Thursday, 19 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1318

Arquivos secretos: nem tudo é verdade

A revista Época está publicando uma série de reportagens sobre arquivos secretos da Marinha referentes à repressão nos anos de chumbo, que lhe foram entregues, microfilmados, numa “caixinha de papelão do tamanho de um livro”. Eis como descreveu sua prenda:

“Escondidas por um militar anônimo, 2.326 páginas de documentos microfilmados daquele período foram preservadas intactas da destruição da memória ordenada pelos comandantes fardados. Os papéis copiados em minúsculos fotogramas fazem parte dos arquivos produzidos pelo Centro de Informações da Marinha (Cenimar), o serviço secreto da força naval. Ostentam as tarjas de ‘secretos’ e ‘ultrassecretos’, níveis máximos para a classificação dos segredos de Estado e considerados de segurança nacional. Obtido com exclusividade por Época, o material inédito possui grande importância histórica por manter intactos registros oficiais feitos pelos militares na época em que os fatos ocorreram.”

A série começou com uma matéria de capa sobre “Os infiltrados da ditadura”, assinada por Lionel Rocha; na edição que chegou às bancas no sábado (3/12), o texto que aborda “As ações da CIA no Brasil” tem tripla autoria (ele, Eumano Silva e Leandro Loyolla). Online, a revista publica inicialmente o começo da matéria, só liberando o restante do texto no dia em que sai a edição seguinte. Colega de editora (foi também a Geração Editorial, que lançou seu Operação Araguaia – os arquivos secretos da guerrilha, escrito a quatro mãos com Taís Morais), Eumano me pediu opinião sobre a série. Fiz-lhe esta avaliação:

“…Os relatórios da repressão são uma parte da verdade, mas não toda a verdade. Dão pistas, mas não esgotam os assuntos. São peças de um imenso quebra-cabeças cuja montagem compete aos historiadores e à Comissão da Verdade.

O comezinho bom senso é suficiente para supormos que os autores dos relatórios evitaram estender-se sobre o papel infame que eles próprios desempenharam e também que fantasiaram um pouco os registros para se valorizarem aos olhos de seus superiores.”

O relatório do infiltrado

Isto se evidencia, por exemplo, na forma como a revista relata o cerco e morte do grande companheiro Juarez Guimarães de Brito:

“A infiltração de Luciano [codinome de Manoel Antonio Mendes Rodrigues, noutro parágrafo apresentado ‘como um agente remunerado que teve conexões com assaltos a banco e contatos em várias organizações da luta armada, como FLN, VPR e MR-8] resultou também na espionagem contra um dos mais importantes dirigentes da VPR, Juarez Guimarães de Brito. Juarez entrara em 1968 para o Comando de Libertação Nacional (Colina), organização a que pertenceu a presidente Dilma Rousseff. Em julho de 1969, integrava a VAR-Palmares, organização oriunda da fusão entre Colina e VPR. Foi Juarez quem comandou no Rio de Janeiro o assalto ao cofre de Ana Capriglione, amante do ex-governador de São Paulo Adhemar de Barros. Trata-se do assalto mais bem-sucedido realizado por um grupo de esquerda durante a ditadura. Ele rendeu US$ 2,6 milhões aos assaltantes.

No dia 13 de abril de 1970, Luciano relatou aos chefes do Cenimar que estivera com Juarez num encontro com Maria Nazareth. Ele telefonou outra vez ao Cenimar no dia 16, para informar que Juarez tinha um encontro no dia 18 com outro militante da VPR, Wellington Moreira Diniz, na Rua Jardim Botânico, numa esquina com a rua que ‘tem a seta indicando Ipanema’.”

A ótica da militância

Provavelmente, foi esta a versão que o oficial controlador do tal Luciano passou ao alto comando, para acumular mais alguns pontinhos – ignóbeis! – na sua carreira. A verdade é bem diferente, conforme esclareci na mensagem que enviei ao Eumano:

“A sequência real é a seguinte:

** Wellington Moreira Diniz, braço-direito do Juarez desde os tempos do Colina, teve de afastar-se da militância ativa por causa de problemas cardíacos;

** sua única tarefa ficou sendo a de dar instrução militar a pequenos grupos de esquerda que estavam se formando na época;

** mas, alguém desses grupos foi preso e o entregou;

** já estava preso em 11/04/1970, um sábado, dia de seu ponto semanal com a VPR (para saber as novidades, receber instruções e recursos para seu sustento);

** no dia 13/04/1970, quando me encontrei com os dirigentes nacionais Ladislau Dowbor e Maria do Carmo Britto numa casa de chá da zona Sul do RJ, conversamos longamente sobre a apreensão causada pelo fato de o Wellington não ter comparecido nem ao ponto nem à alternativa (um novo ponto, marcado para algumas horas depois);

** como todos os comandantes estavam de partida para uma reunião convocada por Carlos Lamarca, tentei insistentemente convencê-los a abortarem a reunião, para que todos estivessem a postos no caso de o Welllington ter realmente sido preso;

** mas, foi mantida a reunião e uma informação que o Wellington abriu depois de resistir bravamente durante quatro dias iniciou a onda de quedas que acabou me alcançando;

** sem terem conhecimento das prisões, o Juarez e a Maria do Carmo, já de volta no sábado seguinte (18/04/1970), resolveram ver se o Wellington comparecia na segunda alternativa para o caso de o Wellington ficar descontatado (mesmo local, mesma hora, uma semana depois);

** não era o Juarez quem habitualmente cobria o ponto semanal com o Wellington, só tendo ido no dia 18 porque o companheiro não aparecera no dia 11 e ele estava preocupado (provavelmente, já acalentava a esperança de resgatá-lo com uma ação desesperada);

** o casal percebeu que o Wellington estava preso e servindo de isca, mas o Juarez improvisou o plano temerário – enviar-lhe, por meio de um menino de rua, um pacote de frutas com um revólver por baixo, supondo que ele o pudesse utilizar para escapar dos agentes e correr até o carro deles;

** com as pernas engessadas por um tipo de tala sob a calça, ele não poderia correr, então, ao ver a arma, não a pegou;

** os agentes perceberam a manobra e conseguiram cercar o carro do Juarez, impedindo a fuga – aí ele optou pelo suicídio, cumprindo sua parte no pacto de morte que havia firmado com a companheira.

Além do que fiquei sabendo na reunião com o Ladislau e a Maria do Carmo, minhas fontes foram uma conversa com o tenente-coronel Ary Pereira de Carvalho, da Divisão de Infantaria, responsável pelo IPM da VPR, que me contou o ocorrido em 18/04/1970 sob a ótica da repressão; e os papos com o próprio Wellington, meu companheiro de infortúnio no cárcere da PE da Vila Militar (apesar das brutais torturas, seu coração resistiu e ele tomava fortes calmantes na prisão).”

Pagou com a vida, sem hesitar

É de se supor que haja outras informações igualmente maquiladas nos tais microfilmes, o que não diminui o mérito da Época nem a importância do seu trabalho jornalístico. Apenas, comprova que tudo isso deve ser relativizado e não tido como verdade absoluta.

Não sei se a revista publicará meu esclarecimento, até porque o Eumano não decide sozinho. Gostaria muito que o fizesse, por respeito à memória de um dos melhores resistentes tombados na luta contra o arbítrio. Juarez merece ser lembrado como quem foi: o cordial professor que se endureceu sem jamais perder a ternura, a ponto de ter colocado a salvação do discípulo estimado acima do sentimento de autopreservação e da enorme importância que ele próprio, Juarez, tinha para o movimento. E, quando seu intento fracassou, pagou com a vida, sem hesitar. Não quis correr o risco de, sob tortura, comprometer outros companheiros ou prejudicar a causa.

Mas, conhecendo-o como conheci, eu apostaria todas as minhas fichas em que tal temor era infundado.

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[Celso Lungaretti é jornalista e escritor; edita o blog Náufrago da Utopia]