O termo ombudsman pode soar um pouco estranho, mas representa um grande avanço para a transparência da mídia. É a voz do cidadão na imprensa, um canal de comunicação que recebe, investiga e encaminha as queixas dos leitores. Funciona como uma espécie de ouvidor independente, mas sua atuação é limitada, pois não tem poder executivo.
Figura ainda rara na mídia brasileira, o ombudsman existe na imprensa dos Estados Unidos desde os anos 1960. No Brasil, a Folha de S.Paulo foi o primeiro jornal a adotar essa função, em 1989. Nesses 22 anos, nove profissionais já ocuparam o posto. No Brasil, atualmente, além da Folha, somente o jornal O Povo, do Ceará, conta com um ombudsman nos seus quadros.
O Observatório da Imprensa exibido na terça-feira (15/11) pela TV Brasil levou ao ar uma entrevista de Alberto Dines com a ombudsman da Folha de S.Paulo, Suzana Singer. A jornalista trabalha para a Folha há mais de duas décadas e assumiu o posto de ombudsman em março deste ano. Suzana já foi repórter, pauteira e secretária de Redação. Como ombudsman, é encarregada de elaborar diariamente uma crítica interna, que circula apenas entre os jornalistas da Folha. Aos domingos, a coluna do ombudsman ganha as páginas do jornal. E não apenas a Folha é assunto do ouvidor dos leitores: comentários críticos sobre os outros meios de comunicação também têm espaço.
Dines abriu o programa comentando que a função de ombudsman é tão árdua que, no Brasil, apenas dois jornais contam com ouvidores. Para Suzana Singer, exercer essa função é complexo porque o trabalho do ombudsman expõe a Redação. “Você abre um contato com os leitores e se obriga a dar satisfação aos seus leitores. Tem que responder a eles. E cria um cargo com uma posição de liberdade total de crítica que não é agradável para ninguém, muito menos para um órgão de imprensa”, disse a ouvidora. Dines completou que a expectativa tantos dos leitores quanto do público interno é muito alta.
Leitor atento
Suzana Singer disse que a Redação já se acostumou com a presença do ombudsman, mas a reação nem sempre é boa: “Não é agradável você ser criticado. Jornalista é uma função em que você está acostumado a criticar os outros, a denunciar os outros, e não é fácil você ser a vidraça”. Suzana contou que os leitores que procuram o serviço de ombudsman são críticos e exigentes. Muitas vezes, ficam frustrados com a resposta dada pela ombudsman para sua queixa porque não entendem que o cargo não tem poderes executivos. “Eu posso dar a minha opinião, a Redação não concorda e nada vai acontecer”, disse. Para Suzana, essa divisão entre o “executivo” e o “crítico” é salutar.
Dines sublinhou que é preciso atender também às demandas dos acionistas do jornal e comentou a coluna de Suzana Singer publicada em 16/10, na qual a ombudsman reclama de informes publicitários publicados pela Folha sob a forma de falsas capas (9-10/10). Na avaliação de Dines, esta coluna foi um protesto contra o capitalismo selvagem que predomina nos negócios. Dines, que considera esta prática como uma forma de “prostituição” da primeira página, perguntou como a Redação lida com as pressões da publicidade.
“Na Folha isso é muito fácil porque a Redação é respeitada. Eu até evito tratar de temas da publicidade, mas nesse caso havia muita reclamação de leitor, foi uma unanimidade. Tem essa questão de você estar vendendo a sua cara. Eu até entrei em contato com o ombudsman do New York Times para saber como eles faziam lá e ele nem entendia o que eu estava falando”, contou Singer. A jornalista explicou que a sua coluna não passa por nenhuma avaliação antes de ser publicada e, naquela ocasião, não houve qualquer reclamação dos acionistas ou do setor de publicidade. “O departamento comercial deve ter feito vodu de mim, mas ficou entre eles”, brincou a jornalista.
Ombudsman vs. Redação
Dines comentou que depois de deixar a função de ombudsman da Folha, parte dos profissionais abandonou o jornalismo. Alguns continuaram a carreira em outros veículos e uma pequena parcela permaneceu na Redação da Folha. Dines perguntou a Suzana se o cargo cria uma animosidade que leva ao afastamento quando o jornalista deixa a função. Ela explicou que o mandato é anual e pode ser renovado até duas vezes. Para preservar a liberdade de crítica, o ombudsman não pode ser demitido e há ainda uma quarentena de seis meses quando o mandato termina. “É muito difícil você se recolocar na Redação. Às vezes, não consegue repensar a sua função”, afirmou. A jornalista confessou que pensar o “depois” é uma dificuldade para aqueles que ocupam o cargo de ombudsman.
Em todo o mundo, cerca de 200 jornais contam com ombudsmans. Suzana Singer destacou que os principais jornais já adotaram um ouvidor, como The New York Times, The Washignton Post, El País, Le Monde, The Guardian. Em alguns países, os canais de televisão também instituiram um ombudsman: “Ele tem um programa, às vezes na madrugada. Ele não escolhe o horário, mas tem um programa, coisa que, por exemplo, a TV Cultura não tinha aqui. Dá uma vitrine porque senão a crítica se perde no ambiente interno e não tem força”, disse Singer. A jornalista contou que, na Colômbia, os canais estão obrigados por lei a contratar esse tipo de profissional.
Para Dines, a mídia brasileira não está preparada para conduzir denúncias de corrupção no poder de forma correta e equilibrada. O jornalista avaliou que a postura da Folha na demissão do ex-ministro da Casa Civil, Antonio Palocci, foi exemplar: “Um tiro só, uma manchete, que nem foi em oito colunas, foi metade da página”. Dines anotou que a matéria da Folha mostrou dados sobre o enriquecimento de Palocci sem adjetivar o então ministro. Já no caso da demissão do ex-ministro do Esporte, Orlando Silva, a mídia apresentou fatos sem provas, como a acusação de que o ex-ministro recebera dinheiro na garagem de sua casa, o que não chegou a ser comprovado. Suzana Singer comentou que depois de um escândalo estoura, instala-se um clima de competição entre os veículos de imprensa.
Furo e denuncismo
Na pressa para derrubar o ministro que está na berlinda, a mídia chega a levantar suspeitas infundadas. Para Suzana, este não é um problema de formação dos jornalistas, mas sim da estrutura das redações, da corrida entre os órgãos de imprensa pela denúncia mais forte. “Eu acho que os jornalistas estão na linha de frente no papel deles. Aí, a retaguarda da Redação – a edição, as chefias – é que têm que segurar e ter coragem. É tão difícil publicar como não publicar”, avaliou. A jornalista ponderou que mesmo correndo o risco de ser “furado” pelos concorrentes, os jornais deveriam segurar a informação até a apuração dos fatos.
O impacto das novas tecnologias de informação na mídia tradicional também foi tema da conversa de Dines com a ombudsman da Folha. Para Suzana Singer, a busca pela informação inédita ainda pauta a atuação dos jornalistas. “Cada vez se discute mais o furo como não mais um diferencial, mas como commodity. Mas ainda um bom furo, como o exemplo do ministro Palocci, faz diferença. E essa coisa de ‘cada um tem o seu celular e pode publicar o que quer’, o jornalismo colaborativo, ainda vai ser muito bom, ainda é uma promessa. Hoje, o melhor jornalismo que se faz, mesmo na internet, tem o lastro profissional e institucional”, disse Suzana. Dines comentou que essas ponderações, vindas de uma jornalista de outra geração, têm um grande peso porque parte da sociedade já decretou o fim do jornalismo tradicional.
Para Suzana Singer, a revolução das redes sociais é bem-vinda e auxilia o trabalho dos jornalistas, mas não produz um conteúdo de qualidade: “Quem diz ‘eu me informo pela internet’, ou está mal informado ou está mentindo, porque não dá. Hoje em dia, você lê três linhas de cada coisa e acha que está informado. Não é suficiente. Se, no futuro, o papel vai acabar, nem vejo nisso um grande problema, o papel material. Desde que o jornalismo de qualidade esteja com seus paradigmas. E é um jornalismo caro, por isso precisa ser sustentado. Notícia não é de graça”.
Jornalismo na rede
Suzana Singer avalia o acesso gratuito a sites de informação será um “tiro no pé” enquanto as condições do mercado publicitário não mudarem radicalmente. O livre acesso a notícias na rede só se sustentará se publicidade migrar maciçamente para a internet. “Mesmo que você abra parte do noticiário de graça, o resto ainda tem que ser pago. É antipático, o leitor reclama muito disso na Folha, mas eu não vejo nenhuma outra solução de negócio, no momento, para abrir todo o conteúdo de graça online.” A jornalista sublinhou que a renda que sustenta os portais de informação, inclusive no exterior, é a dos jornais impressos.
Tema sempre presente neste Observatório, a autorregulação da mídia foi discutida com Suzana Singer. Dines comentou o Conselho de Autorregulamentação Publicitária (Conar) é apontado como modelo, mas que o órgão “defende com unhas e dentes o seu negócio”. Quando a mídia exige que o governo regule com maior rigor temas como propaganda de bebidas alcoólicas ou de alimentos, o Conar diz que o Estado está tentando tutelar o cidadão.
Para a ombudsman da Folha, é preciso colocar limites na publicidade, mas o tema exige cautela porque a propaganda é vital para a sobrevivência da imprensa: “Tem que ter uma regulamentação. A publicidade para crianças é um calcanhar de Aquiles, tem que repensar isso. Agora, eu não tenho muita convicção sobre o que proibir, quando e em que situações. O Conar funciona, mas é limitado. Isso tem que ser matéria de lei”.
Leitores fanáticos
Entre os leitores mais radicais da coluna da ombudsman da Folha estão os torcedores de futebol. Suzana Singer contou que se surpreendeu com a quantidade de reclamações dos apaixonados pelo esporte: “Os corintianos, são-paulinos e palmeirenses são mais irracionais até do que os militantes políticos. Recentemente, houve uma briga grande deles com a Folha. Toda a imprensa chama o futuro estádio do Corinthians de ‘Itaquerão’, mas eles são contra esse apelido e elegeram a Folha. Disseram que o problema começou na Folha. Aí, eles fizeram uma campanha dura. São, realmente, irascíveis”.
Na avaliação de Dines, a cobrança pela qualidade nos cadernos de Economia e Política é alta, mas nas páginas de Esporte há uma certa permissividade. Suzana Singer comentou que durante a Copa do Mundo a situação fica mais evidente. “Perde-se um pouco a noção de notícia e se reporta como se fosse torcedor”, criticou a ombudsman. Suzana contou que não é uma torcedora contumaz, mas que tem seguido o assunto mais de perto. “Como tem gente que acusa a Folha de ser palmeirense, corintiana, contra a Portuguesa, eu falo: ‘Bom, pelo menos a Folha está acertando, porque está ‘batendo’ em todo o mundo’”, disse. A ombudsman frisou que os cadernos de Esporte não devem limitar a sua cobertura apenas ao que ocorre dentro dos gramados. Precisa mostrar também as implicações políticas dos fatos, sobretudo porque há altas somas de dinheiro empregadas neste setor.
***
[Lilia Diniz é jornalista]