário dos povos.
Adão foi o primeiro emigrante do Paraíso e o primeiro imigrante da Terra. Deixou um lugar de felicidade completa para viver num ‘vale de lágrimas’. Abrahão deixou a cidade de Ur, na Caldéia – como sabem até aqueles que fazem apenas palavras cruzadas, pois é freqüente a invocação de Ur para preencher ‘cidade com duas letras’ – e veio buscar a atual Palestina. Moisés liderou um povo inteiro e emigrou do Egito com destino à Terra Prometida, onde corria leite e mel. Mas antes precisou atravessar o deserto e gastou nisso 40 anos sem atingir o destino, passando o bastão de comando a Josué.
Os imigrantes italianos do Vêneto estavam morrendo de fome e de abandono. Vieram para o Brasil, onde substituíram a mão-de-obra escrava nas lavouras do café, em São Paulo, ou foram para o Brasil meridional, onde fizeram de minifúndios propriedades altamente produtivas, trabalhando para que o pão (trigo) e o vinho (uva) se tornassem abundantes e matassem a fome de muitos.
Primeiro despontaram nomes que são verdadeiros emblemas da imigração italiana, como Matarazzo, Crespi, Lunardelli, Zampari, Bardi, Eberle e Lupo. Há também alguns descendentes de italianos cuja origem está escondida em sobrenomes brasileiros, como é o caso de Adoniram Barbosa.
De todo modo, hoje, entre outros sobrenomes, um descendente desses imigrantes desponta como organizador de outros milhões que estão em situação parecida com aquela que fez seus ancestrais trocarem de pátria. Refiro-me a João Pedro Stedile, o líder dos sem-terra, recentemente homenageado em Terragnolo, pequena cidade de onde partiu seu avô, em fins do século 19.
Última palavra
Ao dedicar sete páginas a um livro, ainda por cima publicado por uma editora universitária (da Unicamp), a revista CartaCapital discrepou de todas as outras revistas semanais que, semana após a semana, fazem de conta que apenas duas ou três editoras – e são sempre as mesmas – publicam livros que merecem os indispensáveis comentários e registros na mídia.
A matéria não é apenas uma boa resenha. Indica um caminho novo no trato dos livros. Como sói acontecer na Galáxia Gutenberg, a revista não diz tudo, mas ao dizer o que diz possibilita que o leitor preencha o não-dito e não-escrito com o que pensa e diz.
Assim, se um Chinaglia passou a ocupar o lugar estratégico de eventual substituto de um da Silva, é hora de verificarmos também a história dos sonhos. Foi em busca de um melhor paese que os imigrantes para cá vieram. Terá sido em busca de um melhor Parlamento que Chinaglia migrou do rebanho de deputados para a condição de pastor?
O leitor não lê apenas o que outros escreveram. Sejam reportagens ou livros, o leitor também escreve e cabe a ele a última palavra.