Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Jornalismo, a objetividade subjetiva

O artigo do jornalista Ali Kamel, publicado no Globo no dia 23 de janeiro, apresenta uma pertinente reflexão sobre o jornalismo na atualidade. [Ver ‘Quando o óbvio não é óbvio para todos‘]

Ao defender o argumento de que a profissão constitui uma forma de conhecimento da realidade e não um campo de batalhas ideológicas, o autor parece enveredar pelo caminho correto. Entretanto, gostaria de contextualizar tal linha de raciocínio e propor novas considerações.

Para começar, é preciso não confundir forma de conhecimento da realidade com espelho dessa mesma realidade. Ou seja, não acreditar na ingênua visão de que as páginas do jornal refletem fielmente os acontecimentos cotidianos, sem qualquer interferência em sua construção. O próprio Kamel afirma que o máximo que se pode conseguir é uma aproximação, já que nem a ciência é capaz de atingir a verdade e a objetividade total.

Quero, então, defender a idéia de que o jornalismo participa da construção social da realidade, e isso é muito mais do que um simples instrumento para conhecê-la. Em outras palavras, é no trabalho da enunciação que os jornalistas produzem os discursos, que, submetidos a uma série de operações profissionais e pressões sociais, produzem o que o senso comum das redações chama de notícia.

Idéia conspiratória

Entre a infinidade de fatos apurados pelos jornalistas, só alguns serão publicados ou veiculados, levando em consideração critérios como a característica do veículo, suas rotinas de produção e a própria presunção de quem é o seu público. Portanto, estamos distantes da hipótese do espelho descompromissado da realidade.

No jornalismo, a objetividade não surgiu para negar a subjetividade, mas, sim, para reconhecer a sua inevitabilidade. Seu verdadeiro significado está ligado à idéia de que os fatos são construídos de forma tão complexa e subjetiva que não se pode cultuálos como expressão absoluta da realidade.

Pelo contrário, é preciso desconfiar desses fatos e propor um método que assegure algum rigor ao reportá-los. Foi com esse espírito que foram criadas as técnicas do lead e da pirâmide invertida na virada do século XIX para o XX. Elas substituíram o jornalismo opinativo pelo factual, priorizando a descrição objetiva dos fatos. Conforme deixou claro o jornalista americano Walter Lippmann, que sistematizou essas técnicas em 1920, no livro Public Opinion, ‘o método é que deveria ser objetivo, não o repórter’.

Para concluir, volto à hipótese do jornalismo como campo de batalhas ideológicas, descartada por Ali Kamel.

Não é possível defender a idéia conspiratória de manipulação deliberada das notícias em favor desta ou daquela visão política de mundo.

Batalhas ideológicas

Mais do que anacronismo, seria desconhecer o funcionamento de uma redação e menosprezar o leitor. A produção de notícias é planejada como uma rotina industrial, com procedimentos próprios, limites organizacionais e, principalmente, consumidores exigentes, capazes de reconhecer intenções manipuladoras nas reportagens.

As normas jornalísticas têm muito mais importância do que preferências pessoais na seleção e filtragem de notícias. Entretanto, se, como venho argumentando ao longo deste texto, a objetividade surge porque há uma percepção de que os fatos são subjetivos, então também podemos concluir que eles são mediados por indivíduos com interesses, carências, preconceitos e, inclusive, ideologias. Nesse sentido, o tal campo de batalhas ideológicas talvez não possa ser totalmente descartado, mesmo que amenizado por um conjunto de procedimentos.

Um paradoxo cuja eficiente administração caracteriza o que se pode chamar de bom jornalismo.

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Professor da Universidade Estácio de Sá, Rio de Janeiro, RJ