Na primeira semana de fevereiro, El Tiempo, o maior jornal da Colômbia, abriu largo espaço em suas páginas para um fenômeno ao qual cariocas e paulistas devem ficar muito atentos: os riscos da ‘parapolítica’. Pensadores pós-modernistas franceses inventaram o termo ‘transpolítica’ para se referir ao ultrapasse da política tradicional por formas novas de esvaziamento da democracia representativa. A ‘parapolítica’ é outra coisa: não um termo reflexivo, mas a realidade da transformação de ações marginais ou ilegalistas em poder político.
Na Colômbia, o que a imprensa vem classificando como ‘o escândalo da parapolítica’ provocou comoção nacional, devido ao assassinato de Yolanda Izquierdo, uma brava mulher que liderava, em Córdoba, o movimento de centenas de famílias em prol da recuperação da propriedade de suas terras, açambarcadas por paramilitares. Yolanda levou a sério a Lei de Justiça e Paz, promulgada pelo presidente Álvaro Uribe, segundo a qual as vítimas da expropriação paramilitar já poderiam reivindicar seus direitos, com garantias de segurança para fazê-lo. Foi morta com um tiro na cabeça, no dia 31 de janeiro passado, quando conversava com o marido, na porta de sua casa.
Esse crime é interpretado como uma provocação, um desafio aberto aos atos governamentais no sentido da desmobilização dos paramilitares, A resposta pronta do presidente Uribe foi o congelamento dos bens dos paramilitares, além da adoção de medidas de proteção às vítimas que se acham em risco imediato. Para a imprensa, é ainda motivo de indignação a apatia, ou a falta de agilidade, do governo, já que Yolanda Izquierdo vinha denunciando à Procuradoria de Justiça, havia um mês e meio, as ameaças que recebia.
Taxa de ‘proteção’
O crime em questão é, na verdade, a ponta de um iceberg, que pode ser resumido como um fenômeno da ‘hegemonia paramilitar’. Assim, começam a aparecer na imprensa revelações sobre os métodos e sistemas dos ‘paras’ em cidades como Barranquilla, a quarta mais importante do país. Nessa cidade e em toda a Costa Atlântica, disseminam-se grupos de extorsão e extermínio, que se combatem mutuamente pelo domínio territorial, encobertos pelo silêncio protetor de autoridades, líderes políticos e empresários.
Em Barranquilla, intensificou-se desde 1999 a fórmula de ação paramilitar. Primeiro, atacavam as lojas, chegando até mesmo a matar sem qualquer razão aparente, para criar a necessidade de um serviço de segurança. Depois, começavam a cobrar cotas, e os que se recusavam a pagar eram obrigados a partir. Entre 2000 e 2005, o grupo criminoso foi o responsável por mais de 500 assassinatos seletivos.
O poder dos ilegalismos aumenta com a deterioração administrativa do Estado e termina criando suas representações políticas por meio de um eleitorado sob controle. Constitui-se, assim, a ‘parapolítica’, em que a violência física se tornou apenas um recurso de última instância. Quando se está infiltrado na rede dos aparelhos de Estado (polícia, judiciário, câmaras legislativas etc.), o que predomina é a violência institucional.
Talvez não seja preciso insistir largamente sobre a advertência a quem se preocupa seriamente com a cidadania, isto é, com o futuro da possibilidade de se apropriar legalmente dos bens sociais. Um exame mais detido do que se passa em extensas áreas do Rio de Janeiro e de São Paulo não demora a expor semelhanças assustadoras entre os bandos de traficantes, as milícias (policiais, ex-policiais, agentes penitenciários, bombeiros) e os ‘paras’ colombianos. Estes últimos nasceram de milícias que, lá como aqui, combatiam inicialmente grupos indesejáveis à ordem reinante (lá, guerrilheiros; aqui, traficantes de drogas), mas que não tardam a cobrar dos moradores taxas de ‘proteção’ ou a açambarcar propriedades.
Romper o silêncio
Na Colômbia, o fenômeno se expandiu sob as vistas complacentes dos governantes, para os quais se trataria de ‘autodefesas comunitárias’. Não é uma expressão estranha a quem acompanhe as posições de determinadas autoridades cariocas sobre a evidência de que 92 favelas do Rio já se encontram sob o domínio das milícias.
E não se trata apenas de ex-policiais militares ou bombeiros, como vem repetindo a imprensa carioca e paulista, sempre em déficit de apuração no que diz respeito à pauta de cidade. Informações provindas de fontes comunitárias dão conta de que as milícias estão incluindo um número cada vez maior de desempregados. A razão é simples: às vezes, um pequeno morro no Rio pode ter mais de 50 entradas ou saídas. Para o controle efetivo do lugar, é preciso muita mão-de-obra, que é contratada nos mesmos termos de uma empresa capitalista, exceto os ‘fundos’ de garantia, seja de vida ou de emprego. A qualificação requerida é a disposição para o assassinato.
É certo que já existem alguns indícios de que a magnitude do problema começa a ser reconhecida por autoridades. O recém-empossado governador do Rio vem se pronunciando sobre a necessidade de se garantir o estado de direito, o que implica enfrentar qualquer tipo de ilegalidade, seja do tráfico ou das milícias. Essa finalidade coloca-se acima de qualquer outra mais visível (e midiática), a exemplo da neutralização dos pontos críticos de violência, nos preparativos de segurança para os Jogos Pan-americanos deste ano.
É, claro, importante assegurar a tranqüilidade dos atletas e dos visitantes, que reproduzirão para o mundo uma determinada imagem da cidade, sob os holofotes da mídia internacional. Mais importante ainda, todavia, é garantir o presente e o futuro do Estado de Direito para uma cidadania cada vez mais sobressaltada pela deterioração das condições de vida no espaço público. Cabe à imprensa romper sistemática e continuadamente o silêncio sobre o horror nosso de cada dia.
P.S. Em cidades como Bogotá (cidade que já partilhou dos mesmos sobressaltos das grandes capitais brasileiras) ou Cartagena é possível ao visitante passear tranqüilamente pelas ruas, de dia ou de noite. As soluções dependem de vontade política e conscientização cidadã.
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Jornalista, escritor, professor-titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro