A Inglaterra já atravessou o canal da Mancha diversas vezes para salvar a Europa. Recusava ser ilha, pretendia ser continente. E conseguiu: as duas guerras mundiais e a Guerra Fria no século 20 são a melhor prova de uma superação existencial e geográfica. Na madrugada de sexta-feira (9/12), em Bruxelas, o Reino Unido voltou atrás – preferiu ser ísola, apostou no isolamento. E contrariando os 17 membros da Eurolândia somados a seis outros parceiros da União Européia que a ela pretendem aderir, reprovou a proposta de um tratado que reforçará a disciplina fiscal e regulará o mercado financeiro.
Ficou sozinha graças ao premiê David Cameron, jovem na aparência e jurássico na alma. Este descendente puro-sangue de Margareth Tatcher não é apenas um membro do Partido Conservador (Nicolas Sarkozy e Angela Merkel teoricamente também o seriam), nem apenas um empedernido eurocético tal como sua mãe espiritual e a maioria de seus correligionários.
Bando isolacionista
Cameron é a ponta de lança do Tea Party no outro lado do Atlântico. Seu antiestatismo, sua cega submissão aos mercados em geral e ao financeiro em particular – portanto, ao insaciável apetite da City (a Wall Street londrina) – o converteram num clone do que de pior foi produzido pela política norte-americana desde o macartismo.
A proximidade de Cameron com o tubarão da mídia, Rupert Murdoch, não é casual. Entre os dois há laços que transcendem a simples convivência imprensa-Estado. Mais do que parceiros, cúmplices. Detestam os imigrantes, adoram fronteiras fechadas, abominam códigos e regulamentos.
O terremoto que está sacudindo a União Européia foi a oportunidade encontrada por Cameron para escapar da marginalização à qual se condenou. O protagonismo afinal conquistado numa hora tão complicada é uma negação das melhores tradições da política externa e da cultura britânicas.
Opor-se neste momento ao resgate do projeto europeu é um tiro no pé. Os anos dourados da comunidade européia foram extremamente favoráveis aos ingleses. Mesmo sem a moeda comum, a velha Albion funcionou nas últimas décadas como vitrine de uma Europa reinventada, tolerante, globalizada. O Eurostar, o trem-bala submarino que liga a ilha ao continente, não é apenas uma façanha de engenharia, é um monumento à interdependência do mundo contemporâneo.
O ceticismo antieuropeu até agora parecia mero maneirismo, não muito diferente da famosa fleuma britânica. O pavor ante a reunificação alemã, e agora esse despeitado mau humor perante o formidável empenho da dupla Markozy (Merkel+Sarkozy) para salvar a mais importante experiência federativa da história da humanidade, colocam Cameron e sua gangue isolacionista na galeria dos líderes mais detestados.
Fragmentação, velocidade
O legendário Winston Churchill pertencia ao mesmo partido de Cameron, estava distante – um antípoda – do que hoje designaríamos como progressismo. Poderia ter se composto com Hitler e com ele ter dividido a Europa. Optou por enfrentar a besta nazi-fascista, prometeu ao seu povo sangue, suor e lágrimas, e salvou a Europa. Era um estadista, herdeiro da tradição dos reis-filósofos. David Cameron é um político que não enxerga um palmo além das próximas eleições e ignora um dos versos mais sublimes da literatura inglesa: “Nenhum homem é uma ilha, cada um é uma partícula do continente… se um torrão é arrastado para o mar, a Europa fica diminuída…” (John Donne, 1572-1631).
Num ano sem fim de ano, exauridos pela fragmentação e pela velocidade, um suspiro de alívio: a Europa escapou do abismo. Nós com ela.