Dinheiro não cai do céu e nenhuma alteração contábil anula esse dado. Logo, faz diferença lançar 40 bilhões de reais de despesas sociais nas contas da Previdência ou nas contas do Tesouro? À primeira vista, faz muita diferença: se mudamos a conceituação do problema, temos de buscar a resposta por um novo caminho. Mas será possível, nessa resposta, esquecer que é preciso extrair aquele dinheiro de alguma fonte?
É este, aproximadamente, o novo ‘estado da questão’ da Previdência Social, tal como se vem desenhando no material divulgado pelos meios de comunicação nas últimas duas semanas. Dia a dia o debate vem ganhando clareza e é preciso creditar esse avanço tanto aos jornais quanto aos meios eletrônicos. Vale menção especial o amplo levantamento publicado pelo Estado de S.Paulo no domingo (4/2), com ênfase no custo da previdência pública para o Tesouro Nacional.
A virada começou em 26 de janeiro, uma sexta-feira, quando o presidente Luiz Inácio Lula da Silva participou de duas sessões do Fórum Econômico Mundial, em Davos, na Suíça. Naquele dia, ele expôs sua opinião sobre o financiamento de pensões e outros benefícios: o déficit não é da Previdência, disse o presidente, mas do Tesouro. A diferença entre a arrecadação e os gastos previdenciários corresponde a programas sociais mantidos pelo governo. A aposentadoria dos trabalhadores do campo é um desses programas. Foi uma escolha política, afirmou, e a sociedade tem de suportar o custo.
O argumento não é novo e o próprio Lula o havia mencionado noutras ocasiões, mas seu pronunciamento em Davos teve um peso especial, tanto pela ênfase quanto pela nitidez da tese. Toda a grande imprensa noticiou com destaque suas palavras. Dois pontos ficaram nítidos a partir das declarações do presidente em Davos: 1) para o governo, não há desequilíbrio financeiro na Previdência Social, neste momento, pois o problema é do Tesouro; 2) um fórum nacional discutirá problemas previdenciários de longo prazo e proporá alterações só relevantes para as próximas gerações.
‘Cores diferentes’
Mas faltou esclarecer um ponto essencial: muito bem, o governo propõe novos termos para o debate, mas como fica o Tesouro Nacional? Assume o rombo, contabilmente, e ninguém discute, em Brasília, como financiar as dezenas de bilhões aplicadas naqueles programas sociais? Nesse caso, falta dizer também como o governo conciliará essa generosidade com os novos programas de investimentos públicos e com o compromisso de arrumação das contas públicas.
O presidente não tocou no assunto. O ministro da Fazenda, Guido Mantega, foi interrogado pela imprensa, mas conseguiu esquivar-se e não avançou no esclarecimento. Provavelmente não tinha resposta para a questão.
Na semana seguinte à reunião de Davos, o tema continuou prioritário. Os ministros da Fazenda e da Previdência falaram sobre assunto, ex-ministros e especialistas em contas públicas foram consultados e cada jornal saiu por um lado, nas edições de quarta-feira (31/1).
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‘CPMF agora pode cobrir o rombo da Previdência’, deu o Globo na primeira página;**
‘Modificação contábil pode reduzir rombo da Previdência’, noticiou a Folha de S.Paulo;**
‘Rombo da Previdência pública atinge R$ 35 bi’, destacou o Valor, chamando atenção para os gastos com o funcionalismo e não com a clientela do INSS.O Estadão destacou em manchete uma vaga referência de Mantega a uma reforma gradual do sistema previdenciário. Na mesma edição, o colunista econômico Celso Ming cuidou de pôr em ordem os termos do debate: ‘As coisas não mudam apenas com a separação do líquido em garrafas de cores diferentes e com a criação de mais um grupo de trabalho’. Em outras palavras, há um buraco financeiro e não se pode ignorá-lo. ‘O problema’, escreveu Ming, ‘é que, previdenciário ou social, o rombo do INSS bloqueia a administração pública, não deixa recursos para o investimento e é uma das travas citadas pelo presidente Lula que geram o crescimento medíocre.’
Idade mínima
Jornais e emissoras de TV e rádio mantiveram a peteca no ar, nos dias seguintes, e os termos da discussão começaram a ficar mais simples e mais claros. Uma boa contribuição foi a matéria de Sheila d´Amorim na Folha de S. Paulo de domingo (4/2):
‘O problema, na avaliação de especialistas ouvidos pela Folha, é que essa posição [do governo] em nada contribui para solucionar a questão que irá estourar nas mãos dos próximos governantes’.
A mesma reportagem cita explicações do secretário de Políticas de Previdência Social do Ministério da Previdência, Helmut Schwarzer. A reorganização contábil, segundo ele, não resolve o problema estrutural de longo prazo. Ele nega, no entanto, o risco de um ‘estouro da boiada’ enquanto o fórum estiver discutindo medidas para a solução desse problema.
As declarações de Schwarzer contrastam com a avaliação de outros especialistas: tratar da questão sob uma ótica ‘positiva’ não elimina os problemas estruturais nem substitui o ataque pelo lado da contenção de gastos – por exemplo, pelo aumento da idade mínima de aposentadoria ou pela separação entre a correção dos benefícios e a variação do salário mínimo.
Mas nenhum desses argumentos se sobrepõe ao ponto ressaltado na coluna de Celso Ming. A questão não é apenas previdenciária. É fiscal – e esse dado não é descartável.
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Jornalista