Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

“Livro é alimento de que o povo precisa”

Também não sou santo e cometerei neste texto o pecado que Carlos Drummond de Andrade, ao ver reproduzidas em jornais cartas por ele enviadas, chamou de “violação do sigilo epistolar” – saborosa aliteração, aliás. Um, dois e: foi o jornalista, cronista e biógrafo mineiro Humberto Werneck quem sugeriu aO TREM entrevistar o contista e romancista belo-horizontino Jaime Prado Gouvêa, superintendente do Suplemento Literário de Minas Gerais, no qual trabalhou em várias fases, incluindo a inicial, capitaneada por Murilo Rubião e tida por muitos com o melhor tempo da publicação.

Assim argumentou aojornal o autor de O Desatino da Rapaziada, referindo-se aos livros O Altar das Montanhas de Minas (Siciliano) e Fichas de Vitrola & Outros Contos (Record): “São duas preciosidades da ficção brasileira. Se mais gente não sabe disso é porque o Jaime é um bicho-do-mato, incapaz de autobadalação. Jamais o vi se promover – e olha que o acompanho desde os nossos – nascemos com cinco dias de intervalo – 14 anos. Vaidade zero. Antipavão total”.

Disse mais Humberto Werneck, para quem Jaime Prado Gouvêa é caso consistente, não facilmente encontradiço, de integridade artística. “Ele nunca pôs no papel uma linha que não correspondesse a uma necessidade absoluta de se exprimir, ou seja, nunca escreveu nada só para fazer glamour. E olha que poderia ter escrito vários livros na esteira de O Altar… e Fichas…, mas, em vez de requentar, sempre preferiu requintar. Coisa rara isso, Marcos, nesse nosso patético circo literário, congestionado de picaretas escrevendo pelos cotovelos”.

Nascido em 1945, “safra 1945”, aliás, trabalhou como jornalista na sucursal belo-horizontina de O Globo e no Jornal da Tarde, de São Paulo. Estreou em livro em 1970 com os contos de Areia Tornando em Pedra (editora Oficina), obra vencedora, um ano antes, do Concurso Nacional de Contos do Paraná.

Em entrevista exclusiva, Jaime Prado Gouvêa conversa sobre leitura, governo, Academia Mineira de Letras, Minas Gerais (o velho assunto: ficar em ou sair de), Drummond, dinheiro, Suplemento Literário, jornalismo cultural, Graciliano Ramos, glória e Glória, entre outras falações.

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Madrugada, Jaime Prado Gouvêa passava na rua da Bahia e foi abduzido para o planeta Oxyonn, na reluzente nave PKW 156. Lá recebeu as boas-vindas da simpática etezinha Nikkolli: “Senhor Jaime, conte-me como é seu país, o Brasil. É bom viver lá?” O que responderia a Nikkolli?

Jaime Prado Gouvêa – Bom ou ruim, não faz diferença. Foi aqui que nasci e foi aqui que vivi meus bons e maus momentos.

Inventaram, imaginemos, uma máquina pela qual é possível falar e ser escutado simultaneamente por todos os brasileiros. Se fosse usá-la para falar duas verdades urgentes, o que escutaríamos?

J.P.G. – Cresçam e tentem ser felizes com as armas que vocês têm.

Fale-nos, por favor, sobre seu amor pelos livros, pela literatura.

J.P.G. – A minha literatura sou eu com toda carga de contradição que todo ser pensante carrega. Meus livros são minha materialização que as pessoas podem ler ou não, amar, odiar ou ignorar. Tenho com a literatura um relacionamento inseparável, sujeito a todo tipo de sentimento. 

O que perde uma pessoa que não lê bons livros?

J.P.G. – Perde a oportunidade de usufruir a riqueza existencial que muitos deles contêm.

Se pudesse escolher um escritor morto para um bate-papo de meia hora, qual seria e sobre o que conversariam?

J.P.G. – Seria Graciliano Ramos. Mas, possivelmente, pelo que sei dele e de mim, ficaríamos calados o tempo todo.

Por favor, fale um pouco sobre a obra do alagoano de VidasSecas.

J.P.G. – Graciliano Ramos, como Rubem Braga, tem um dos textos mais limpos que conheço. Uma falsa secura, com densidade dramática e poética e sem desperdício retórico, o que considero uma das marcas dos grandes escritores. Acho que sua obra tem um parentesco formal com a de João Cabral de Melo Neto, seu vizinho de região, que também vai direto ao osso da coisa sem perder a beleza da carne.

Jaime Prado Gouvêa, secretário estadual de Cultura. Pronto, foi empossado, tem de começar a trabalhar já. O que faria para aumentar o número de leitores?

J.P.G. – Pelo que conheço dos leitores do meu estado natal, eu renunciaria ao cargo.

O governo mineiro faz a parte que lhe cabe para fortalecer o hábito da leitura ou fracassa nesse trabalho?

J.P.G. – Sei, por dirigir uma superintendência da Secretaria de Cultura, o Suplemento Literário, que existem planos para incentivar a leitura junto ao público infantil e juvenil, mas que estão encontrando sérias dificuldades orçamentárias para ir adiante. Vivi, durante boa parte dos 45 anos do Suplemento Literário, a luta para não deixar o jornal morrer. Conseguimos, de alguma forma, um respeito intelectual em todo o Brasil e em muitos países, mas temos dificuldades aqui no nosso quintal. Penso ainda que o hábito da leitura é uma questão de educação do indivíduo e deveria ser incutido desde cedo nas pessoas pelas famílias e pelas escolas em primeiro lugar. Infelizmente, o brasileiro é muito ruim nisso.

Em Itabira, temos um governo obscurantista, que tem alergia a livros, que destrói bibliotecas, que faz Pavilhão Literário com músico, sem literatura – problema a ser resolvido no grito e no voto. É pendurado nesse trapézio que pergunto: qual a importância dos livros para uma cidade?

J.P.G. – Os livros são o alimento de que o povo precisa para não se tornar obscurantista. Sem eles, a cidade se tornaria anêmica intelectualmente.

Os bons livros são muitos; o tempo para lê-los, escasso. Todo grande leitor gostaria de ter mais tempo para poder ler mais bons livros. Isso o angustia?

J.P.G. – Não. Quem gosta de ler sempre arranja um tempo.

O que precisa melhorar no jornalismo cultural em Minas Gerais?

J.P.G. – Entender que entretenimento e cultura não são a mesma coisa. Como irmãos, podem conviver sem se atropelar, desde que ocupem o galho que lhes compete nessa árvore selvagem.

Nunca pretendeu sair de Minas definitivamente? O Rio de Janeiro, esponja absorvedora de escritores mineiros, não é tentação para o senhor? Não tem vontade de se fixar onde estão os prêmios, o dinheiro, a glória?

J.P.G. – Morei em São Paulo durante um ano. Não me alterou em nada. Voltei para minha casa porque meu lugar é aqui. Mas já fui premiado em Curitiba e em São Paulo sem precisar morar lá. Meus livros me representaram fisicamente. Editei meus livros em São Paulo (Siciliano) e no Rio (Guanabara e Record). Existe um pouco de visibilidade e de glória – o Humberto Werneck, por exemplo, atingiu a dele outro dia, com o nascimento de sua neta Glória… – nisso de ser reconhecido fora do estado da gente, mas acredito que o livro substitui a presença física de seu autor, e funciona muito melhor sozinho. O autor morre, é esquecido, e pode ser uma pessoa desagradável, mas nada disso acontece ao livro. E dinheiro, para mim, é algo insondável e inalcançável.

Scribendi nullus finis. É verdade, acredita nessa divisa? 

J.P.G. – Acho que já respondi isso aí. O livro não morre. Bom ou ruim, depois que se materializou existirá para sempre, nem que seja uma vírgula sua que acrescentou algo a alguém.

Por falar, para que serve a Academia Mineira de Letras e quando se candidatará a uma vaga?

J.P.G. – Academia, para mim, não faz sentido algum. Tem gente que gosta, e acho bom que gostem. É sempre bom que as pessoas tenham algo para gostar, nem que seja só para deixar os outros em paz. Cada um na sua. A minha não é lá. 

Quando se fala em ajuntamento de escritores, lembro-me do que o polemista Fernando Jorge, colaborador dO TREM, disse da Academia Brasileira de Letras: “Mais estéril que útero de mula”. A Academia Mineira de Letras presta algum serviço importante às letras deste Estado?

J.P.G. – Pode até ter prestado, ter perenizado alguns textos bons em seu acervo, mas, para mim, é uma associação como qualquer outra. E escrever, como todo mundo sabe, é um ato individual. Para o meu gosto, acho as academias, como diria o conselheiro Acácio, uma coisa muito acadêmica…

Continuando a violar o sigilo epistolar, Humberto Werneck me contou que o senhor é incapaz de autobadalação. Não é necessário um pouquinho de política literária? Muita não, claro, mas um tiquinho… 

J.P.G. – Não é que eu seja contra isso, mas não combina com meu temperamento. Política literária a gente sempre faz, querendo ou não, só de conviver com outros escritores. E, para ser sincero, os que vi se autobadalando não raro caíram no ridículo. Se seu texto não conquista os outros por sua própria força, não há propaganda que ajude. E nunca me esqueço do sábio ditado do Hélio Pellegrino: “Quem de si faz alarde, cedo o rabo lhe arde”.

Carlos Drummond de Andrade: o que mais gosta dele, o que não gosta? 

J.P.G. – Gosto de tudo no mestre: a poesia, a firmeza, o traço fino dos versos e a mineirice universal em estado bruto.

Já que falou em mineirice, o que é isso de ser um mineiro?

J.P.G. – Vou ter que olhar no espelho para responder, e desconfio (olha aí…) que não terei uma resposta.

Todo mundo diz que a grande fase do Suplemento Literáriofoi com Murilo Rubião e que a publicação não é mais tão vigorosa. É crítica que o aborrece?

J.P.G. – Foi o momento essencial do Suplemento Literário. A fôrma – assim mesmo, com acento – do Murilo marcou a publicação em sua essência, e ainda hoje, quando tenho comando, procuro mantê-la. Isso não me aborrece de forma alguma, inclusive porque participei dessa fase. Mas houve outras fases muito ricas também, como nas épocas do Ângelo Oswaldo e do Duílio Gomes, mesmo sendo distintas, como são distintas as épocas, é claro. 

Deve colecionar ótimas histórias da redação do Suplemento Literário. Por favor, conte-nos a melhor delas, a mais saborosa – para o bem ou para o mal.

J.P.G. – Posso lembrar a negativa dos acadêmicos mineiros a um voto de louvor pelo aniversário do Suplemento Literário, décadas atrás, baseada na argumentação de que “o Suplemento não dava vez aos velhos”. Ficamos muito comovidos pelo ineditismo da desculpa, e nos sentimos louvados, por ter vindo de onde veio.

Júlio Jardim, itabirano, 20 anos, quer ser bom contista e pediu para eu lhe perguntar: como se tornar bom contista e o que não pode faltar em um bom conto? O que ele quer, danadinho, é a receita Gouvêa.

J.P.G. – Talento. E muito trabalho com as palavras. 

Quando um amigo cita um livro ótimo que o senhor não leu, o que faz? 

J.P.G. – Procuro ler o tal livro.

Todos carregamos imagens inesquecíveis da infância. Quais são as do senhor, as que o emocionam?

J.P.G. – Os vexames que toda criança comete desenvolveram em mim um terrível medo do ridículo. Mas as lembranças que me emocionam são os primeiros sonhos, os primeiros fracassos, como acontece com todo mundo. A vantagem da literatura é poder transformar o bom e o ruim da vida num trabalho que lhe dê certa grandeza. Conhecer o menino que passou, ou não passou, é nosso maior desafio. 

“Jaime Prado Gouvêa é baita escritor”, li, de gente séria. O que sente ao receber loas? Claro, fica feliz, ninguém sangra os pulsos por ser elogiado, mas, por favor, fale mais sobre esses momentos.

J.P.G. – Claro, claro. E ainda bem que é gente séria… E, falando sério: alguém gostar do que a gente faz é sinal de que a coisa está funcionando. Mas o que me emociona mesmo é o reconhecimento anônimo, que confirma que seu trabalho deu certo, que o conto, o romance ou o poema funcionam sem a presença física do autor. Lembro dois momentos que encheram minha bola. Certa manhã, indo para a repartição onde eu fingia que trabalhava, passei em frente a um supermercado e vi, no balcão da porta de entregas, um livro de capa amarela. Cheguei perto – não havia ninguém lá na hora –, e vi que era o meu Fichas de Vitrola, edição da Guanabara, e tinha vários trechos grifados a lápis. Então surgiu uma moça, funcionária da casa, e perguntou o que eu queria. Disse a ela que o livro era meu. Ela me olhou desconfiada e o escondeu. Nos anos 80, quando a feira de artesanato acontecia na praça da Liberdade, um amigo músico costumava reunir sua turma para tocar lá. Nessa época, eu tinha cometido algumas letras para ele, e, no momento em que cheguei, ele cantava uma dessas músicas, cercado de muita gente que curtia a coisa. Fiquei atrás da “plateia” esperando que ele acabasse o “show”, quando uma garota, que devia andar pelos 15 anos, me perguntou se eu sabia de quem era “essa letra linda”. Respondi que era minha, e ela me olhou como se me chamasse de mentiroso. Para mim, é isso que vale a pena.

Mineiros das letras. Do lado de lá: Eduardo Frieiro, Carlos Drummond de Andrade, Pedro Nava, Cyro dos Anjos, Roberto Drummond, Guimarães Rosa, Oswaldo França Júnior, Fernando Sabino, Otto Lara Resende, Paulo Mendes Campos, Fritz Teixeira de Salles, Murilo Rubião, Bernardo Guimarães, Wander Piroli, Emílio Moura, Adão Ventura… Do lado de cá: você, Affonso Romano de Sant´Anna, Humberto Werneck, Autran Dourado, Silviano Santiago, Bartolomeu Campos de Queirós, Sebastião Nunes, Ronald Claver, Alcione Araújo, Ruy Castro (se é que Ruy Castro pode figurar em rol de mineiros), Rui Mourão, Adélia Prado, Ziraldo Alves, Fábio Lucas… Em qualidade literária, qual lado ganha?

J.P.G. – Tem de tudo aí. Cada macaco no seu tempo. A turma de ontem, de hoje e, depois, a que vem por aí. Ninguém ganha nem perde, pois trata-se de um conjunto que faz a literatura, com tudo que tem de bom e de ruim que merecemos.

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[Marcos Caldeira Mendonça é editor de O TREM Itabirano)