Saturday, 02 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1312

Só cai cisco em olho aberto

O esporte nacional é o futebol, todo mundo sabe. Sabe mas sabe errado. Ultimamente, o esporte nacional é meter o pau na imprensa, principalmente na grande imprensa, mais principalmente na Rede Globo, mais específicamente no jornal O Globo, mais precisamente na TV Globo. O ministro Tarso Genro sempre que pode senta o cacete na grande imprensa, pra não perder a mão. Até Hugo Chávez, a mais promissora vocação para ditador de nuestra muy hermosa América del Sur (embora sem o charme do barbudo da ilha), outro dia desceu o relho no império dos Marinho, engajando-se alegremente entre os praticantes do mais novo esporte nacional.

Novo? Nem tanto. Quando a ditadura militar estava com o sol a pino, final dos 60-início dos 70, baixar o sarrafo na Globo (‘o povo não é bobo, abaixo a Rede Globo’) era dever de casa, obrigação. Mas a Globo facilitava, é ou não é? Tanto que hoje ela própria reconhece as ‘bobagens’ (palavra suave) que andou fazendo. E que provam ter atuado, sim, como linha auxiliar do regime; sim, como braço audiovisual da ditadura; e, sim, como porta-voz oficiosa do ditador plantonista do Palácio do Planalto. Em Brasília havia até um agente da linha-dura-pra-cacete que diariamente lia um editorial noturno no canal local da Globo baixando a rama na canalha comunista e advertindo para os riscos que a subversão financiada pelo ouro de Moscou representava à paz da família brasileira. Chamava-se Edgardo Ericsen.

O uso do cachimbo deixou a Globo de boca torta. Pois mesmo com a ditadura esvaindo-se por fadiga, o grupo editorial dos Marinho sempre manteve um pé atrás, na base do nunca-se-sabe-o-dia-de-amanhã. Segurou a onda na época da campanha das Diretas-Já. Afinal, nunca-se-sabe. Por isso, só foi noticiar o maior movimento de massas da história do Brasil quando o povão já havia pintado tudo de amarelo e os cinegrafistas não tinham mais para onde desviar o foco das câmeras (foi ali que o povão varonil decretou o point of no return, obrigando os militares a botar a viola no saco e os trabucos nos coldres).

Mais à frente a Globo fajutaria a edição do debate Lula-Collor. Os agentes da ‘redentora’ já haviam voltado aos quartéis mas, nunca-se-sabe, né? Melhor prevenir etc. Só depois da chegada de Evandro Carlos de Andrade – o Geisel da Globo – no início dos 90, os ventos da abertura começaram a correr no arraial dos Marinho, mesmo que de forma lenta, gradual e segura. Primeiro, com a substituição de Cid Moreira, símbolo maior da submissão global ao generalato, por William Bonner e Lílian Wite Fibe (esta última, substituída depois pela patroa do William), na bancada do Jornal Nacional.

Confissão ideológica

Posteriormente, todos os apresentadores que até então eram apenas leitores de teleprompters seriam substituídos por jornalistas profissionais, acumulando a função de editores. Tinha início a travessia da estrada de Damasco pela Globo. Até chegar ao inacreditável: Luiz Inácio Lula da Silva sentado à bancada do Jornal Nacional, dando entrevista na condição de candidato eleito à presidência da malemolente terra do frevo e do maracatu. Quem diria! Desde então, a Platinada vem fazendo crescer a taxa de jornalismo embutida em seus noticiosos. Viva! Mas, como sempre, com um pé atrás porque… nunca-se-sabe, e ninguém é de ferro.

A fama de submissão da Globo ao regime dos quartéis durou tanto que até hoje ela paga por isso. Na Assembléia fluminense, a macacada chavista (pai, perdoai-os, eles não sabem o que fazem) lembrou-se do velho bordão e mandou ver: ‘O povo não é bobo, abaixo a Rede Globo’. O líder neogolpista caiu de pau na Globo e no Globo, simplesmente porque os dois veículos (como de resto toda a imprensa brazuca), vêm denunciando sua ‘transição pacífica rumo ao autoritarismo’. Mesmo a parcela da mídia mais afinada com as doidices perigosas do tiranete de Caracas botou as barbas de molho. Parece que não apareceu ninguém até agora para publicar editorial ou artigo assinado aplaudindo a aventura (que todo mundo sabe como começou e como vai terminar).

Divaguei, mas por uma causa justa. Voltemos ao ponto. E o ponto é que, desde as denúncias de corrupção no arraial do PT de Lula e na ante-sala do gabinete presidencial, todos os jornais, revistas e blogs que ajudaram a mostrar as safadezas de mensaleiros e valdomiros viraram Rede Globo. Ou seja: todo mundo que denunciou as falcatruas virou vidraça, tal como na velha Grécia, em que o portador da má notícia era passado a fio de espada. Como o esporte é bom, vamos ensaiar o velho coro outra vez: ‘O povo não é bobo, abaixo a grande imprensa’.

Opa! Não rimou. Mas se rimasse, o grito seria esse. Ainda bem que não rimou, e além de não ter rimado, cansou. O que era obrigação naquele tempo, hoje é tão ultrapassado como o comunismo albanês, que nem o PC do B agüenta mais. Meter o pau na grande imprensa pode ter virado esporte nacional, mas, se no velho ludopédio não vamos bem há algumas copas, nesse novo esporte oficial aí é que a derrota é segura. Porque não cola mais esse papo de Davi contra Golias, de bravos e esfarrapados portadores da verdade contra barões de mídia cobertos de dólares.

A Globo mudou? A grande imprensa mudou? Nem uma coisa nem outra. Todos continuam com seus mal feitos e com seus bem feitos. E ninguém abdicou do nunca-se-sabe. E sabe por que? Porque imprensa é uma atividade em-pre-sa-ri-al. E quem tem dinheiro ou interesses políticos envolvidos no negócio – tem medo. Isso vale pra grandes e pequenos. O que sobrou da ‘imprensa nanica’, que estufa o peito para se autoproclamar ‘imprensa independente’, sobrevive dentro dos limites de sua confissão ideológica, buscando argumentos para provar que a outra, a ‘grande imprensa’, é o diabo em forma de papel impresso ou o demônio travestido em imagem de TV.

Canção do Chico

E a ‘grande imprensa’, com seus malfeitos e seus bem-feitos vai tocando, com seus profissionais buscando cumprir seu papel, mas com a retaguarda protegida de ataques inesperados e surpresas indesejáveis. A grande imprensa faz suas merdinhas e e seus merdões vez por outra. Faz, sim. Só que o papo de satanizá-la encheu as medidas. Até porque o povão, que assegura o monopólio da audiência da Globo e compra o Estadão na banca da esquina, bem se lembra e agradece a atuação decisiva da plim-plim e dos jornalões na denúncia dos anões do orçamento e na campanha pela queda de Fernando Collor, por exemplo. Naquela época, palmas pra grande imprensa; agora, pau nela. A troco de quê, cara-pálida?

Portanto, quando a ‘pequena’ imprensa (paciência, mas não dá pra chamar de ‘independente’ quem atua dentro de estreitos limites ideológicos) se autoproclama dona da verdade e prega o fim da ‘grande’, o máximo que se pode fazer é rir às porta-bandeiras-desnudadas. Porque satanizar a grande imprensa é filme velho, lá do tempo do cinema mudo. Quem o faz parece a mãe do soldado que se orgulha de o filho ser o único a marchar de passo certo no desfile.

Meter o pau na grande imprensa, desmoralizá-la e desmerecê-la na base do ‘todo mundo é bandido, menos eu’ é atacar zilhares de excelentes profissionais que nela atuam, atuaram e atuarão, e nem por isso venderam, vendem ou venderão suas consciências, seu suor, sua força de trabalho. Tenho grandes, queridos e honestos amigos lá. Aliás, eu próprio vim de lá. E mais: não existem salvadores da pátria (alguém aí precisa comunicar isso aos venezuelanos). Nem santos vivos. Nunca vi um.

Como diz o Chico naquela musiquinha infantil: ‘Reparando bem, todo mundo tem pereba’. Mas lhes asseguro com conhecimento de causa que diabos vivos existem, sim. Todo dia cruzo com dezenas deles aí na rua. Ou nas páginas dos jornais e das revistas, da grande, da pequena ou da nanica imprensa.

E chega. Hora de ir pra casa, ler a Veja e a CartaCapital, não necessariamente nesta ordem. Recado: quem fecha o olho evita o cisco, em compensação não enxerga chongas. Sintetizando, pra facilitar a vida de quem quiser pintar na camiseta: ‘Só cai cisco em olho aberto’. Fui.

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Jornalista, professor e pesquisador em Comunicação