A primeira parte do relatório do Painel Intergovernamental sobre Mudança Climática (IPCC, na sigla em inglês), divulgada na última sexta-feira (2/2), em Paris, indica que o aquecimento global é causado fundamentalmente pela atividade humana e que seus efeitos no clima já começaram e continuarão pelos próximos séculos, mesmo que haja um corte nas emissões dos gases estufa.
Para especialistas do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) envolvidos na realização do relatório, o documento não apresenta surpresas, mas traz detalhes sobre um aspecto importante: os extremos climáticos.
De acordo com José Antonio Marengo, meteorologista do Centro de Previsão de Tempo e Estudos Climáticos (CPTEC) do Inpe, o documento atual traz dados mais consistentes e realistas do que a última versão, lançada em 2001. ‘Os modelos de análise do clima foram bastante melhorados. Isso possibilitou que se destacasse a questão dos extremos climáticos, que ficou de lado na avaliação anterior’, disse Marengo à Agência Fapesp.
O cientista explica que o relatório anterior destacava o aquecimento global, o degelo das calotas polares e o aumento do nível do mar, mas não trazia tantos detalhes sobre os extremos, que se caracterizam por pancadas de chuva violentas alternadas com longas secas, ondas de calor e furacões. Um exemplo dos extremos climáticos, segundo ele, são as recentes inundações em Minas Gerais e São Paulo.
‘Mais importante do que saber se a chuva vai diminuir, é saber como ela vai diminuir. A região Amazônica e o Nordeste, por exemplo, poderão ter redução nas precipitações e aumento na temperatura de cerca de 4 graus, causando estiagens. Mas isso não impede que as chuvas intensas continuem. Esses extremos prejudicarão todo o sistema ecológico e a agricultura’, afirmou Marengo.
Outro pesquisador do CPTEC, Carlos Nobre, concorda com a avaliação e destaca que o cenário é especialmente preocupante para o Brasil. ‘Já somos um país com muitos extremos climáticos, o que implica secas, enxurradas, deslizamentos de encostas, inundações e vendavais. O relatório, cujos dados são bem mais consistentes que os anteriores, dá indicações de que esses fenômenos vão se intensificar’, disse à Agência Fapesp.
Para Marengo, o novo relatório do IPCC indica, em relação ao anterior, um cenário melhor em alguns aspectos, embora a avaliação geral seja mais sombria. ‘O texto de 2001 apontava que o aquecimento global poderia atingir até 5,8 graus Celsius, no pior cenário. O de 2007 indica um aumento de até 4,5 graus. Por outro lado, pela questão dos extremos climáticos, concluímos que a situação é pior do que imaginávamos’, afirmou.
Nobre destaca que os novos dados trazem uma visão mais profunda e detalhada de todos os aspectos que podem mudar no clima, além do aumento de temperatura propriamente dito, que por si só trará conseqüências importantes, como a elevação no nível do mar. ‘Os extremos climáticos, num certo sentido, têm o potencial de perturbar a vida tanto ou mais do que o aumento da temperatura. O relatório atual, que é mais consistente e robusto que o anterior, deixa isso mais evidente’, disse.
Outro avanço em relação ao relatório de 2001 é a constatação, com 90% de probabilidade, de que as atividades humanas são a maior causa do aquecimento nas últimas décadas. ‘O número é absolutamente conclusivo. Agora, é estatisticamente impossível dissociar a ação humana do aquecimento global’, disse Marengo.
‘Na linguagem científica, uma probabilidade de 90% é próxima da certeza. No mínimo, há uma influência determinante do fator humano’, completa Nobre.
Impulso para agir
De acordo com os pesquisadores do Inpe, que juntos com outros 2,5 mil produziram o relatório do IPCC, as previsões tendem a aprofundar a mobilização dos governos, principalmente nos países que resistem a ratificar o Protocolo de Kyoto, como Estados Unidos e Austrália.
‘Mesmo esses países estão começando a tomar atitudes. A seca na Austrália e o furacão Katrina, nos Estados Unidos, já haviam deixado claro que não faz sentido negar a extensão das mudanças climáticas’, disse Marengo.
Nobre afirma que, embora o país seja resistente em relação ao Protocolo de Kyoto, os estados norte-americanos mais progressistas começaram a tomar medidas de redução das emissões de gases estufa. ‘É um fenômeno curioso de antropologia social que o governo dos Estados Unidos tenha se mantido impassível enquanto os alertas sobre o aquecimento global foram feitos especialmente pela comunidade científica daquele país. Mais de 40% dos trabalhos na área foram feitos por pesquisadores do país’, disse.
A repercussão do relatório do IPCC na mídia, segundo os cientistas, é um sinal inequívoco de que ele terá um impacto poderoso sobre a opinião pública, que exercerá, conseqüentemente, maior pressão sobre os governos. ‘O impacto na imprensa foi muito maior do que em 2001. Prova disso é que várias partes do texto vazaram antes da divulgação oficial’, disse Marengo. ‘O relatório é apenas uma síntese. Não é ele que vai levar os países à ação. Eles já estão sendo pressionados pela população, principalmente na Europa ocidental’ declarou Nobre.
‘O relatório mostra que não podemos mais ficar de braços cruzados. É preciso agir imediatamente para mitigar o problema do aquecimento’, disse Marengo. Para ele, caberá ao Brasil reduzir suas emissões, principalmente as que são provocadas pelas queimadas. ‘Há dados da WWF de que no Brasil as queimadas representam 75% das emissões de gases estufa. O Brasil está entre os dez maiores poluidores do planeta’, disse.
Para Marengo, no entanto, há indicações de que o país está na contramão da redução de emissões. O Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), lançado pelo governo federal, prevê investimentos de R$ 50 bilhões em obras de infra-estrutura, mas não esclarece se haverá contrapartida ambiental. ‘Não vejo nada ali que possa favorecer o desenvolvimento sustentável. Pelo contrário, teme-se que o governo veja o meio ambiente como um entrave ao desenvolvimento’, afirmou.
Para Nobre, é preciso criar um modelo sustentável de futuro, mas não se pode ir contra o crescimento. Em um país com dificuldades sociais como o Brasil, segundo ele, é impensável abrir mão do desenvolvimento e, portanto, do aumento de produção.
‘O crescimento econômico aumentará o consumo e terá impactos no meio ambiente. Temos, portanto, que controlar as emissões sem estagnar o crescimento, com base num modelo de energia renovável. A pergunta, para a qual não temos resposta, é: quem pagará a conta da implantação desse modelo?’, disse Nobre.
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Editor da Agência Fapesp